50% - Vida Lusa
50% - Vida Lusa
50% - Vida Lusa
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
VIDAS<br />
“Antes ir à pesca do que ir<br />
a uma boa festa”<br />
Recebeu a pesca como herança : “lá por aí<br />
abaixo, com a cana às costas, agarrado às<br />
calças do pai”. A lagoa de Óbidos é o seu<br />
mundo há 85 anos, a vara é erguida com destreza,<br />
os olhos perdem-se no ritual da ondulação, a<br />
bateira avança. Um novo dia de pesca começa.<br />
António Batata, tem na memória recordações de<br />
grandes feitos, histórias e proezas. Houve um dia<br />
que saí de casa às três, quando lá cheguei levava 88<br />
“solhas”, relembra orgulhoso. E um sorriso esboça-se<br />
nos lábios e vai morrer junto a duas rugas desenhadas<br />
na face. Nunca teve medo das águas da lagoa de<br />
Óbidos, que conhece desde sempre : “a paixão não<br />
é dada a medos”.<br />
“Cheguei a andar a partir geada com a bateira,<br />
noites inteiras a chover”, relembra António Malaquias<br />
Máximo, mais conhecido como Batata, 85 anos,<br />
pcscador desde os sete. “Era urna vida muito desgraçada”.<br />
A bateira conquista lentamente as águas<br />
escuras da Lagoa de Óbidos. Aque les braços rijos,<br />
num corpo pequenino e lesto, erguem a vara com<br />
uma destreza quase jovial. O pau enterra-se na<br />
água, para logo ser içado no ar. O dia vai adiantado<br />
e a ondulação denuncia a maré na vazante. Cospe<br />
nas palmas das mãos e empunha de novo a vara. Os<br />
olhos fitam as trincheiras de água que morrem<br />
junto à proa, adivinhando o peixe. “Tem de se achar<br />
um cantinho bom”, a voz é surpreendentemente<br />
alegre, “vamos pescar uma caldeirada!”. Mas o<br />
peixe não estava de feição…<br />
Recebeu a pesca como herança : “lá ia por aí<br />
abaixo, com a cana às costas, agarrado às calças do<br />
pai”, (conta a mulher, Maria Pieda de Xavier, de 82<br />
anos, “e ganhou-lhe o vício! Tem dois bocadinhos<br />
de chão para amanhar, mas o Batata sempre trocou<br />
a enxada pela rede. De onde trabalhava a terra avistava<br />
o mar e quando via que a maré estava boa, largava<br />
o que estava a fazer e ia a correr deitar-se à<br />
Lagoa”. É o fado de quem cresceu à beira de água,<br />
trocando as brincadeiras pela espera do peixe. Às<br />
vezes andava lá de manhã até à noite, só com um<br />
bocado de pão. Era a pesca...”.<br />
É o mais velho pescador da Lagoa nestas lides. A<br />
bateira contorna alguns rnariscadores, que polvilharn<br />
os bancos de areia. “Olha, o Batata. Vai à<br />
12 — <strong>Vida</strong> <strong>Lusa</strong> n° 73 — Novembre 2004<br />
António Batata<br />
pesca?” As palavras soam carregadas de respeito,<br />
de admiração. A âncora é lançada borda fora.<br />
“Vamos tentar ao pédestes, que andam aqui no<br />
esgravatado”. Lança a linha por romantismo, corteja<br />
o anzol com os preparos, apanha o isco criteriosamente.<br />
Manifestações de fé. A religião de urn<br />
pescador que se move no ritual da ondulação. Olha<br />
para a Lagoa com olhos sábios, cansados, mas<br />
nunca tristes. O seu corpo franzino desce do tombadilho.<br />
O cabelo grisalho e ralo esconde-se por<br />
baixo da boina suja, as botas verdes, impermeáveis,<br />
sobem até aos joelhos. A face está lapidada pelas<br />
marés, pelas noites inteiras de labuta. A pele seca e<br />
queimada pelo sol. Os dedos estragados, gastos,<br />
deformados pelo frio. “Mas naquele tempo havia<br />
peixe, agora...” - as canas teimavarn em não vergar<br />
“... é preciso paciêncja”. O olhar pende sobre as<br />
três canas. Os braços cruzados, na espera. O vento<br />
do mar e o berbigão a dançar nos ancinhos são os<br />
sons da Lagoa.<br />
Amulhcr relembra as noites de vigia : “Tinha tanta<br />
medo que me caísse por aí, por um penedo abaixo.<br />
Chegáva-me a casa todo cheio da barria da Lagoa<br />
todo molhado”.<br />
O Batata, porque o pai<br />
era Batata e o avô era<br />
Batata - todos Batatas,<br />
todos pescadores<br />
- tinha duas redes :<br />
uma para de dia e<br />
outra para de noite.<br />
Pescava o que a<br />
Lagoa dava : robalos,<br />
taínhas, solhas, sargos. Arranjava uma “campanha”<br />
e lá ia, muitos hormens para ajudarem a puxar as<br />
redes. De noite, pescava ao candeio, com uma luz<br />
que iluminava o fundo da Lagoa e um pequeno<br />
arpão.<br />
Também trabalhou na apanha do limo - “começávamos<br />
a apanhar em Junho e era o Verão inteiro”,<br />
conta.<br />
O trabalho de urn dia para encher um bateira, só se<br />
via dois dedos fora de água, tal era o peso”.<br />
Quando punham o limo a secar ao sol, avistava-se<br />
um lençol gigante e verde, que cobria a praia. Vendia-se<br />
às “carradas” para adubar a terra.