Outubro_2020 - nº 269
Órgão informativo do Centro Lusitano de Zurique Edição de Outubro 2020
Órgão informativo do Centro Lusitano de Zurique
Edição de Outubro 2020
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ACTUALIDADE/ESPECTÁCULO
29
Remoção
dos ovários
a mulheres
que abortem
A fidelidade
do infiel
JOÃO MENDES
Enquanto a discussão sobre o congresso do Chega
se vai debruçando sobre a encenação das listas, a
intervenção da GNR por incumprimento das regras
sanitárias ou a enésima quase-demissão do seu líder,
a suprema obscenidade passou quase despercebida,
perante a indiferença de uma sociedade dominada
pelo pânico pandémico, em processo acelerado de
normalização do autoritarismo, que já não se choca
com o regresso de um horror que julgávamos morto
e enterrado.
O momento é absolutamente abjecto: um militante do
Chega, com um longo percurso político que passou
pelo PNR e pelo Aliança, apresentou uma moção,
onde, entre outras ideias, defende que qualquer
mulher que decida abortar, excepto em casos de
violação, malformação ou perigo imediato para a sua
saúde, deverá submeter-se à remoção compulsiva
dos seus ovários, “como forma de retirar ao Estado
o dever de matar recorrentemente portugueses por
nascer, que não têm quem os defenda no quadro
actual”.
Isto é assustador. É a total negação dos mais elementares
valores democráticos. De uma violência e
brutalidade atroz. E é certo que a moção foi rejeitada,
mas o simples facto de ter sido elaborada e discutida,
e previamente analisada pelos órgãos partidários
competentes, ilustra bem o que podemos esperar
de um partido que alberga neo-nazis e fundamentalistas
religiosos. Se com um deputado já querem
remover ovários à força, apresentando argumentos
dignos de um fanático islâmico, imaginem o que seria
se esta gente chegasse ao poder. Não, o fascismo
não pode passar.
ANTÓNIO MANUEL RIBEIRO
Quando escrevi, a meio da década
de 1980, a canção “Completamente
Infiel” (álbum “Noites Negras de
Azul”, 1988), estava a atravessar
um deserto escaldante, descortinava
a praia e o mar, mas ainda
faltavam uns longos passos até à
frescura da água. É uma bela canção
mas com o tempo deixou de
me representar. Foi escrita como
vingança, e a vingança, o acto de
dirigir a nossa energia, física e
espiritual, para um acto vingativo
é um desperdício absoluto do
melhor que há em nós. No amor,
ou no resto.
Vem isto a propósito da incerteza
que vamos antevendo nos passinhos
de dança dos comunicados oficiais.
Uma coisa me parece certa: afastem
o medo; desliguem as notícias;
os números dos relatórios diários
servem para novas interrogações
sem resposta; há mais mundo que
o universo Covid-19; transparece uma
revolta surda por tanta incerteza, um
pânico calado que não descola. Os
populismos, por falta de consistência,
servem-se de qualquer gritaria
para ganhar espaço – a depressão
de um grupo, ou a colectiva, promove
estes desencontros com a sanidade.
Cuidem-se, a protecção de cada um
evita o contágio.
Voltemos a infidelidade. Continuo um
infiel, logo um homem estruturalmente
livre de escolher – ninguém nasce
para viver em prisões ou coletes de
força. Tenho escrito mais do que
leio, mas ler faz-me bem à alma. E
aqui sou mesmo infiel, porque respiro
a minha liberdade e dou largas
à curiosidade, factor primordial para
o conhecimento.
Acabei de ler “Sinais”, da Laura Lynne
Anderson (a minha canção “Sinais –
presentes do Tempo”, de 2013, fala
destes ‘sinais’); peguei no “Buraco
da Agulha”, do Ken Follett (escrito
no mesmo ano em que os UHF nasceram,
e agora reeditado), depois de
ter lido os últimos do António Barreto,
Luís Sepúlveda, Neal Donald Walsh
ou Domingos Lopes. Ou seja, as minhas
leituras vão por diversos trilhos
na floresta das ideias, não me limito,
sou livre, infiel a qualquer doutrina
ideológica ou capelinha organizada.
Da política à espiritualidade, da
novela de espionagem às crónicas,
leio para conhecer, gostar ou rejeitar.
Guardem um tempo para vós, saiam
do trilho das obrigações, façam uma
pausa, sejam infiéis à vulgaridade. O
medo afastar-se-á por si, sem parceiro
para lhe saltar para as costas. Que
triste é tantos queixarem-se ‘deles’,
os da política, mas só se falar de futebol
por cá. Miseravelmente triste.
Deixo-vos com outro texto para esse
livro prometido.
No próximo sábado, às 22h00, iremos
gravar ao vivo um momento inédito
nas nossas vidas de músicos. O último,
o XXVII Momento Musical Caseiro
dos UHF.
Compras da semana:
Livros: Arturo Pérez-Reverte – “Uma
História de Espanha” (2020)
ECM – CD John Scofield/Bill Stewart/
Steve Swallow – “Swallow tales”
(2020); CD Domink Wania – “Lonely
shadows” (2020); CD – Terje Rypdal
– “Conspiracy” (2020)
Pop/rock – CD – Chrissie Hynde
w/ The Valve Bone Woe Ensemble
– “Valve bone woe” (2019); CD – Rufus
Wainright – “Unfollow the rules”
(2020); CD – Love – “Reel to real”
(1974/2015 – deluxe edition
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