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Edição de 7 de dezembro de 2020

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STORYTELLER<br />

Unsplash<br />

Mu<strong>de</strong> sua vida!<br />

Parte da correspondência dos<br />

cursos eu surrupiei do Valdir,<br />

como já disse, matriculado por mim<br />

LULA VIEIRA<br />

Quem tem menos <strong>de</strong> 40 anos não <strong>de</strong>ve<br />

conhecer. Mas nós, velhinhos, passamos<br />

boa parte da vida submetidos a anúncios<br />

<strong>de</strong> cursos por correspondência, um<br />

negócio que movimentava milhões em dinheiros<br />

e pessoas mundo afora. Anúncios<br />

que eram veiculados principalmente em<br />

gibis e revistas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> leitura popular.<br />

O estilo era quase sempre o mesmo. Fotos<br />

tipo documento e <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> “ex-alunos”<br />

cujas vidas se transformaram após a<br />

realização <strong>de</strong> um curso feito através dos<br />

Correios. A Maria do Carmo agra<strong>de</strong>cia, por<br />

exemplo, ao Instituto Universal Brasileiro<br />

a mudança <strong>de</strong> seu status. Maria do Carmo,<br />

estudando em casa nas horas <strong>de</strong> folga, tinha<br />

conseguido seu diploma <strong>de</strong> manicure e<br />

agora sustentava toda a família. Havia muitos<br />

“institutos” e quase uma centena <strong>de</strong><br />

cursos diferentes. Auxiliares <strong>de</strong> cozinha,<br />

guarda-livros, mo<strong>de</strong>lista, relojoeiros, violonistas<br />

e por aí afora podiam ser formados<br />

exclusivamente por cartas. Alguns cursos<br />

ofereciam, junto com as primeiras aulas,<br />

algumas ferramentas da profissão.<br />

A <strong>de</strong> técnico <strong>de</strong> rádio, por exemplo, enviava<br />

as peças <strong>de</strong> um “potente aparelho <strong>de</strong><br />

rádio” <strong>de</strong> alcance mundial, incluindo válvulas<br />

e ferramentas básicas como alicates<br />

e chaves <strong>de</strong> fenda. Uma maravilha. Aliás,<br />

já que toquei no assunto, ser técnico <strong>de</strong> rádio<br />

e po<strong>de</strong>r consertar aparelhos era <strong>de</strong> um<br />

status invejável. A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que esse tipo <strong>de</strong><br />

produto não merece ser consertado porque<br />

o preço do reparo não compensa data <strong>de</strong><br />

poucos anos. Os aparelhos iam e vinham<br />

do técnico para, por exemplo, trocar uma<br />

válvula ou reparar um fio arrebentado. Isso<br />

acontecia várias vezes durante sua vida<br />

útil, que levava décadas. Os filhos cresciam<br />

e iam embora enquanto o velho rádio recebido<br />

<strong>de</strong> presente <strong>de</strong> casamento imperava<br />

na sala <strong>de</strong> visitas. O aparelho <strong>de</strong> TV, então,<br />

merecia cuidados <strong>de</strong> filho. Antenas, válvulas,<br />

controles, ajustes davam <strong>de</strong>feito e mereciam<br />

a visita do técnico, que tinha status<br />

<strong>de</strong> médico <strong>de</strong> família, comparecendo nas<br />

casas com sua maletinha com amperímetros,<br />

frequenciômetros e outras ferramentas<br />

<strong>de</strong> ficção científica. Seu trabalho era<br />

acompanhado com expectativa: “é grave?”.<br />

O alívio vinha com a resposta: “não, é só<br />

uma válvula”. Suspiros <strong>de</strong> alívio. Mas me<br />

perdi, falava dos cursos por correspondência<br />

que já pertencem ao escaninho da sauda<strong>de</strong>.<br />

Cursos e profissões que ensinavam<br />

a fazer <strong>de</strong>capé (alguém sabe o que é isso?),<br />

marcenaria, sapateiro, corte e costura, preparação<br />

<strong>de</strong> conservas e doces, refrigeração,<br />

mecânica automobilística, manutenção <strong>de</strong><br />

bicicletas e muito, muito mais. Inclusive o<br />

tal <strong>de</strong> “<strong>de</strong>senho publicitário” que, apesar<br />

<strong>de</strong> ter inscrito o Valdir nuns três, ele nunca<br />

fez nenhum, o que me levou a ficar até<br />

hoje na dúvida que diabo seria “<strong>de</strong>senho<br />

publicitário”. Aliás, em “pintura” a ilustração<br />

era <strong>de</strong> um jovem diante <strong>de</strong> um cavalete<br />

pintando um nu. Até hoje me pergunto se a<br />

mo<strong>de</strong>lo era uma foto, se vinha por <strong>de</strong>manda<br />

ou o curso sugeria que se usasse a mãe, a<br />

sogra, a irmã ou a namorada. Naquele tempo<br />

não se imaginava uma aluna pintando<br />

um nu masculino, claro.<br />

Parte da correspondência dos cursos eu<br />

surrupiei do Valdir, como já disse, matriculado<br />

por mim. Eram o exemplo perfeito<br />

<strong>de</strong> condução <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias e repetições <strong>de</strong> apelos<br />

usados até hoje com absoluto sucesso,<br />

inclusive na internet. Remédios para<br />

psioríase (caspa), paumolecência, fraqueza<br />

etc. são vendidos hoje pela mesma técnica<br />

centenária. Depoimentos <strong>de</strong> pessoas<br />

que usaram o produto, aval <strong>de</strong> técnicos da<br />

área, evidências científicas e a in<strong>de</strong>fectível<br />

afirmação <strong>de</strong> que “a indústria e os laboratórios<br />

não querem que você saiba”. Ou seja,<br />

em resumo, só é broxa quem quer. Esse<br />

Instituto Universal Brasileiro, ao qual já<br />

me referi, tinha uma técnica matadora <strong>de</strong><br />

envolvimento. Começava enviando uma<br />

carteirinha <strong>de</strong> estudante que, logo <strong>de</strong> cara,<br />

já compensava pela possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pagar<br />

meia entrada no cinema. Depois o tratava<br />

com uma individualida<strong>de</strong> que nem os mo<strong>de</strong>rnos<br />

computadores conseguem. Você era<br />

um estudante conhecido e amado por eles,<br />

ainda que a escola tivesse muitos milhares<br />

<strong>de</strong> inscritos. O material vinha em seu nome,<br />

e as avaliações <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho, via<br />

Correios, eram mais pessoais e próximas<br />

do que muitas das atuais faculda<strong>de</strong>s. Você<br />

passava a existir como integrante <strong>de</strong> uma<br />

família <strong>de</strong> pessoas que queriam crescer na<br />

vida e tinham reconhecimento universal.<br />

Aliás, o nome do curso e <strong>de</strong> uma certa igreja,<br />

ainda que me pareça simples coincidência,<br />

é o mesmo: Universal. No sentido <strong>de</strong><br />

mundo e <strong>de</strong> acolhimento. Semana que vem<br />

eu vou reproduzir algumas das peças que o<br />

Valdir recebia. Aos meus colegas redatores<br />

eu advirto: vão ser humilhados. Aqueles<br />

caras conheciam a alma humana.<br />

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />

e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />

editor e professor<br />

lulavieira.luvi@gmail.com<br />

30 7 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> <strong>2020</strong> - jornal propmark

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