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Outubro_2020 - nº 269

Órgão informativo do Centro Lusitano de Zurique Edição de Outubro 2020

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Edição de Outubro 2020

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CULTURA

33

Paira um espectro sobre os

amigos do acordo ortográfico

— o espectro da fonética

NUNO PACHECO (*)

Há dias, o jornal Voz Portucalense, semanário

da diocese do Porto, trazia um curioso artigo

intitulado “Vamos aprender a pronunciar a

língua portuguesa?”. M. Correia Fernandes,

o seu autor, partindo de um facto antigo (“as

palavras não se escrevem como se pronunciam”)

e de uma conclusão sensata (sendo

uma convenção, a ortografia “deve servir

para se distinguirem as palavras e não para

as confundir”), sugere que passemos a pronunciar

melhor as palavras e que dispensemos

muitos dos anglicismos que para aí

andam a despropósito. Mas não se fica por

aí. Escreve, a dado passo, o seguinte: “Há

palavras em que o acordo ortográfico deveria

ter servido para valorizar a distinção de muitos

vocábulos em que a grafia fosse orientada

para ajudar a pronunciar as consoantes, tornando-as

de mudas em pronunciadas.” E dá

como exemplos “contrato” (elemento jurídico)

e “contracto” (de contraído, devendo ler-se o

c), “ótico” e “óptico” (lendo-se o p), “repto”

e “recto” (sugerindo que se leia o p e também

o c), dizendo que as ditas consoantes

mudas deveriam ser também pronunciadas

em “facto” (já o são), “factor”, “acto”, “actor”,

“concepção” e “percepção”, etc. Tudo isto

parece contrariar o acordo ortográfico de

1990, o tal que decepou consoantes a eito.

Mas o autor escreve com o acordo de 1990…

Sem desmerecer as boas intenções implícitas

no texto, dir-se-á que andamos como

o bicho que corre atrás da própria cauda a

tentar mordê-la sem estranhar que ela se

afaste quando se move. O acordo ortográfico,

mexendo na escrita, mexeu também

na fonética. Isto já foi dito mil vezes, mas

nunca é demais repetir. Escrever “fator” e

pretender que se leia “fàtôr” (factor) é ilusório.

Daqui a uns anos, diremos “âtor”, “dir’ção”,

“obj’tivo” e disparates do género. Sim, estamos

a mudar a nossa fala por causa de uma

escrita aberrante que, sendo diferente da

brasileira (e nunca é excessivo insistir nisto),

não respeita o nosso sistema vocálico e as

suas idiossincrasias.

O autor estranha que se diga “xesso” em

vez de excesso, ou “xêntrico” em vez de

excêntrico, só que a erosão das palavras

na fala é um fenómeno antigo, persistente

e é não apenas português. Estranho era

que escrevêssemos “xesso” e “xêntrico”.

Coisa que, a seu modo, o acordo faz. Há

um interessante teste, que qualquer leitor

poderá fazer por si, e que consiste em dar à

“máquina” do Word, programa de texto (aqui,

uns lerão “tâichtu” e outros “têchtu”, sem

que a escrita se altere), um lote de palavras

para “ler” em voz alta. A máquina usa um

algoritmo introduzido por mão humana e

esse algoritmo está adaptado ao português

de Portugal, como logo se percebe.

O processo é simples: copiem as palavras

indicadas para uma folha do Word

em branco, escolham a opção “Rever” no

menu, coloquem o cursor do rato no início

da primeira palavra e carreguem em “Ler

em voz alta”, que a máquina lerá tudo numa

voz feminina sintetizada. Para parar, basta

carregar de novo no mesmo botão. Numa

série de palavras, o som da escrita segundo

o acordo de 1945 e o de 1990 soará igual.

Exemplos (copiem-nos e ouçam): Acção,

Ação; Acepção, Aceção; Activo, Ativo; Actual,

Atual; Baptista, Batista; Cacto, Cato;

Coacção, coação; Espectáculo, Espetáculo;

Exactamente, Exatamente; Factura, Fatura;

Percepção, Perceção; Reactor, Reator;

Recto, Reto; Recepção, Receção; Selecção,

Seleção; Tractor, Trator.

Porém, noutras, o contraste entre fonéticas

é chocante. E esta lista é bem maior

(experimentem copiá-la e depois ouvi-la):

Adjectivo, Adjetivo; Adopção, Adoção; Arquitecto,

Arquiteto; Aspecto, Aspeto; Acto,

Ato; Actor, Ator; Actores, Atores; Baptismo,

Batismo; Baptizado, Batizado; Bóia, Boia;

Correcção, Correção; Correcto, Correto;

Detecção, Deteção; Detectar, Detetar; Dialecto,

Dialeto; Direcção, Direção; Directa,

Direta; Efectivamente, Efetivamente; Efectivo,

Efetivo; Electivo, Eletivo; Efectuar, Efetuar;

Electricidade, Eletricidade; Electrónica, Eletrónica;

Espectador, Espetador; Expectativa,

Expetativa; Exacto, Exato; Excepto, Exceto;

Exceptuando, Excetuando; Factor, Fator;

Fracção, Fração; Indefectível, Indefetível;

Infectado, Infetado; Infecção, Infeção; Injecção,

Injeção; Insecto, Inseto; Inspecção,

Inspeção; Inspector, Inspetor; Interactivo,

Interativo; Jóia, Joia; Lectivo, Letivo; Nocturno,

Noturno; Objectiva, Objetiva; Objecto,

Objeto; Perceptível, Percetível; Perspectiva,

Perspetiva; Projecção, Projeção; Projecto,

Projeto; Prospecção, Prospeção; Protecção,

Proteção; Protector, Protetor; Reacção, Reação;

Receptor, Recetor; Redacção, Redação;

Retrospectiva, Retrospetiva; Selectivo, Seletivo;

Sector, Setor; Sectores, Setores; Tecto,

Teto; Tracção, Tração; Vêem, Veem.

Burrice da máquina? Erro no algoritmo? Não,

erro no acordo. Não se pode torcer a barra e

querer que ela fique direita ao mesmo tempo.

Claro que a máquina tem falhas: abre indistintamente

as vogais em “coação” (de coar)

e “coacção” (coagir); e lê “acordam” como

“acurdam”. Mas ainda assim tem suficiente

“entendimento” para abrir o u em “equitativo”

ou “equidade” e fechá-lo em “equilibrado” ou

“equinócio”; e dá o devido som às vogais em

contexto, abrindo o o em “quando eu acordo”

(ò) e fechando-o na frase “assinaram o

acordo” (ô). Por isso, este teste é elucidativo:

a grafia que nos impingiram em Portugal não

é tragável, nem mesmo por uma máquina.

(*) in Jornal Público

Outubro 2020 | Lusitano de Zurique | WWW.CLDZ.EU

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