Hipólito e Fedra nos caminhos de um mito - Universidade de Coimbra
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Arqueologia do agora: sobre a encenação <strong>de</strong> <strong>Hipólito</strong> pelo Thíasos<br />
<strong>de</strong> hybris, <strong>Hipólito</strong> não é, <strong>de</strong> forma alg<strong>um</strong>a, inocente. A excessiva – porque<br />
exclusiva e exacerbada – veneração <strong>de</strong> Ártemis, que cedo o lançou para <strong>um</strong>a<br />
virginda<strong>de</strong> ofensiva e contrária à natureza, é assim tão responsável pela sua<br />
morte quanto a paixão que por ele sente a madrasta. A sua vida asséptica<br />
revelou-se, afinal, igualmente errada e <strong>de</strong>sviada dos trilhos sociais e religiosos<br />
<strong>de</strong>sejáveis. E por isso, mais do que por qualquer outra razão, tem que morrer,<br />
como que completando a passagem para <strong>um</strong> plano que, esse sim, é mais o seu:<br />
o da não vida.<br />
No ponto que resta <strong>de</strong>sse triângulo surge Teseu, personagem enigmática<br />
e verda<strong>de</strong>iramente trágica que, no momento em que regressa ao seu palácio,<br />
assiste à sua ruína incontornável. Sobre ele pesam erros antigos, mas vai ainda<br />
pesar <strong>um</strong> outro – o <strong>de</strong> confiar cegamente na esposa morta e não conceber, em<br />
momento alg<strong>um</strong>, a inocência do filho. Se é certo que terão sido passos como este<br />
que valeram a Eurípi<strong>de</strong>s, ainda no seu tempo, a acusação <strong>de</strong> misógino 10 , parece<br />
também verda<strong>de</strong> a óbvia distribuição da culpa pelas três personagens centrais,<br />
que parece ser preocupação do dramaturgo, apontando mais diretamente no<br />
sentido da falibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> todo o ser h<strong>um</strong>ano, facto inevitável da sua condição. É<br />
a aniquilação total dos três vértices <strong>de</strong>sse triângulo o balanço da tragédia. <strong>Fedra</strong><br />
e <strong>Hipólito</strong> morrem, <strong>de</strong> facto, mas o rei com que termina a peça é, também ele,<br />
<strong>um</strong> ser <strong>de</strong>struído, a quem, não obstante, é ainda concebida a dádiva do perdão<br />
divino – valha ele, no momento, o que valer.<br />
Quando principiámos as reflexões conducentes à encenação do <strong>Hipólito</strong>,<br />
tendo em mãos <strong>um</strong>a renovada e bastante expressiva tradução <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>rico<br />
Lourenço 11 – sobretudo no que às o<strong>de</strong>s corais diz respeito –, <strong>de</strong> imediato se <strong>nos</strong><br />
afigurou <strong>um</strong>a imagem central: a <strong>de</strong> <strong>um</strong> leito, mais ou me<strong>nos</strong> estilizado, em torno<br />
do qual toda a ação <strong>de</strong>veria gravitar. Seria ele o símbolo da paixão, seria nele<br />
que jazeriam os protagonistas aniquilados, nele ainda que, a início, <strong>de</strong>svendaria<br />
todo o enredo a <strong>de</strong>usa Cípris. N<strong>um</strong>a altura do processo em que <strong>um</strong> encenador<br />
pensa mais por imagens do que por palavras ou conceitos, quando está em<br />
causa, por entre <strong>um</strong>a confusão <strong>de</strong> esquemas e rabiscos, literalmente <strong>de</strong>senhar a<br />
10 Damos <strong>um</strong> exemplo <strong>de</strong> As Mulheres que celebram as Tesmofórias <strong>de</strong> Aristófanes, peça <strong>de</strong><br />
411 a.C.: “Mas há já muito tempo que eu – pobre <strong>de</strong> mim! – fervo <strong>de</strong> vos ver enxovalhadas por<br />
Eurípi<strong>de</strong>s, esse filho <strong>de</strong> <strong>um</strong>a hortaliceira, e <strong>de</strong> ouvir toda a espécie <strong>de</strong> injúrias. Haverá alg<strong>um</strong><br />
insulto com que esse tipo não <strong>nos</strong> tenha brindado? E calúnias? Seja on<strong>de</strong> for, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que haja<br />
<strong>um</strong>a meia dúzia <strong>de</strong> espectadores, actores e coros, lá começa ele a chamar-<strong>nos</strong> levianas, doidas<br />
por homens, bêbadas, traidoras, tagarelas, uns zeros, a <strong>de</strong>sgraça completa dos maridos.”(vv.<br />
385-395). Tradução <strong>de</strong> M. F. Sousa e Silva.<br />
11 <strong>Hipólito</strong> foi pela primeira vez publicado pelo autor, em tradução, em 1993, na editora Colibri.<br />
Conheceu <strong>de</strong>pois <strong>um</strong>a reedição, revista e na mesma editora, em 1996. Quando contactámos o<br />
tradutor, fomos surpreendidos com a informação <strong>de</strong> que havia revisto gran<strong>de</strong>mente a peça, que<br />
aguardava publicação na coleção completa <strong>de</strong> teatro antigo, a ser editada pela Imprensa Nacional<br />
– Casa da Moeda. Ora, foi sobre esta última versão que <strong>de</strong>senvolvemos todo o processo.<br />
199