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Outubro_2020 - nº 269

Órgão informativo do Centro Lusitano de Zurique Edição de Outubro 2020

Órgão informativo do Centro Lusitano de Zurique
Edição de Outubro 2020

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CRÓNICA

13

municações ao outro lado.

Como a mãe ficava furiosa

quando lhe diziam que no dia

anterior ao jantar a namorada

do pai estava lá...

Como o pai ficava furioso

quando lhe diziam que no dia

anterior, depois de jantar, o namorado

da mãe os foi levar à

discoteca e passou a buscá-los

às seis horas da manhã…

Os filhos gostavam de ver os

pais reagirem como crianças:

- Ele levou-os a ver o Benfica?

Vocês sabem que ao Estádio

da Luz só vão comigo. Sempre

foram só comigo. Esse “gajo”

é tanto do Benfica como eu do

Clube de Freixo-de-Espada-à-

-Cinta. E ela foi? Comigo nunca

queria ir.

- Ela é que vos cortou o cabelo?

Quem autorizou? Olhem para a

tua cabeça, estás horrível, deve

ter aprendido na espelunca da

cabeleireira onde costuma ir.

O teu pai varreu os cabelos do

chão? Comigo nunca pegou

numa vassoura…

Haveria neste ciúme alguma

réstia de amor?

E foi num desses dias em que

a autoridade estava diminuída,

que algo muito grave aconteceu.

- São duas da manhã, devem

estar com a mãe.

- São quatro da manhã, devem

estar com o pai.

Ambos pensaram que deveriam

telefonar um ao outro, mas não,

pensaria o outro que se estava

dando parte fraca, depois da

última discussão em que, entre

gritos, insultos e ameaças, se

afirmou que nada mais havia

para dizer, tendo-se a partir

daí transformado os filhos em

mensageiros?

- Deviam lá estar certamente

– pensaram ambos acerca da

casa um do outro.

Dormiram.

A única coisa comum que tiveram

nessa noite em cada uma

das suas casas foi, sem o saberem,

terem visto o mesmo filme

na televisão, e o ciúme de que

os filhos tivessem preferido dormir

na casa do outro.

O relógio avançava, dia dentro,

e a manhã de domingo surgiu,

ao mesmo tempo que o telefone

tocou em casa dele.

Ouviu-o tocar lá ao longe, como

a manhã, depois olhou o relógio

de cabeceira e ergueu-se de um

salto, era mesmo o telefone.

- Diga?

- Estou a falar com o Senhor

Raul dos Santos Costa Brás?

Aquele seu nome completo dito

assim do outro lado por voz desconhecida,

deixou-o intranquilo.

Houve um acidente. Falo do

hospital. Deveria vir…

- A minha mulher?

- Não…

Deixou cair o auscultador, enfiou

as calças, a camisa, desceu

a escadaria do prédio, meteu-

-se no carro e partiu como um

sonâmbulo.

A mulher já estava no átrio do

hospital, quando o viu chegar,

correu para ele e embrulhou-se

em pranto e dor.

Foi a primeira vez que sentiram

a nítida necessidade de se abraçarem.

Viram-se pela última vez no

funeral.

Dela, ninguém mais ouviu falar.

Ele é hoje um missionário triste e

barbudo, amando cada criança

de Timor, com a dor de ver em

cada um deles, os filhos que

ajudou a vida a roubar.

Há gentes que deveriam seguir

logo os seus destinos, para que

os seus caminhos não tivessem

que ser livros com folhas

arrancadas a meio. Livros com

capítulos em branco, só com

dor e vazio.

Só que, no fundo, é isto que nos

define como seres humanos,

cabe aos deuses determinar

os carris.

Outubro 2020 | Lusitano de Zurique | WWW.CLDZ.EU

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