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Cecília Meireles - Olhinhos de Gato (pdf)(rev) - Português

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<strong>de</strong> touro, não. O que ela conhecia era lobisomem. Disso havia<br />

muito, muito. Principalmente na roça. . . Mas ali mesmo naquela<br />

rua, ela cismava com o "seu" Fre<strong>de</strong>rico, que tinha uns <strong>de</strong>ntes tão<br />

compridos e uma cara tão amarela. . .<br />

Seu Fre<strong>de</strong>rico morava do outro lado da rua. O outro lado da<br />

rua era "cheio <strong>de</strong> coisas..." Só às vezes seu Fre<strong>de</strong>rico <strong>de</strong>scia pelo<br />

lado <strong>de</strong> cá. Por quê? Ah! E quando <strong>de</strong>scia, todo o mundo sentia<br />

que ele era diferente das <strong>de</strong>mais pessoas. Mesmo a sombra <strong>de</strong>le<br />

tinha um feitio esquisito. Via-se mais a sombra <strong>de</strong>le do que ele<br />

mesmo.<br />

Quando ele passava, as vizinhas cochichavam umas com as<br />

outras. Algumas diziam: "Qual! Coitado. . . é mais um que não<br />

tarda a bater a bota. . ." E apontava para o peito:<br />

"Entisicou... Foi a oficina..."Dentinho <strong>de</strong> Arroz ia-se embora,<br />

e sussurrava: "Deus me perdoe, se ele não é lobisomem.. ."<br />

E a menina via passar, entre as duas opiniões, a pobre<br />

criatura amarela, magra, curvada, silenciosa, que passava com<br />

uma roupa esver<strong>de</strong>ada, gasta nos punhos e na gola, e lustrosa<br />

nas costas on<strong>de</strong> os ossos marcavam inícios <strong>de</strong> asas. Que passava<br />

sem tirar o chapéu, subia, subia, parava <strong>de</strong> vez em quando, e<br />

afinal sumia-se entre o céu e a terra.<br />

Nunca ninguém reparou quando <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> passar para<br />

sempre. Não se soube se mudou <strong>de</strong> rua, se morreu. Ninguém<br />

nunca <strong>de</strong>u gran<strong>de</strong> atenção a ele. Era apenas uma sombra, uma<br />

espécie <strong>de</strong> sombra que ia bater a bota qualquer dia. . . Ele mesmo,<br />

aliás, parecia já não saber também <strong>de</strong> si. . . Mas OLHINHOS DE<br />

GATO preferia que ele fosse lobisomem a cadáver.<br />

E é possível que Dentinho <strong>de</strong> Arroz tivesse razão: do outro<br />

lado da rua <strong>de</strong>via haver um mundo sobrenatural. De noite, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

o escurecer, ouvia-se um bater <strong>de</strong> tambores que impressionava.

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