Hipólito e Fedra nos caminhos de um mito - Universidade de Coimbra
Hipólito e Fedra nos caminhos de um mito - Universidade de Coimbra
Hipólito e Fedra nos caminhos de um mito - Universidade de Coimbra
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Carlos A. Martins <strong>de</strong> Jesus<br />
figura que, roçando a perversida<strong>de</strong>, ora incentiva a senhora à cons<strong>um</strong>ação do<br />
seu amor, ora lhe propõe filtros mágicos capazes – julga – <strong>de</strong> acalmar a sua<br />
doença. Ela é, mais do que qualquer outra personagem, o motor da tragédia.<br />
Quando revela a <strong>Hipólito</strong> o que por ele sente a madrasta, obrigando-o a<br />
<strong>um</strong> voto <strong>de</strong> silêncio, mesmo nesse momento, estamos em crer que age ainda<br />
na busca <strong>de</strong> <strong>um</strong>a solução para a <strong>de</strong>sgraça da sua senhora, como ela mesma<br />
confessa (vv. 695 sqq.). Dito <strong>de</strong> outro modo, e para sermos claros nas <strong>nos</strong>sas<br />
intenções, não conseguimos visl<strong>um</strong>brar em <strong>Hipólito</strong> qualquer personagem<br />
completamente inocente, da mesma forma que recusamos as leituras que<br />
atribuem à Ama, sem mais, <strong>um</strong> caráter pérfido e ardiloso. Se há momento<br />
<strong>de</strong> perfídia e qualquer espécie <strong>de</strong> ardil na peça, é <strong>Fedra</strong> quem o protagoniza<br />
quando, completamente <strong>de</strong>speitada e sem possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservar a<br />
sua fama honrada (vv. 725 sqq.), se <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>, <strong>de</strong> forma irrevogável, a pôr em<br />
prática o plano <strong>de</strong> morrer, não sem antes <strong>de</strong>ixar <strong>um</strong>a tabuínha escrita para<br />
o marido, na qual acusa o enteado <strong>de</strong> a ter tentado violar. <strong>Fedra</strong> ass<strong>um</strong>e,<br />
neste momento, <strong>um</strong>a postura claramente calculista e fria, capaz <strong>de</strong> sacrificar<br />
a própria vida por <strong>de</strong>speito – que julgamos ser, no limite, o verda<strong>de</strong>iro motivo<br />
do seu suicídio. Mas não <strong>de</strong>saparece, nesse instante, a simpatia que por ela<br />
terá criado o público nas cenas anteriores; e ela morre, vítima e carrasco <strong>de</strong><br />
si própria e da paixão, tanto joguete <strong>de</strong> <strong>um</strong>a <strong>de</strong>usa ofendida quanto bo<strong>de</strong><br />
sacrificial <strong>de</strong> <strong>um</strong>a casa manchada por <strong>um</strong> amor que não podia nunca ter sido<br />
dito, sequer sentido.<br />
Chega Teseu, encontra a esposa morta e não duvida, por instantes que<br />
seja, da veracida<strong>de</strong> das palavras escritas sobre a cera da tabuínha. Lança sobre<br />
o filho <strong>um</strong>a imprecação terrível, embora advertido pelo Coro e pelo próprio,<br />
e a tragédia cons<strong>um</strong>a-se quando <strong>Hipólito</strong> parte para o exílio. Há <strong>de</strong> ainda<br />
regressar a Trezena, contrariamente ao que anunciara na sua <strong>de</strong>spedida <strong>de</strong>ssa<br />
terra aprazível on<strong>de</strong> passara a infância. Mas o corpo moribundo que regressa<br />
não mais é <strong>um</strong> homem, antes a sombra <strong>de</strong> <strong>um</strong> ser que já o não é, capaz ainda da<br />
gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> espírito suficiente para perdoar o pai e escutar, da boca da própria<br />
Ártemis – a <strong>de</strong>usa a quem <strong>de</strong>votou toda a sua breve vida – palavras <strong>de</strong> consolo.<br />
Por isso o fizemos regressar com <strong>um</strong> traje diferente do que inicialmente<br />
envergava (<strong>de</strong> caçador); apostámos, neste momento, n<strong>um</strong>a única peça, <strong>um</strong>a<br />
saia em tons <strong>de</strong> branco celestial – do mesmo tecido que veste a <strong>de</strong>usa Ártemis<br />
–, sugestivo <strong>de</strong> <strong>um</strong>a figura que está já na fronteira entre o mundo dos vivos e o<br />
dos mortos, para quem a própria <strong>de</strong>usa anuncia a recompensa da imortalida<strong>de</strong><br />
na memória das gentes.<br />
O drama <strong>de</strong> <strong>Hipólito</strong> é esse, o <strong>de</strong> estar amarrado a <strong>um</strong> juramento <strong>de</strong> silêncio<br />
que o impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> salvar a própria vida. Casto (casto em <strong>de</strong>masia), abomina os<br />
prazeres da carne e, por isso mesmo, há <strong>de</strong> morrer. Porque a recusa <strong>de</strong> Afrodite,<br />
garante da or<strong>de</strong>m e da renovação cósmicas, é também <strong>um</strong> tremendo pecado<br />
198