17.04.2013 Views

“A Arte, mais uma vez, invadirá o Oficina. Suas ... - Colégio Oficina

“A Arte, mais uma vez, invadirá o Oficina. Suas ... - Colégio Oficina

“A Arte, mais uma vez, invadirá o Oficina. Suas ... - Colégio Oficina

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Ela era <strong>uma</strong> mulher de solenidades. Não falava,<br />

entoava. “Minha vida é extensa...”, era a frase<br />

com que iniciava a narrativa. Analfabeta, fazia<br />

literatura pela boca. E mesmo limitada por <strong>uma</strong><br />

seqüência de derrames, parte dos dedos com que<br />

tocava a lama do mundo paralisados, Ana era grande.<br />

Carregava nos gestos <strong>uma</strong> largura de alma. E o rio era seu<br />

espelho em <strong>mais</strong> de um sentido. A mulher que moldava o<br />

barro do chão só pisava o reflexo do céu.<br />

Ana das Carrancas cost<strong>uma</strong>va dizer que sua arte era a síntese de seu amor por um cego que via o<br />

mundo, mas não era visto por ele. Entre ela e Zé dos Barros nunca se soube quem era criador, quem era<br />

criatura. Ela já veio ao mundo retirante, na cidade pernambucana de Ouricuri. Mas diferente de quase<br />

todos, nunca lamentou a terra estéril sob seus pés. A estirpe de mulheres da qual era continuidade<br />

moldava pratos, panelas, vasos. Ana aprendeu com a mãe, e antes dela a avó, que do barro se arranca<br />

tudo, até a vida.<br />

Poucos anos depois dela, José Vicente de Barros nasceu em Jenipapo, outro canto sertanejo.<br />

Desembarcou na vida sem olhos, por culpa do amor incestuoso entre primos-irmão. Desde cedo a ele<br />

ensinaram que “quando Deus faz <strong>uma</strong> criança sem vista é porque quer que ela sobreviva como pedinte”.<br />

Para se localizar na escuridão, desde menino ele balançava a cabeça. E nesse de lá pra cá, de cá pra lá,<br />

encontrava equilíbrio mesmo nas trevas. Ana e Zé só cruzaram seus pés descalços quase trinta anos<br />

<strong>mais</strong> tarde. Ana tornara-se viúva desde que seu marido despencara de um pau-de-arara. Conheceu Zé<br />

pedindo esmolas na feira de Picos. Ele balançava guizos, cantava cantigas [...] Zé despertou. Pediu a<br />

moça certa em matrimônio. E passaram a dividir teto e misérias: Ana na feira, Zé nos guizos.<br />

Um dia a vizinha abordou Ana na rua. “Desenteirei açúcar do meu filho para dar esmola a Zé”, queixouse.<br />

O rosto de Ana queimou de vergonha. Tirou <strong>uma</strong> nota do bolso e retrucou: “Enteire de novo o<br />

açúcar do seu filho. Por Zé ele não vai passar fome”. Naquela noite não dormiu. Sua tristeza não coube<br />

na rede que dividia com Zé. Quando acordou, chamou o marido e anunciou: “Meu velho, nunca lhe fiz<br />

um pedido. Mas hoje lhe peço. De agora em diante, você não vai <strong>mais</strong> pedir esmola". Assustado, Zé<br />

rebateu: “Deus me fez sem vista para que eu pedisse esmola”. Ana fincou pé: “De hoje em diante sua<br />

vista é a minha. Você pisa o barro, eu faço a peça. Nós vamos levar para a feira, nós vamos ser felizes”.<br />

Ana pegou a enxada e caminhou até as margens do São Francisco, em Petrolina. Diante da fartura de<br />

líquidos, invocou o espírito do rio: “Meu grande Nosso Senhor São Francisco. Pelo poder que ostenta,<br />

pelas águas que estão correndo, do próprio barro melhore a nossa vida”. Ao terminar, juntou um bolo de<br />

lama e fez, sem que até hoje saiba como, a primeira carranca. Começou levando na feira, suportando<br />

calada riso e maldades. “É tão feia quanto a dona”, cutucavam. No dia seguinte, em <strong>vez</strong> de <strong>uma</strong>, Ana<br />

levava duas. Até que caiu nas graças dos turistas e dos ricos da cidade e, de lá, suas obras ganharam o<br />

mundo. Ela então deixou de ser Ana do Cego e virou Ana das Carrancas. E ele virou Zé dos Barros.<br />

As carrancas de Ana são diferentes de todas as outras que, desde o final do século XIX, apontaram a<br />

face horrenda na proa das barcas do São Francisco. A maioria dos carranqueiros célebres esculpe em<br />

madeira, Ana, em barro. Mas a maior singularidade são mesmo os olhos vazados do seu monstro. São<br />

eles que dão a expressão melancólica, contendo <strong>mais</strong> sofrimento do que ameaça, à obra de Ana. É do<br />

feminino que Ana tira sua carranca dilacerada diante da dor do mundo.<br />

“Os olhos vazados da carranca são <strong>uma</strong> homenagem a ele. O Zé pisa o barro, prepara o bolo, faz a<br />

forma no pensamento. Eu moldo. Furo o nariz, as orelhas. Então, toco um pedaço de pau bem feitinho<br />

no olho”, me contou ela, anos atrás. “Não me sinto bem furando os olhos. Furo com pena, com dor. É<br />

2008Salvador/sec./extraclasse/ OficinConcert/ 20080808_RoteiroGeralFina-EM.doc/prof-nJ

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!