(C. 1385-1464) 2007 - Departamento de História - Universidade ...
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DANIEL AUGUSTO ARPELAU ORTA<br />
ESCRITA, PODER E GLÓRIA: CRONISTAS TARDO-MEDIEVAIS PORTUGUESES E A<br />
NOBREZA NO PRIMEIRO MOVIMENTO EXPANSIONISTA NO NOROESTE AFRICANO<br />
(C. <strong>1385</strong>-<strong>1464</strong>)<br />
Monografia apresentada como requisito parcial<br />
à obtenção <strong>de</strong> grau <strong>de</strong> Bacharel e Licenciado<br />
em <strong>História</strong>, Curso <strong>de</strong> <strong>História</strong>, Setor <strong>de</strong><br />
Ciências Humanas, Letras e Artes,<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Paraná.<br />
Orientadora: Profa. Dra. Fátima Regina<br />
Fernan<strong>de</strong>s<br />
CURITIBA<br />
<strong>2007</strong>
Para Dionísio Abrão, Suely Zanon Voss,<br />
Iolanda Galvão e <strong>de</strong>mais profissionais da<br />
pediatria do Hospital Erasto Gaertner (2001-<br />
2003). O meu muito obrigado pelo carinho,<br />
<strong>de</strong>dicação e ternura!<br />
ii
iii<br />
AGRADECIMENTOS<br />
Primeiramente à mamãe Carmen Maria, ao<br />
irmão Luiz Eduardo e à babá Maria.<br />
Aos <strong>de</strong>mais familiares <strong>de</strong> Londrina, que<br />
sempre me apoiaram na escolha da <strong>História</strong><br />
como ofício.<br />
À professora Fátima Regina Fernan<strong>de</strong>s, pela<br />
orientação rigorosa, pelos incentivos, críticas e<br />
sugestões ao longo do trabalho.<br />
Ao casal Ivone e Francisco Schaffer, pelos<br />
conselhos e exemplos <strong>de</strong> vida.<br />
Ao amigo Robson, que sempre foi paciente e<br />
prestativo.<br />
Aos amigos <strong>de</strong> curso Eduardo, Leandro,<br />
Luciane e Andréa, pelas horas agradáveis no<br />
pátio, corredores e salas da Reitoria.<br />
À Naiara Damas e Andréa Cabral pela ajuda<br />
em conseguir uma parte da documentação no<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />
Ao grupo PET, <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância na<br />
minha graduação.<br />
Ao CNPq, pelo fomento em forma <strong>de</strong> bolsa.<br />
Aos professores do <strong>Departamento</strong> <strong>de</strong> <strong>História</strong>,<br />
que <strong>de</strong> alguma forma contribuíram para a<br />
minha formação profissional.
SUMÁRIO<br />
RESUMO............................................................................................................................ v<br />
ABSTRACT ....................................................................................................................... vi<br />
INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 7<br />
1 DA CRÍTICA CONTEMPORÂNEA AO FAZER CRONÍSTICO TARDO-MEDIEVAL ............ 11<br />
1.1 VIDA E OBRA DOS CRONISTAS .............................................................................. 13<br />
1.2 O PRETÉRITO PERFEITO DAS CRÔNICAS ............................................................... 16<br />
1.3 OS ARGUMENTOS DE FERNÃO LOPES .................................................................. 17<br />
1.4 OS ARGUMENTOS DE GOMES EANES DE ZURARA ............................................... 21<br />
1.5 LIGANDO OS PONTOS DAS CRÔNICAS ................................................................... 25<br />
2 ADESÃO NO REINO E ESPÍRITO CRUZADÍSTICO NO NOROESTE AFRICANO ................ 28<br />
2.1 CRISE RÉGIA E O FIM DE UMA DINASTIA.............................................................. 30<br />
2.2 O NASCIMENTO DA DINASTIA DE AVIS................................................................. 33<br />
2.3 CRUZ E ESPADA NO NOROESTE AFRICANO........................................................... 39<br />
2.4 O APOIO DA NOBREZA AO ATAQUE DE CEUTA..................................................... 44<br />
2.5 O CONTROLE PORTUGUÊS E A SIMBOLOGIA DA CAVALARIA .............................. 48<br />
2.6 UMA ESTRATÉGIA DE ASCENSÃO POLÍTICA NA FRONTEIRA................................ 52<br />
2.7 RECOLHENDO AS ARMAS...................................................................................... 56<br />
3 DO PRETÉRITO PERFEITO AO PRESENTE MAIS-QUE-PERFEITO ................................... 57<br />
3. 1 FERNÃO LOPES E A ESCRITA DOS REIS................................................................ 60<br />
3.2 UMA TRANSIÇÃO DINÁSTICA INTERNA ................................................................ 62<br />
3.3 GOMES EANES DE ZURARA E A ESCRITA NOBILIÁRQUICA.................................. 64<br />
3.4 O DOCUMENTO E A CRÔNICA/MONUMENTO........................................................ 68<br />
CONCLUSÕES.................................................................................................................. 71<br />
REFERÊNCIAS................................................................................................................. 72<br />
ANEXOS .......................................................................................................................... 75<br />
iv
RESUMO<br />
Esta pesquisa histórica procurou compreen<strong>de</strong>r as estratégias <strong>de</strong> aliança entre a nobreza e a monarquia<br />
portuguesa entre os séculos XIV e XV. Para tal estudo, a análise valeu-se da Crónica <strong>de</strong> D. João I escrita por<br />
Fernão Lopes, e da Crónica da tomada <strong>de</strong> Ceuta, Crónica do Con<strong>de</strong> Dom Pedro <strong>de</strong> Meneses e Crónica do<br />
Con<strong>de</strong> Dom Duarte <strong>de</strong> Meneses, escritas por Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara. Analisando os argumentos dos<br />
cronistas para a redação <strong>de</strong> tais textos, percebeu-se que eles entendiam o ofício <strong>de</strong> cronista como o relato do<br />
passado com valor <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, ou ainda, o estatuto <strong>de</strong> historicida<strong>de</strong> era marcado exatamente pela compilação<br />
<strong>de</strong> tais documentos. No estudo do contexto <strong>de</strong> alteração dinástica no reino, percebeu-se que houve uma<br />
aproximação <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> nobres interessados em conseguir espaço político com a nova configuração<br />
dinástica. A partir <strong>de</strong> acordos <strong>de</strong> paz com o reino <strong>de</strong> Castela, criou-se um obstáculo aos nobres interessados<br />
em receber a armação da cavalaria, pois não haveria um local para tais prerrogativas nobiliárquicas. A praça<br />
<strong>de</strong> Ceuta, no noroeste africano, foi escolhida como lugar possível, pois através <strong>de</strong> argumentos <strong>de</strong> luta contra o<br />
muçulmano, i<strong>de</strong>ntificado como infiel, legitimou-se o ataque a tal localida<strong>de</strong>. Após a conquista, houve uma<br />
cerimônia <strong>de</strong> investidura, mas tal simbolismo teria significado somente se o local permanecesse sob comando<br />
português, e diante da escolha <strong>de</strong> possíveis capitães, surgiu o nome do Con<strong>de</strong> Dom Pedro <strong>de</strong> Meneses. Sobre<br />
este nobre, a pesquisa i<strong>de</strong>ntificou a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste adquirir prestígio e po<strong>de</strong>r com tal nomeação, sendo a<br />
região <strong>de</strong> fronteira um espaço <strong>de</strong> ascensão política. E por fim, a pesquisa i<strong>de</strong>ntificou que a escrita das<br />
crônicas ocorreu em contextos distintos dos narrados, sendo que foi analisado o contexto <strong>de</strong> produção e suas<br />
ênfases temáticas. Com relação ao texto <strong>de</strong> Fernão Lopes, i<strong>de</strong>ntificou-se que o rei Dom Duarte <strong>de</strong>sejava uma<br />
composição da <strong>História</strong> do reino, sendo que os textos <strong>de</strong> Fernão Lopes po<strong>de</strong>m comparar reis e suas condutas,<br />
afirmando as ações da dinastia <strong>de</strong> Avis frente a <strong>de</strong> Borgonha. No caso das crônicas <strong>de</strong> Gomes Eanes <strong>de</strong><br />
Zurara, a solicitação do rei Dom Afonso V sugere a preocupação <strong>de</strong> conhecer ações passadas, e a partir disso,<br />
retribuir os nobres. O elemento prescritivo, que i<strong>de</strong>ntifica um estereótipo, apresenta-se nas crônicas<br />
analisadas, po<strong>de</strong>ndo ser um traço <strong>de</strong> conduta esperado pelo corpo político português. Neste sentido, as<br />
crônicas apresentam-se como memórias, que justificam suas compilações para a manutenção <strong>de</strong> práticas<br />
personalistas.<br />
Palavras-chave: cronistas tardo-medievais; Fernão Lopes; Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara; Portugal; século XV;<br />
Ceuta; fronteira; relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.<br />
v
ABSTRACT<br />
This historical research tried to un<strong>de</strong>rstand the alliance strategy between the nobility and the Portuguese<br />
monarchy in the 14th and 15th century. For such study, the research used Crónica <strong>de</strong> D. João I, written by<br />
Fernão Lopes, and Crónica da tomada <strong>de</strong> Ceuta, Crónica do Con<strong>de</strong> Dom Pedro <strong>de</strong> Meneses and Crónica do<br />
Con<strong>de</strong> Dom Duarte <strong>de</strong> Meneses, written by Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara. Analyzing the chroniclers’ arguments to<br />
write such texts, it is noticed that they knew the chronicler occupation as the story of the past with a true<br />
value, or still, the status of historicity was marked exactly for the compilation of such documents. In the<br />
study of context of dynasty changing in the kingdom, it is noticed that a plenty of nobles approached<br />
concerned to have political space with the new dynasty arrangement. From peace agreements with Castile<br />
kingdom, an obstacle was raised to nobles who wanted to receive chivalry armament, because there wouldn’t<br />
be a place to such nobility prerogatives. The Celta site, in the northwest of Africa, was chosen as a possible<br />
place, therefore through the arguments of fight against the Muslim, i<strong>de</strong>ntified as unfaithful, the attack to such<br />
locality was legitimized. After the conquest, there was an investiture ceremony, but such symbolism would<br />
only have meaning if the place was kept un<strong>de</strong>r Portuguese command, and in the search for possible captains,<br />
the name of Con<strong>de</strong> Dom Pedro <strong>de</strong> Meneses was mentioned. About this noble, the search i<strong>de</strong>ntified the<br />
possibility of him acquiring prestige and power due to this nomination, being the bor<strong>de</strong>r region a space of<br />
political rise. And finally, the search i<strong>de</strong>ntified that the writing of the chronicles happened in different<br />
contexts, consi<strong>de</strong>ring that the making contexts and its thematic emphases was analyzed. About Fernão Lopes’<br />
texts, the study i<strong>de</strong>ntified that king Dom Duarte wished a compilation of the kingdom’s history, consi<strong>de</strong>ring<br />
that Fernão Lopes’ texts can compare kings and their behaviors, raising the actions of Avis dynasty ahead of<br />
Borgonha dynasty. In the case of Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara chronicles, the request of king Dom Afonso V,<br />
suggests the concern to know the past actions, and from this, repay the nobles. The prescript elements, that<br />
i<strong>de</strong>ntify a stereotype, are mentioned in the analyzed chronicles, being able to be a trace of behavior expected<br />
by the Portuguese political corp. At this mean, the chronicles represent memories, which justify their<br />
compilation to keep personal practical.<br />
Key-words: late medieval chronicles, Fernão Lopes; Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara; Portugal; 15th century; Ceuta;<br />
bor<strong>de</strong>r; power relations.<br />
vi
INTRODUÇÃO<br />
O recorte temporal do presente trabalho <strong>de</strong> pesquisa histórica abarca o final do<br />
século XIV e gran<strong>de</strong> parte do século XV, e comumente esta baliza é i<strong>de</strong>ntificada pela<br />
mudança da Ida<strong>de</strong> Média para a Ida<strong>de</strong> Mo<strong>de</strong>rna; adotaremos as terminologias Baixa<br />
Ida<strong>de</strong> Média e Período Tardo-medieval. Note-se que estamos falando do Oci<strong>de</strong>nte<br />
Europeu, mais especificamente da Península Ibérica e do noroeste africano.<br />
A ocupação muçulmana na região do norte da África e península Ibérica ocorreu<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século VIII, fruto da expansão rápida do que alguns chamam <strong>de</strong> Império<br />
islâmico. 1 A contrapartida da Cristanda<strong>de</strong> ocorre na direção <strong>de</strong> reocupar os espaços,<br />
através dos argumentos <strong>de</strong> possuírem ligações com os antigos habitantes, e <strong>de</strong> lutar<br />
contra os muçulmanos, classificados como infiéis. 2 Neste sentido, os cristãos<br />
conseguem paulatinamente ocupar os territórios, no processo chamado <strong>de</strong> Reconquista;<br />
foi neste processo que os vários reinos ibéricos na Ida<strong>de</strong> Média se formaram, compondo<br />
espaços <strong>de</strong> fronteira ao muçulmano.<br />
A organização social da Europa, em especial a formulação proposta pelos<br />
eclesiásticos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XI, separava os grupos sociais por categorias<br />
hierarquizadas, <strong>de</strong>finidas por critérios i<strong>de</strong>ológicos miticamente protegidos, e sua<br />
composição era estabelecida através do nascimento ou por rituais <strong>de</strong> sagração. 3 Tal<br />
conformação societária tinha por objetivo dividir funções, e no contexto da pesquisa,<br />
observa-se uma transformação para o conceito <strong>de</strong> estados-or<strong>de</strong>ns, no sentido<br />
antropológico que <strong>de</strong>fine gradações <strong>de</strong> prestígio, ofícios, estilos <strong>de</strong> vida, enfim,<br />
condições <strong>de</strong> distinções que não se assentavam necessariamente em valores religiosos. 4<br />
No final do século XIV, o reino <strong>de</strong> Portugal passou por uma crise dinástica, e na<br />
formação da segunda dinastia, observamos que vários nobres se beneficiaram com o<br />
processo, alcançando espaço político com a nova configuração. A disputa política entre<br />
os reinos <strong>de</strong> Portugal e Castela seguiu aparentemente até 1412, ano em que os reinos<br />
firmaram um eficiente acordo <strong>de</strong> paz, on<strong>de</strong> se comprometiam a uma trégua nos conflitos<br />
1<br />
Sobre este assunto, ver: HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. São Paulo: Companhia<br />
das Letras, 2006. 703 p.<br />
2<br />
Uma abordagem direta ao assunto po<strong>de</strong> ser conferida em: ANDRADE FILHO, Ruy <strong>de</strong> Oliveira. Os<br />
muçulmanos na Península Ibérica. São Paulo: Contexto, 1989. 78 p.<br />
3<br />
O estudo clássico sobre este tema encontra-se em: DUBY, Georges. As três or<strong>de</strong>ns ou o imaginário<br />
do feudalismo. Lisboa: Editorial Estampa, 1982. 383 p.<br />
4<br />
Sobre esta <strong>de</strong>finição para o contexto <strong>de</strong> Portugal, ver: SOUSA, Armindo <strong>de</strong>. A socialida<strong>de</strong><br />
(estruturas, grupos e motivações). In: MATTOSO, José. (Org.) <strong>História</strong> <strong>de</strong> Portugal. Lisboa: Editorial<br />
Estampa, 1993. v. II. p. 391-480.<br />
7
militares. No entanto, os nobres cavaleiros acabavam não tendo um local legitimamente<br />
instituído para valerem-se da prerrogativa bélica, e conseguirem privilégios.<br />
Restava aos portugueses encontrar um novo local para fazer uso <strong>de</strong> armas,<br />
principalmente porque era intenção do rei Dom João I armar seus filhos como<br />
cavaleiros. Ainda havia, neste período, o reino muçulmano <strong>de</strong> Granada na própria<br />
Península Ibérica, mas a conquista <strong>de</strong>ste estava reservada ao reino <strong>de</strong> Castela. O local<br />
escolhido pelos portugueses foi a praça <strong>de</strong> Ceuta, no noroeste africano. As preparações<br />
ocorreram até o ano <strong>de</strong> 1415, quando conseguem atacar e dominar a cida<strong>de</strong>. Com o<br />
controle, foi firmado um acordo on<strong>de</strong> alguns nobres ficaram responsáveis pela<br />
manutenção da cida<strong>de</strong> em nome português, e os <strong>de</strong>mais voltariam ao reino. Neste<br />
contexto, portanto, selecionamos como objeto <strong>de</strong> análise a formação da segunda dinastia<br />
portuguesa, os argumentos para a tomada e permanência <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> nobres na<br />
praça <strong>de</strong> Ceuta, em África.<br />
A mudança em estruturas e mentalida<strong>de</strong>, que caracteriza a alteração conceitual<br />
<strong>de</strong> Ida<strong>de</strong> Média e Ida<strong>de</strong> Mo<strong>de</strong>rna, po<strong>de</strong> ser observada na Europa que antes do<br />
expansionismo atlântico era marcada pelo elemento particular e restrito <strong>de</strong> reinos que se<br />
organizavam principalmente enquanto unida<strong>de</strong>s soberanas sobre seus territórios e<br />
possessões, e pelo elemento personalista e senhorial <strong>de</strong> associação política dos grupos<br />
aristocráticos. 5 Com a <strong>de</strong>scoberta e domínio <strong>de</strong> territórios em África, América e Ásia,<br />
percebe-se que os reinos procuraram se estruturar enquanto unida<strong>de</strong>s, na intenção <strong>de</strong><br />
abarcar o controle <strong>de</strong>stas regiões. Po<strong>de</strong>-se perceber, portanto, que um dos elementos da<br />
transição da Ida<strong>de</strong> Média para a Ida<strong>de</strong> Mo<strong>de</strong>rna ocorreu na esfera administrativa, com a<br />
consolidação <strong>de</strong> estruturas jurídicas que permitiram a formação <strong>de</strong> Estados; e o que<br />
antes marcava uma relação política senhorial ou feudo-vassálica foi aos poucos<br />
transformando em organizações burocráticas ramificadas. 6<br />
A pesquisa não está preocupada em analisar a alteração estrutural dos reinos<br />
europeus, nem apontar que as motivações econômicas, <strong>de</strong>rivadas <strong>de</strong> um impulso<br />
burguês, foram a força propulsora do expansionismo ibérico. Estamos preocupados com<br />
os elementos régio-nobiliárquicos do contexto pesquisado, até porque a baliza temporal<br />
marca a primeira fase <strong>de</strong>sta saída européia rumo aos trópicos, sendo melhor tratar-se <strong>de</strong><br />
5<br />
Sobre esta mudança estrutural, consultar: STRAYER, Joseph R. Origens medievais do Estado<br />
mo<strong>de</strong>rno. Lisboa: Grandiva, [s.d.]. 116 p.<br />
6<br />
Os trabalhos que melhor exploram o tema com relação a Portugal são <strong>de</strong> António Manuel Hespanha.<br />
Uma síntese das principais idéias po<strong>de</strong> ser conferida em: HESPANHA, António Manuel. As estruturas<br />
políticas em Portugal na Época Mo<strong>de</strong>rna. In: TENGARRINHA, José (Org.) <strong>História</strong> <strong>de</strong> Portugal.<br />
Bauru: EDUSC, 2001. p. 117-181.<br />
8
uma transição, marcada por transformações e permanências.<br />
Assim sendo, po<strong>de</strong>mos investigar o papel que a nobreza representou <strong>de</strong>ntro do<br />
processo inicial <strong>de</strong> expansão ultramarina, pois a documentação selecionada refere-se<br />
com gran<strong>de</strong> atenção aos nobres que escolheram como estilo <strong>de</strong> vida a arte da guerra,<br />
cruzando o mar Mediterrâneo e permanecendo em conflito perene com os muçulmanos<br />
no noroeste africano. A pesquisa está, portanto, atenta em indagar a intensida<strong>de</strong> do traço<br />
essencialmente nobre e medieval que permeava os portugueses que lutaram e<br />
permaneceram no noroeste africano na primeira meta<strong>de</strong> do século XV.<br />
O resultado do trabalho <strong>de</strong> pesquisa foi estruturado em três capítulos, que foram<br />
divididos para compor diferentes perspectivas da análise da documentação, mas que<br />
possuem uma ligação entre si. O primeiro capítulo aborda basicamente uma discussão<br />
acerca da produção <strong>de</strong> textos cronísticos, i<strong>de</strong>ntificados como um gênero histórico do<br />
período. A pesquisa baseou-se em analisar obras <strong>de</strong> dois cronistas, Fernão Lopes e<br />
Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara, e o capítulo procura compreen<strong>de</strong>r quais eram as noções sobre o<br />
fazer cronístico, isto é, como os cronistas expressaram acerca do processo <strong>de</strong> escrita<br />
histórica.<br />
O segundo capítulo trata da transição <strong>de</strong> dinastias, e a ascensão <strong>de</strong> Dom João I<br />
como monarca <strong>de</strong> Avis, bem como as estratégias estabelecidas para a sua consolidação<br />
por parte dos nobres. Os argumentos e motivações para a ida até Ceuta são discutidos no<br />
que se refere aos objetivos e forma ao discurso tanto da casa régia como para os nobres<br />
que a<strong>de</strong>riram ao projeto. Sendo assim, o capítulo procura perceber a vinculação do<br />
discurso cruzadístico com os objetivos régio-nobiliárquicos, não apenas enquanto<br />
projeto, mas como estratégia <strong>de</strong> ação; ação esta promotora à abertura <strong>de</strong> novas fronteiras<br />
<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r em território africano, pautadas por elementos religiosos e militares.<br />
E por fim, o terceiro e último capítulo procura analisar o contexto <strong>de</strong> produção<br />
das crônicas, que é distinto do seu conteúdo. Fernão Lopes escreve suas crônicas a partir<br />
da década <strong>de</strong> 1430, mas os feitos <strong>de</strong> seus protagonistas eram do século XIV; Gomes<br />
Eanes <strong>de</strong> Zurara, por seu turno, escreve <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1449 sobre fatos <strong>de</strong> 1412 até muito<br />
próximos <strong>de</strong> seu cotidiano. Neste hiato temporal entre o ato <strong>de</strong> escrever e o conteúdo<br />
relatado, a discussão do fazer cronístico tratada no primeiro capítulo é reforçada pelos<br />
elementos que indicam uma influência social sobre os enfoques dados pelos cronistas,<br />
na tentativa <strong>de</strong> encontrar um ponto comum entre o fazer cronístico e as intenções que os<br />
solicitantes davam para tais compilações <strong>de</strong> dados históricos. Em outras palavras, este<br />
último capítulo está centrado na análise <strong>de</strong> como se aliava a tarefa <strong>de</strong> recuperar fatos<br />
9
passados com os objetivos em compor os textos e contextos distintos, atentando-se para<br />
o contexto <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> tais obras; enfim, tentar enten<strong>de</strong>r as solicitações <strong>de</strong> tais<br />
compilações, e suas motivações.<br />
Com a divisão proposta, queremos <strong>de</strong>ixar claro que estamos analisando uma<br />
representação dos acontecimentos a partir do olhar dos cronistas e dos solicitantes para<br />
tais documentos, construídos em um contexto distinto e com certas ênfases.<br />
Em suma, esta pesquisa histórica procura estabelecer um diálogo entre a<br />
bibliografia que trata da expansão ultramarina portuguesa no século XV e as <strong>de</strong>scrições<br />
régio-nobiliárquicas encontradas nas crônicas selecionadas. As estratégias <strong>de</strong> aliança<br />
entre a monarquia e um grupo <strong>de</strong> nobres são o foco do trabalho, bem como as intenções<br />
<strong>de</strong> construir em forma <strong>de</strong> crônica não apenas os fatos passados, como novos territórios<br />
<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r português no noroeste africano, abrindo a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ação pautada na<br />
guerra e na ascensão sócio-política, fruto do comportamento <strong>de</strong> confronto em área <strong>de</strong><br />
fronteira.<br />
10
1 DA CRÍTICA CONTEMPORÂNEA AO FAZER CRONÍSTICO TARDO-MEDIEVAL<br />
Seria quase uma redundância afirmar que o estudo histórico faz-se a partir <strong>de</strong><br />
uma seleção <strong>de</strong> fontes ou documentos. No entanto, entre os métodos <strong>de</strong> análise da<br />
pesquisa histórica, po<strong>de</strong>-se perceber que houve, mais consi<strong>de</strong>ravelmente a partir do<br />
século XIX, um olhar voltado não apenas para o conteúdo dos documentos, para as<br />
informações que po<strong>de</strong>riam dizer sobre os acontecimentos passados, mas também para o<br />
fato <strong>de</strong> produzir tais documentos, isto é, para o fazer histórico. Aqui estamos<br />
consi<strong>de</strong>rando a <strong>História</strong> como campo <strong>de</strong> estudo nas instituições universitárias européias,<br />
com ca<strong>de</strong>iras específicas na área. 7<br />
O estudo epistemológico do campo histórico assumiu, portanto, um ramo <strong>de</strong>ntre<br />
os vários existentes na ciência histórica. Des<strong>de</strong> o século XIX po<strong>de</strong>mos observar uma<br />
preocupação científica com a chamada teoria da <strong>História</strong>, influenciados <strong>de</strong> certa forma<br />
pelo sentido universalista que os iluministas davam à idéia <strong>de</strong> tempo; ou nas palavras <strong>de</strong><br />
Reinhart Koselleck, “[...] a passagem da noção <strong>de</strong> história universal como conjunto<br />
composto por unida<strong>de</strong>s separadas, um agregado, ao conceito <strong>de</strong> história universal como<br />
sistema, com o que a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma teoria da história foi conceitualmente<br />
compreendida e relacionada à noção <strong>de</strong> globo terrestre como esfera <strong>de</strong> ação.” 8 Não<br />
preten<strong>de</strong>mos diferenciar a noção <strong>de</strong> estudo da historiografia e da <strong>História</strong>, isto é, o<br />
estudo das obras produzidas por historiadores enquanto ciência, e o estudo dos<br />
documentos i<strong>de</strong>ntificados como fontes históricas. Mas a digressão aqui reportada serve<br />
<strong>de</strong> base para pensar em algumas conclusões que aqueles estudos trouxeram à luz, como<br />
a forma pelas quais os autores entendiam o fazer e tempos históricos, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da<br />
época e fonte estudada. Em outras palavras, aqueles estudos tentaram observar as<br />
formas e meios encontrados e afirmados pelos autores <strong>de</strong> textos históricos, relacionando<br />
a preocupação do passado com o presente, o fato <strong>de</strong> produzir um conhecimento que<br />
<strong>de</strong>pois foi classificado como fonte; <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>stes estudos, procurou-se perceber quais<br />
eram as teorias sobre o fazer histórico, as concepções <strong>de</strong> <strong>História</strong>.<br />
A preocupação <strong>de</strong> tais reflexões caminhou na direção <strong>de</strong> perceber que os<br />
documentos não mostravam a neutralida<strong>de</strong> que afirmavam, que os estudos apontavam<br />
7<br />
Sobre o assunto, ver: LE GOFF, Jacques. <strong>História</strong> e memória. Campinas: Editora da Unicamp, 2005.<br />
544 p.<br />
8<br />
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro: Contraponto / PUC-Rio, 2006. p. 132.<br />
11
apenas uma visão elaborada por seu autor, e não a totalida<strong>de</strong>, a <strong>História</strong>. Como José<br />
Carlos Reis afirma, “Ele [ser humano] apenas tomou conhecimento do seu lado feito,<br />
resultado, inconsciente, o que significou a ampliação da consciência e do seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />
construção da história.” 9 Com isso, as interpretações históricas procuraram evi<strong>de</strong>nciar<br />
mais indícios e possibilida<strong>de</strong>s do que verda<strong>de</strong>s; ou nas palavras <strong>de</strong> Marc Bloch, “não<br />
sentimos mais a obrigação <strong>de</strong> buscar impor a todos os objetos do conhecimento um<br />
mo<strong>de</strong>lo intelectual uniforme, inspirado nas ciências da natureza física, uma vez que até<br />
nelas esse gabarito <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser integralmente aplicado.” 10 Note-se que estamos se<br />
reportando tanto aos estudos quanto aos documentos ou afirmações históricas que<br />
posteriormente foram <strong>de</strong>nominados <strong>de</strong> oficiais, ou ainda, aqueles eram tidos como as<br />
fontes primárias para o conhecimento do passado, ou em última análise, para<br />
documentos que tivessem o foco explícito <strong>de</strong> tratar e ser referência ao conhecimento<br />
passado, ou por ele i<strong>de</strong>ntificado.<br />
A alteração epistemológica do fazer historiográfico veio acompanhada da<br />
ampliação do conceito <strong>de</strong> fonte, que passou a ser qualquer traço humano, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que<br />
<strong>de</strong>vidamente interrogado pelo método <strong>de</strong> pesquisa. Houve na seleção da documentação<br />
um aparente <strong>de</strong>sprestígio com relação aos documentos classificados como oficiais, pois<br />
creditavam que a <strong>História</strong> feita por ou com eles era ten<strong>de</strong>nciosa, legitimadora e<br />
privilegiaria apenas o lado do po<strong>de</strong>r. Buscou-se, em contrapartida, meios <strong>de</strong> tentar<br />
burlar esta fórmula, caracterizada como <strong>História</strong> tradicional. Se os documentos oficiais<br />
informavam com mais ênfase os acontecimentos políticos, buscava-se fontes que<br />
<strong>de</strong>ssem informações sobre os anônimos, o cotidiano não relatado nos gabinetes<br />
diplomáticos. Sobre a renovação conceitual da <strong>História</strong> e dos documentos, José Carlos<br />
Reis assim resume sobre a tipologia documental <strong>de</strong>senvolvida principalmente no século<br />
XX:<br />
Os documentos referem-se à vida cotidiana das massas anônimas, à sua vida produtiva, às suas<br />
crenças coletivas. Os documentos não são mais ofícios, cartas, editais, textos explícitos sobre a<br />
intenção do sujeito, mas listas <strong>de</strong> preços, <strong>de</strong> salários, séries <strong>de</strong> certidões <strong>de</strong> batismo, óbito,<br />
casamento, nascimento, fontes notariais, contratos, testamentos, inventários. A documentação<br />
massiva e involuntária é prioritária em relação aos documentos voluntários e oficiais. 11<br />
9 REIS, José Carlos. Escola dos Annales. A inovação em <strong>História</strong>. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 22.<br />
10 BLOCH, Marc. Apologia da <strong>História</strong> ou o ofício do historiador. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Editor,<br />
2001. p. 49.<br />
11 REIS, José Carlos. op. cit., p. 23.<br />
12
Se por um lado percebemos uma ampliação do conceito <strong>de</strong> <strong>História</strong> e <strong>de</strong><br />
documentação, com pesquisas baseadas em fontes antes não contempladas, ou<br />
analisadas das mais variadas formas, também atentamos para o fato <strong>de</strong> que as crônicas<br />
régias, nossa fonte <strong>de</strong> pesquisa, po<strong>de</strong>m sofrer igualmente um processo <strong>de</strong> investigação<br />
sobre os meios expressados para sua composição, além propriamente do conteúdo<br />
registrado. A crítica que elas po<strong>de</strong>m sofrer em relação ao conteúdo ser marcado por uma<br />
legitimação régio-nobiliárquica não impe<strong>de</strong>, na nossa ótica, a análise <strong>de</strong> seu conteúdo e<br />
objetivo <strong>de</strong> composição, até porque este é um traço para se enten<strong>de</strong>r a produção dos<br />
chamados documentos oficiais.<br />
O que preten<strong>de</strong>mos analisar neste capítulo, a saber, as concepções <strong>de</strong> <strong>História</strong> e<br />
produção do gênero histórico pelos cronistas, caminha na direção justamente <strong>de</strong><br />
concordar com a perspectiva <strong>de</strong> análise que toma a documentação como uma construção<br />
social e política, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte se a consi<strong>de</strong>ra uma produção consciente ou não. Em<br />
outras palavras, o que objetiva-se não é explorar novas fontes com as mesmas<br />
perguntas, mas investigar os documentos chamados <strong>de</strong> oficiais sabendo da sua<br />
construção consciente, evitando, portanto, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aceitarmos as crônicas<br />
como informações sem um <strong>de</strong>vido filtro <strong>de</strong> interpretação <strong>de</strong> seu conteúdo. In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />
<strong>de</strong> se tratar <strong>de</strong> uma documentação oficial, seu conteúdo é <strong>de</strong> suma importância para o<br />
entendimento das estratégias políticas levadas a cabo no contexto ibérico, sendo que a<br />
própria expressão dos cronistas informa como pensavam os eruditos da corte portuguesa<br />
no século XV.<br />
1.1 VIDA E OBRA DOS CRONISTAS<br />
Antes <strong>de</strong> analisar o conteúdo das crônicas, tomemos algumas informações sobre<br />
a vida dos cronistas, pois <strong>de</strong>sta forma po<strong>de</strong>remos enten<strong>de</strong>r um pouco sobre on<strong>de</strong> e como<br />
eles trabalhavam. Estes dados po<strong>de</strong>m ajudar a enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> que forma eles tinham acesso<br />
aos documentos necessários para compor seus relatos, e como eles po<strong>de</strong>riam diferenciar<br />
ativida<strong>de</strong>s que acabariam por <strong>de</strong>finir o gênero histórico que se propunham a realizar nas<br />
crônicas.<br />
Acerca da vida <strong>de</strong> Fernão Lopes, temos conhecimento que provavelmente<br />
nasceu entre 1380 e 1390, sendo originário <strong>de</strong> família vilã, da região <strong>de</strong> Lisboa. A partir<br />
<strong>de</strong> 1418 <strong>de</strong>sempenha funções <strong>de</strong> guarda-mor da Torre do Tombo, tendo amplo acesso<br />
13
aos documentos reais. Conforme assinala Marcella Lopes Guimarães, “em 1434, Fernão<br />
Lopes foi nomeado cronista oficial do reino português pelo monarca D. Duarte, embora<br />
se conjecture que muito antes tenha se <strong>de</strong>dicado à tarefa <strong>de</strong> historiar os reis<br />
portugueses.” 12 Também temos dados <strong>de</strong> que ele foi escrivão dos infantes Dom Duarte e<br />
Dom Pedro, estando muito próximo do cotidiano <strong>de</strong>stes, partilhando experiências e<br />
realida<strong>de</strong>s da corte.<br />
A caracterização feita por Marcella Lopes Guimarães sobre o cronista Fernão<br />
Lopes segue a conceitualização <strong>de</strong> Jacques Verger <strong>de</strong> homem <strong>de</strong> saber, isto é, um<br />
sujeito que não freqüentou obrigatoriamente a universida<strong>de</strong>, mas tinha contato com<br />
livros, com a cultura escrita e as formas <strong>de</strong> conhecimento da época. 13 Concordamos com<br />
tal conceito, e no estudo que seguirá, po<strong>de</strong>remos observar a aplicabilida<strong>de</strong> do termo.<br />
Chegaram até o nosso tempo três crônicas escritas por ele, a saber: Crónica <strong>de</strong><br />
El-Rei D. Pedro, composta no final da década <strong>de</strong> 1430 e antes <strong>de</strong> 1443, Crónica <strong>de</strong> El-<br />
Rei D. Fernando, escrita no meio da década <strong>de</strong> 1440, e Crónica <strong>de</strong> El-Rei D. João I,<br />
esta elaborada em duas partes, <strong>de</strong> redação na quinta década do século XV. No entanto,<br />
como nos lembrou acima Marcella Lopes Guimarães, estas crônicas po<strong>de</strong>m ter sido<br />
elaboradas em datas mais remotas, isto é, antes da sua nomeação em 1434. Como os<br />
títulos indicam, trata-se <strong>de</strong> textos que procuram centrar a trama nas figuras dos reis, mas<br />
com espaço para os <strong>de</strong>mais setores sociais do reino português. Como afirmam Antônio<br />
José Saraiva e Óscar Lopes,<br />
A gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> Fernão Lopes como historiador consiste, principalmente, nesta visão<br />
multifacetada que abrange os aspectos sociais da vida nacional [sic] e que lhe permitiu<br />
transmitir-nos o fresco global <strong>de</strong> uma época, em vez <strong>de</strong> simples narrativas <strong>de</strong> aventuras <strong>de</strong> força<br />
e coragem <strong>de</strong> acordo com a i<strong>de</strong>ologia cavaleiresca, como as que nos apresentam outros cronistas<br />
medievos. Graças a esta superiorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> visão, possuímos hoje um precioso relato <strong>de</strong> conjunto<br />
da gran<strong>de</strong> crise social que marcou em Portugal a passagem da Ida<strong>de</strong> Média para os tempos<br />
mo<strong>de</strong>rnos. 14<br />
Com o texto <strong>de</strong> Fernão Lopes, temos, portanto, um panorama <strong>de</strong> várias forças<br />
políticas, <strong>de</strong> acontecimentos e traços individuais que foram <strong>de</strong>cisivos para a alteração da<br />
dinastia <strong>de</strong> Borgonha para a <strong>de</strong> Avis. Na nossa pesquisa, entretanto, serviremos apenas<br />
12 GUIMARÃES, Marcella Lopes. Estudo das representações <strong>de</strong> monarca nas Crônicas <strong>de</strong> Fernão<br />
Lopes (séculos XIV e XV): o espelho do rei. Tese (Doutorado em <strong>História</strong>) – Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do<br />
Paraná, Curitiba, 2004. f. 41.<br />
13 Ibid., f. 45.<br />
14 SARAIVA, Antônio José; LOPES, Óscar. <strong>História</strong> da literatura portuguesa. Porto: Editora Porto,<br />
2000. p. 127.<br />
14
da última crônica escrita por ele, a que <strong>de</strong>talha a ascensão do rei Dom João I. 15<br />
Sobre a vida <strong>de</strong> Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara, não temos informações exatas sobre o<br />
ano <strong>de</strong> nascimento, mas provavelmente entre 1400 e 1410, na região <strong>de</strong> Santarém. Era<br />
filho <strong>de</strong> eclesiástico e, como Fernão Lopes, não existe indícios que tenha estudado em<br />
universida<strong>de</strong>s, sendo, portanto, um autodidata da corte portuguesa; talvez possamos<br />
i<strong>de</strong>ntificá-lo como homem <strong>de</strong> saber. Conforme Aida Fernanda Dias, “por carta <strong>de</strong> 6 <strong>de</strong><br />
Junho <strong>de</strong> 1454, D. Afonso V nomeia para o cargo <strong>de</strong> guarda-mor das escrituras da Torre<br />
do Tombo, até aí ocupado por Fernão Lopes, Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara, isto com<br />
‘prazimento’ daquele, porque ‘é já tam velho e flaco que per si nom po<strong>de</strong> bem servir o<br />
dito oficio’.” 16 Fernão Lopes foi substituído em vida, sendo que a autoria das crônicas<br />
estaria sob o nome <strong>de</strong> Zurara, mas é muito provável que Fernão Lopes tenha auxiliado<br />
Zurara nas redações, ou ainda, o novo guarda-mor talvez se utilizou <strong>de</strong> escritos <strong>de</strong><br />
Fernão Lopes para compor seus textos, principalmente nos seus primeiros textos.<br />
Do trabalho cronístico <strong>de</strong> Zurara, conservam-se atualmente quatro crônicas, que<br />
po<strong>de</strong>m ser divididas em dois grupos. O primeiro grupo inclui a Crônica da tomada <strong>de</strong><br />
Ceuta, obra iniciada em 1449 e terminada no ano seguinte, que é aceita como a terceira<br />
parte das crônicas sobre Dom João I elaboradas por Fernão Lopes; e a Crônica dos<br />
feitos <strong>de</strong> Guiné, cuja versão foi elaborada entre os anos <strong>de</strong> 1452 e 1453. Estas duas<br />
crônicas possuem uma característica bem <strong>de</strong>finida, a saber: relatam com gran<strong>de</strong><br />
autorida<strong>de</strong> os acontecimentos dos reis Dom João I e Dom Duarte nas ações<br />
ultramarinas. Note-se, pelas datas, que Zurara foi nomeado guarda-mor em 1454, mas<br />
até aquele momento, ele já havia escrito aquelas duas crônicas, estas se referindo aos<br />
reis e infantes.<br />
O segundo grupo <strong>de</strong> crônicas <strong>de</strong> Zurara é composto pela Crónica do Con<strong>de</strong> D.<br />
Pedro <strong>de</strong> Meneses e Crónica do Con<strong>de</strong> D. Duarte <strong>de</strong> Meneses, compostas entre 1458 e<br />
<strong>1464</strong> para a primeira, e entre <strong>1464</strong> e 1468 para a última. O conteúdo <strong>de</strong>stas duas refere-<br />
se com gran<strong>de</strong> ênfase aos acontecimentos dos nobres portugueses que viviam no<br />
noroeste africano, po<strong>de</strong>ndo chamá-las <strong>de</strong> crônicas particulares, apesar <strong>de</strong> misturarem<br />
fatos régios, como casamentos na corte e acontecimentos no reino. Estas duas crônicas<br />
15 Das crônicas <strong>de</strong> Fernão Lopes, utilizaremos a edição da Crónica <strong>de</strong> El-Rei D. João I da Livraria<br />
Civilização, publicada em 1991, com introdução <strong>de</strong> Humberto Baquero Moreno e prefácio <strong>de</strong> António<br />
Sérgio, segundo o códice nº. 352 do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. A sigla <strong>de</strong> referência será<br />
FL-CDJI-I e FL-CDJI-II, para cada volume, com a paginação da edição.<br />
16 DIAS, Aida Fernanda. <strong>História</strong> crítica da literatura portuguesa. Lisboa: Editorial Verbo, 1998. v. I.<br />
p. 408.<br />
15
foram escritas após ele ser o guarda-mor do reino, e importante observar que <strong>de</strong> alguma<br />
forma a nomeação aparece acompanhada da mudança do conteúdo das crônicas, ou<br />
melhor, suas crônicas tomam um tom particular após sua nomeação ao cargo na Torre<br />
do Tombo, em Lisboa. 17<br />
Como veremos a seguir, os cronistas mostravam nos seus textos uma visão do<br />
que faziam e pretendiam escrever. Através <strong>de</strong>stes trechos, po<strong>de</strong>mos investigar qual o<br />
papel das crônicas no campo do saber português no século XV, e não apenas tomar os<br />
documentos e suas informações como dados em si, que se referiam ao passado. A nossa<br />
proposta aqui é tentar enten<strong>de</strong>r qual o sentido que os cronistas davam ao seu ofício, por<br />
seu trabalho ser encomendado.<br />
1.2 O PRETÉRITO PERFEITO DAS CRÔNICAS<br />
As crônicas utilizadas nesta pesquisa encontram-se em forma <strong>de</strong> livros, sem<br />
ilustrações e divididos em forma <strong>de</strong> capítulos. Alguns dos primeiros manuscritos foram<br />
preservados em bibliotecas e arquivos públicos, e ao longo dos séculos, algumas<br />
versões impressas foram editadas, sendo que alguns editores optaram por atualizar ou<br />
não a gramática para a respectiva contemporaneida<strong>de</strong>.<br />
Apenas para citar um exemplo, a Crônica do Con<strong>de</strong> D. Pedro <strong>de</strong> Meneses,<br />
estudada por Maria Teresa Brocardo sob o viés da lingüística histórica, apresenta<br />
atualmente <strong>de</strong>z manuscritos em Portugal e Espanha, sendo que a sua pesquisa voltou-se<br />
para comparar e observar a transmissão copista <strong>de</strong>stes manuscritos, percebendo as<br />
alterações <strong>de</strong> transcrição e gramática coeva. Junto com o resultado do trabalho, a<br />
pesquisadora publicou uma edição da crônica baseada em um manuscrito, e para<br />
transpor da fonte para a editoração gráfica, algumas adaptações foram feitas, mas<br />
procurando preservar o máximo a gramática e ortografia; note-se que estas alterações<br />
17 As crônicas <strong>de</strong> Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara utilizadas nesta pesquisa foram consultadas a partir <strong>de</strong><br />
edições publicadas no século XX. Para a Crónica da tomada <strong>de</strong> Ceuta, segue-se a versão organizada<br />
por Reis Brasil, com algumas modificações ortográficas e notas, publicada pela editora Europa-<br />
América em 1992. Não temos a informação exata, mas tudo indica que segue a edição <strong>de</strong> 1915 da<br />
Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> Ciências <strong>de</strong> Lisboa, sob códice nº. 368 e 365 do Arquivo Nacional Torre do Tombo. A<br />
sigla <strong>de</strong> referência será GEZ-CTC, com a paginação da edição. A edição da Crónica do Con<strong>de</strong> D.<br />
Pedro <strong>de</strong> Meneses utilizada é a <strong>de</strong> Maria Teresa Brocardo, publicada pela Fundação Calouste<br />
Gulbenkian em 1997, seguindo o manuscrito nº. 439 da Biblioteca Geral da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra.<br />
A sigla <strong>de</strong> referência será GEZ-CCDPM, com a paginação da edição. E por fim, a Crónica do Con<strong>de</strong><br />
D. Duarte <strong>de</strong> Meneses consultada foi a edição diplomática <strong>de</strong> Larry King, publicada em 1978 pela<br />
Universida<strong>de</strong> Nova <strong>de</strong> Lisboa, seguindo o manuscrito nº. 520 do Arquivo Nacional Torre do Tombo. A<br />
sigla <strong>de</strong> referência será GEZ-CCDDM, com a paginação da edição.<br />
16
feitas por editores po<strong>de</strong>m ser prejudiciais no momento <strong>de</strong> análise, principalmente<br />
quando várias crônicas com estas modificações são usadas na mesma pesquisa, pois<br />
per<strong>de</strong>-se um pouco do estilo e estética do autor, dificultando ou pelo menos diluindo a<br />
composição a meras palavras e não ao traço da época. Ressaltamos que as alterações são<br />
importantes para a divulgação e acesso da leitura, mas <strong>de</strong>ntro da pesquisa, procuramos<br />
manter o traço marcado e transcrito pelos cronistas.<br />
Po<strong>de</strong>mos perceber que o início <strong>de</strong> cada crônica apresenta uma explicação sobre<br />
quais os objetivos para escrever aqueles relatos, o que i<strong>de</strong>ntificamos por um prólogo. A<br />
análise dos prólogos das crônicas auxilia na compreensão da visão <strong>de</strong> <strong>História</strong> dos seus<br />
autores, como Bernard Genée afirma:<br />
Na Ida<strong>de</strong> Média, o historiador frequentemente se oculta atrás <strong>de</strong> sua obra. Para compreen<strong>de</strong>r o<br />
que ele quis fazer, não há outro recurso senão analisá-la. Porém, com mais freqüência do que se<br />
po<strong>de</strong>ria imaginar, o autor aparece na narrativa e, sobretudo, cuida <strong>de</strong> dizer, em um Prólogo, quais<br />
foram suas metas e métodos. Esses prólogos dos historiadores foram por muito tempo<br />
negligenciados. Via-se aí apenas um punhado <strong>de</strong> lugares-comuns, <strong>de</strong> que se podia até dispensar a<br />
leitura e a publicação. Na verda<strong>de</strong>, só o estudo atento dos prólogos permite perceber a que ponto<br />
a obra histórica era uma construção consciente. Graças a eles, vê-se bem melhor o que era a<br />
história para os historiadores e como a fizeram. 18<br />
Note-se que nem todas as crônicas apresentam explicitamente, no início do<br />
texto, a referência <strong>de</strong> se tratar <strong>de</strong> um prólogo, mas adotamos o critério para o início <strong>de</strong><br />
cada obra, já que enten<strong>de</strong>mos que o conteúdo presente assemelha-se à argumentação<br />
introdutória e explicativa, características <strong>de</strong> um prólogo. Iremos, portanto, centrar nossa<br />
investigação sobre estes trechos, que nos dão luz a alguns pontos importantes sobre o<br />
ato cronístico.<br />
1.3 OS ARGUMENTOS DE FERNÃO LOPES<br />
Seguindo o prólogo da primeira parte da Crónica <strong>de</strong> D. João I, <strong>de</strong> Fernão Lopes,<br />
percebemos o tom <strong>de</strong> veracida<strong>de</strong> que ele procurar transmitir em sua narração, fazendo<br />
uma analogia <strong>de</strong> direções, relacionando outros cronistas com a imperfeição do relato, e<br />
<strong>de</strong>finindo que seu trabalho estaria pautado apenas na verda<strong>de</strong>, autorizando, pois, que a<br />
crônica pu<strong>de</strong>sse ser feita e lida:<br />
18 GUENÉE, Bernard. <strong>História</strong>. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Clau<strong>de</strong>. (Coord.) Dicionário<br />
temático do Oci<strong>de</strong>nte Medieval. Bauru: Edusc, 2006. v. I. p. 525-526.<br />
17
Esta mundanall afeiçom [escrever <strong>História</strong>] fez a alguũs estoriadores, que os feitos <strong>de</strong> Castella,<br />
com os <strong>de</strong> Portugal escpreverom, posto que homeẽs <strong>de</strong> boa autorida<strong>de</strong> fossem, <strong>de</strong>sviar da <strong>de</strong>reita<br />
estrada, e correr per semi<strong>de</strong>iros escusos, por as mimguas das terras <strong>de</strong> que eram, em çertos<br />
passos claramente nom seerem vistas; [...] Nos certamente levamdo outro modo, posta a<strong>de</strong>parte<br />
toda afeiçom, que por aazo das ditas rrazoões aver podiamos, nosso <strong>de</strong>sejo foi em esta obra<br />
escprever verda<strong>de</strong>, sem outra mestura, leixando nos boõs aqueeçimentos todo fimgido louvor, e<br />
nuamente mostrar ao pobbo, quaaes quer comtrairas cousas, da guisa que aveherõ. 19<br />
Desta forma, Fernão Lopes estabelece um critério que sinaliza não totalmente<br />
para a <strong>de</strong>scrença e invalida<strong>de</strong> do relato em que se baseia, mas ele se propunha à luz da<br />
sua verda<strong>de</strong>, rever tal relato, e escrever o que consi<strong>de</strong>rava mais próximo do ocorrido.<br />
Ele critica o historiador castelhano, que no caso era Pero Lopez <strong>de</strong> Ayala, e procura<br />
completar ou <strong>de</strong>finir os dados <strong>de</strong>ste com outras fontes. Pensamos que seria uma<br />
contradição <strong>de</strong>le <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar integralmente os relatos por ele consultados, pois seria<br />
negar as suas fontes; o que ele procura justificar, no nosso entendimento, seria propor<br />
uma avaliação dos acontecimentos feita por ele, acontecimentos contidos na crônica<br />
castelhana. Com isso, percebemos que tal argumentação se apresenta enquanto<br />
justificativa <strong>de</strong> redação, pois ele não se propunha a copiar integralmente um relato, mas<br />
observar versões, e através <strong>de</strong> seus julgamentos e conclusões, elaborar a sua crônica.<br />
Nisto Aida Fernanda Dias nos sugere:<br />
A crítica das fontes oferece-se-lhe complexa, quando sobre um <strong>de</strong>terminado fato possui<br />
informações discordantes. Se as fontes são fi<strong>de</strong>dignas, o Cronista chega a transcrevê-las, o que<br />
faz também, por vezes, quando são divergentes, e, então, <strong>de</strong> forma muito ‘natural’, chega a<br />
rejeitá-las todas, porque as não consi<strong>de</strong>ra dignas <strong>de</strong> fé, contando ele como lhe parece que as<br />
coisas teriam acontecido! Ou, incapacitado em resolver a situação, oferece as diversas versões e<br />
<strong>de</strong>ixa ao leitor a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolher a que mais lhe agrada, tal como ele também faz em<br />
alguns casos! O rigor da <strong>História</strong> é, nestes casos, abandonado e salta ao bico da pena, em muitos<br />
casos, a subjetivida<strong>de</strong> do Cronista, com as suas simpatias e antipatias, com uma verda<strong>de</strong> muito<br />
própria que, pela força da sua escrita, arrasta o leitor para idêntica interpretação. 20<br />
Ou seja, a retórica da direita estrada que justificava a sua redação também po<strong>de</strong><br />
ser aplicada a ele, pois Fernão Lopes procurava elevar a posição <strong>de</strong> seu escrito em<br />
relação aos <strong>de</strong>mais. Não queremos <strong>de</strong>senvolver uma discussão sobre qual versão seria<br />
mais autêntica, pois não nos cabe isto, e nem é o foco das pesquisas atuais, mas o que<br />
Aida Fernanda Dias bem nos lembra é que ele também está sujeito a estas críticas, pois<br />
o cronista trata <strong>de</strong> uma escrita subjetiva, mas que procura <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r com a objetivida<strong>de</strong><br />
da época, ou seja, a sua verda<strong>de</strong>.<br />
19 FL-CDJI-I, Prólogo. p. 2.<br />
20 DIAS, Aida Fernanda. op. cit. p. 415.<br />
18
A função <strong>de</strong>le, como <strong>de</strong> outros cronistas, não era criar uma narrativa nova<br />
enquanto ao tema e conteúdo, como uma obra ficcional, mas or<strong>de</strong>nar relatos que fossem<br />
<strong>de</strong>finidos como verossímeis, e disto temos que as crônicas eram o resultado <strong>de</strong><br />
organizações <strong>de</strong> acontecimentos em forma cronológica, ou pelo menos com um fio<br />
temporal. A função do cronista, pois, apresenta-se duplamente, como afirma Joaquim<br />
Veríssimo Serrão:<br />
[...] o cronista régio acumulava as funções <strong>de</strong> guarda das escrituras do Tombo, ou seja, chefe do<br />
arquivo da Coroa. Tal situação obrigava-o a passar certidões dos documentos e permitia-lhe<br />
examinar velhos papéis que serviam <strong>de</strong> base para os seus trabalhos. Era pois, ao mesmo tempo,<br />
um escritor e um funcionário, cabendo-lhe ‘poer em caronyca as estorias dos Reys’ e zelar pela<br />
arrumação dos actos régios e privados que se guardavam no castelo <strong>de</strong> Lisboa. 21<br />
Analisando a carta em que o rei Dom Duarte nomeou Fernão Lopes como<br />
cronista oficial do reino em 19 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1434, po<strong>de</strong>mos aludir estas intenções <strong>de</strong><br />
escrita histórica, e organização dos atos régios:<br />
[...] fazemos saber que nós teemos dado cárrego a Fernam Lopez, nosso escripvam, <strong>de</strong> poer em<br />
caronica as estorias dos reis que antigamente em Portugal forom. Esso meesmo os gran<strong>de</strong>s feitos<br />
e altos do mui vertuoso e <strong>de</strong> grã<strong>de</strong>s vertu<strong>de</strong>s El-Rei meu Senhor e padre, cuja alma Deus haja. E,<br />
por quãto em tal obra ele ha assaz trabalho e ha muito <strong>de</strong> trabalhar, porem, querendo-lhe<br />
agalardoar, como a nós perteence, e querendo-lhe fazer graça e mercê, teemos por bem (e)<br />
mandamos que el haja <strong>de</strong> nós <strong>de</strong> teença em cada uũ ano, em todolos dias da sua vida, <strong>de</strong>s<br />
primeiro dia do mês <strong>de</strong> Janeiro, que ora foi, da era <strong>de</strong>sta carta em <strong>de</strong>ante, pera seu mãtiimento,<br />
catorze mil reaes em cada uũ ano [...] 22<br />
Esta carta é <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância para enten<strong>de</strong>rmos o pensamento <strong>de</strong><br />
elaboração das crônicas, pois aqui po<strong>de</strong>mos perceber como o rei Dom Duarte procura<br />
<strong>de</strong>finir um papel para Fernão Lopes, qual seja, compor a <strong>História</strong> dos reis portugueses.<br />
Este, consultando principalmente a crônica <strong>de</strong> Pero Lopez <strong>de</strong> Ayala, vê informações que<br />
não concordava, como alu<strong>de</strong> em seu prólogo. Ao invés <strong>de</strong> apenas consultar a produção<br />
cronística castelhana, a corte portuguesa resolve reavaliar o que foi escrito, dando o seu<br />
sentido <strong>de</strong> <strong>História</strong> e dos feitos passados; o sentido <strong>de</strong> <strong>História</strong> aqui seria a verda<strong>de</strong>, pois<br />
se não fosse fi<strong>de</strong>digno aos seus olhos, eles não consi<strong>de</strong>rariam como histórico. Po<strong>de</strong>mos,<br />
enfim, pensar nos cronistas como compiladores <strong>de</strong> informações, sendo que os estilos<br />
distintos eram marcados mais pela forma como procuravam analisar os dados e<br />
21 SERRÃO, Joaquim Veríssimo. Cronistas do século XV posteriores a Fernão Lopes. Lisboa:<br />
Instituto <strong>de</strong> Cultura Portuguesa, 1977. p. 9.<br />
22 DIAS, Aida Fernanda. op. cit. p. 409-410.<br />
19
organizar, fazendo as ligações em tom <strong>de</strong> prosa, isto é, a maneira como procuravam<br />
estabelecer os relatos dava o traço característico pessoal. Disto po<strong>de</strong>mos perceber neste<br />
seguinte trecho:<br />
Oo! com quamto cuidado e diligemçia vimos gram<strong>de</strong>s vollumes <strong>de</strong> livros, <strong>de</strong> <strong>de</strong>svairadas<br />
limguageẽs e terras; e isso meesmo pubricas escprituras <strong>de</strong> muitos cartarios e outros logares nas<br />
quaaes <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> longas vegilias e gram<strong>de</strong>s trabalhos, mais çertidom aver nom po<strong>de</strong>mos da<br />
contheuda em esta obra. [...] Se outros per ventuira em esta cronica buscam fremosura e<br />
novida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pallavras, e nom çertidom das estorias, <strong>de</strong>sprazer lhe ha <strong>de</strong> nosso rrazoado, muito<br />
ligeiro a elles douvir, e nom sem gram trabalho a nos <strong>de</strong> hor<strong>de</strong>nar. 23<br />
Aqui po<strong>de</strong>mos observar a citação dos tipos <strong>de</strong> fontes consultadas, <strong>de</strong>ixando<br />
enten<strong>de</strong>r que procurou fazer a sua crônica baseada numa pesquisa <strong>de</strong> informações, e<br />
também o fato <strong>de</strong> Fernão Lopes não se proporem a escrever algo que extrapolasse a sua<br />
idéia <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>, ou melhor, aqui ele distingue a crônica enquanto gênero histórico,<br />
çertidom das estórias, e a gesta como ficção, novida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pallavras. Esta <strong>de</strong>finição <strong>de</strong><br />
gênero histórico nos permite perceber como a construção argumentativa <strong>de</strong> uma<br />
narrativa sobre acontecimentos históricos dos reis e membros da corte eram distintas da<br />
simples guarda <strong>de</strong> documentos em um arquivo ou biblioteca. O que ele <strong>de</strong>nomina como<br />
novida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pallavras po<strong>de</strong>ria não ser apenas uma forma <strong>de</strong> gesta, mas <strong>de</strong> uma gesta<br />
com características <strong>de</strong> <strong>História</strong>, sofrendo críticas por não <strong>de</strong>ixar explícita a sua posição,<br />
dando a enten<strong>de</strong>r que a composição ou insinuação dúbia po<strong>de</strong>ria ser elaborada<br />
conscientemente, sendo, portanto, um erro ao ofício <strong>de</strong> cronista, ou por ele <strong>de</strong>finido<br />
como tal.<br />
O fato <strong>de</strong> organizar as informações mostra uma preocupação com as questões<br />
sobre a autorida<strong>de</strong> dos membros do corpo político português, pois as crônicas são<br />
entendidas como uma construção social que tinha por objetivo também, como veremos<br />
com o relato <strong>de</strong> Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara, autorizar e representar as ações passadas aos<br />
<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes, e disto a organização mostrava-se mais eficaz do que documentos avulsos<br />
ou relatos orais que po<strong>de</strong>riam se per<strong>de</strong>r na memória e esquecimento. O fato <strong>de</strong> Dom<br />
Duarte nomear Fernão Lopes como cronista e indicar que ele <strong>de</strong>veria escrever os feitos<br />
dos reis portugueses corrobora esta idéia <strong>de</strong> construção social e organização dos fatos,<br />
pois acumulava os cargos <strong>de</strong> guarda-mor e cronista, consultando documentos e po<strong>de</strong>ndo<br />
escrever crônicas, conforme o rei lhe solicitava.<br />
23 FL-CDJI-I, Prólogo. p. 2-3.<br />
20
1.4 OS ARGUMENTOS DE GOMES EANES DE ZURARA<br />
A nomeação <strong>de</strong> Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara como guarda-mor da Torre do Tombo<br />
em 1454 difere da trajetória realizada por Fernão Lopes, pois este foi primeiro guarda-<br />
mor e <strong>de</strong>pois cronista oficial. Com Zurara, na data <strong>de</strong> sua nomeação <strong>de</strong> guarda-mor, ele<br />
já havia escrito duas crônicas, e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> receber a nomeação do cargo, escreveu mais<br />
duas. Ou seja, talvez Zurara exercesse antes as funções <strong>de</strong> guarda-mor, ou seja, tinha<br />
acesso aos documentos régios, pois escreveu duas crônicas até aquela data, mas seu<br />
status foi <strong>de</strong>finido apenas em 1454. Durante alguns anos, o reino <strong>de</strong> Portugal po<strong>de</strong> ter<br />
tido duas pessoas com as funções <strong>de</strong> organizar o arquivo da Torre do Tombo, mas<br />
apenas um seria institucionalizado. Com a ida<strong>de</strong> avançada <strong>de</strong> Fernão Lopes, o cargo<br />
institucional foi passado, mas como já sugerimos, este provavelmente continuou<br />
auxiliando Zurara.<br />
No conteúdo das crônicas <strong>de</strong> Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara, po<strong>de</strong>mos perceber que<br />
apenas na terceira obra escrita por ele, ou seja, a Crónica do Con<strong>de</strong> D. Pedro <strong>de</strong><br />
Meneses, é que o cronista procura explicar no início <strong>de</strong> seu texto o que ele se propõe a<br />
fazer enquanto ofício <strong>de</strong> cronista. As anteriores, como veremos, ele cita mais o conteúdo<br />
e objetivo, mas na crônica do primeiro governador <strong>de</strong> Ceuta é que percebemos o que ele<br />
enten<strong>de</strong> pelo ofício <strong>de</strong> cronista régio, o que significa uma crônica, como observamos no<br />
trecho abaixo:<br />
Porque a prinçipall parte do meu emcarreguo he daar comta e rrazão das cousas que passã nos<br />
tempos <strong>de</strong> minha hyda<strong>de</strong> ou daquellas que passarão [passaram] tam açerca <strong>de</strong> que eu posso aver<br />
verda<strong>de</strong>iro conheçimento - ca, segumdo os amtigos escreverão este nome, s. cronica,<br />
primçipallmemte ouve o seu origẽ e fumdamemto <strong>de</strong> Saturno, que quer <strong>de</strong>zer 'tempo', [...] e dhy<br />
se <strong>de</strong>riva cronica, que quer <strong>de</strong>zer 'estoria em que se escrevẽ os feitos temporais' [...] por ẽ he<br />
minha ẽtemçõ, com ajuda da Samta Trimda<strong>de</strong>, escrever ẽ este vallume os feitos que se fezerão na<br />
çida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Çepta <strong>de</strong>pois que primeiramemte foy tomada aos mouros por aquelle magnanimo<br />
primçipe ell rrey dom Johão. 24<br />
Percebe-se que Zurara i<strong>de</strong>ntifica a crônica como um gênero histórico, história<br />
dos feitos temporais, recorrendo ao processo etimológico, e dando ao ofício um teor <strong>de</strong><br />
veracida<strong>de</strong>, e que o seu objetivo era justamente compor os dados passados na localida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Ceuta após a volta do rei Dom João I para o reino, isto é, após 1415; Ceuta sob o<br />
governo <strong>de</strong> Pedro <strong>de</strong> Meneses, e por isso o título personalista. O título completo da<br />
24 GEZ-CCDPM, Cap. I, p. 173.<br />
21
crônica, Coronica do con<strong>de</strong> dom Pedro continuada aa tomada <strong>de</strong> Çepta, a quall<br />
mandou ell rey dom Afonso, quinto <strong>de</strong>ste nome e dos rreis <strong>de</strong> Portugall duo<strong>de</strong>çimo,<br />
escrever, mostra, a princípio, que foi apenas o rei Dom Afonso V que pediu a redação.<br />
No entanto, no <strong>de</strong>correr da parte inicial, percebemos que Zurara <strong>de</strong>screve que a filha do<br />
Con<strong>de</strong> Dom Pedro Meneses solicitara ao rei que os fatos passados por seu pai fossem<br />
compilados, como po<strong>de</strong>mos verificar a seguir:<br />
E assy que ho bõ <strong>de</strong>sejo e vomta<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste rrey dom Affomso foy a primçipall causa <strong>de</strong> se esta<br />
obra começar e acabar e <strong>de</strong>sy rrequerimento <strong>de</strong> hũa filha daquelle com<strong>de</strong> que se chamava dona<br />
Lianor <strong>de</strong> Meneses, molher por çerto virtuosa e <strong>de</strong> grã<strong>de</strong> saber, a quall ffoy casada com dom<br />
Fernando, bisneto <strong>de</strong>ll rrey dom Johão e filho primogenito do illustre e virtuoso pimçipe dom<br />
Fernamdo, que foy duque <strong>de</strong> Bragança e marques <strong>de</strong> Villa Viçosa, com<strong>de</strong> d'Arrayolos e d'Ourem<br />
e <strong>de</strong> Barçellos e <strong>de</strong> Neiva e senhor <strong>de</strong> Chaves e <strong>de</strong> Momforte. 25<br />
Disto, po<strong>de</strong>-se concluir que o pedido da redação da crônica não era único, mas<br />
sem dúvida a referência principal e <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque era do rei, que tinha po<strong>de</strong>r para or<strong>de</strong>nar<br />
a feitura do texto e permitir que o cronista fizesse as <strong>de</strong>vidas consultas nos arquivos<br />
régios. O fato <strong>de</strong> uma pessoa <strong>de</strong> posição política como a filha do Con<strong>de</strong> Dom Pedro <strong>de</strong><br />
Meneses solicitar ao rei e elaboração do livro po<strong>de</strong> indicar a importância do documento<br />
não apenas para o rei, mas para os nobres, apesar do rei sempre aparecer com maior<br />
<strong>de</strong>staque. Note-se a expansão da caracterização familiar da filha do governador <strong>de</strong><br />
Ceuta, dando espaço para a nobreza aparecer e ocupar um lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque na<br />
composição cronística.<br />
Se voltarmos para a primeira crônica escrita por Zurara, a Crónica da tomada <strong>de</strong><br />
Ceuta, também vamos perceber uma ênfase aos feitos realizados pelo rei, só que neste<br />
caso, o rei Dom João I:<br />
O tempo e gran<strong>de</strong>za das obras nos constrangem fortemente que escrevamos, nos seguintes<br />
capítulos, a gloriosa fama da mui notável empresa tomada por este virtuoso e nunca vencido<br />
Príncipe, senhor Rei Dom João, que seu propósito <strong>de</strong>terminou forçosamente por armas<br />
conquistar uma tão nobre e tão gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong> como é Ceuta. No qual feito consi<strong>de</strong>rando,<br />
po<strong>de</strong>mos esguardar quatro cousas, s. gran<strong>de</strong> amor da Fé, gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> coração, maravilhosa<br />
or<strong>de</strong>nança, e proveitosa vitória, a qual foi maravilhoso preço <strong>de</strong> seu gran<strong>de</strong> trabalho. 26<br />
Até aqui, observamos que a estrutura <strong>de</strong> <strong>de</strong>finição seguia uma configuração até<br />
certo ponto padrão, pois o livro era encomendado, e tinha-se por objetivo, seguindo os<br />
cronistas, relatar os fatos do tempo passado à luz da verda<strong>de</strong>. Se lembrarmos a citação<br />
25 Ibid., p. 174-175.<br />
26 GEZ-CTC, Cap. II, p. 41.<br />
22
<strong>de</strong> Bernard Genée, po<strong>de</strong>ríamos ignorar a análise <strong>de</strong>stes prólogos ou justificativas<br />
introdutórias. No entanto, apesar dos próprios cronistas expressarem os seus objetivos,<br />
mostrando como era um pedido do rei, analisamos a carta do rei Dom Afonso V que<br />
encontramos anexada à Crónica do Con<strong>de</strong> D. Duarte <strong>de</strong> Meneses. No seguinte trecho,<br />
que encabeça a epístola, percebemos como Zurara estava em África para coletar dados<br />
sobre os nobres, e como o rei Afonso V faz a solicitação:<br />
Do Jnictissemo Rey dom Afonso ho quinto <strong>de</strong> perpetua memoria, pera Gomez eanes <strong>de</strong> zurara<br />
seu coronista, estando por seu mandado em Alcacer Ceger or<strong>de</strong>nando e ajuntando os gran<strong>de</strong>s<br />
seruiços que a ele e aa sua coroa real tinha feytos o valeroso e eccelente capitaõ e muyto Jlustre<br />
con<strong>de</strong> dom Duarte <strong>de</strong> meneses, pera a coronica e historya que <strong>de</strong>lles lhe mandaua fazer. A qual<br />
lhe Elrrey escreuei por sua mão. 27<br />
Somente nesta crônica, a última registrada por Zurara, o cronista vai até África<br />
para coletar dados sobre os acontecimentos das pessoas que moravam por lá. E mais a<br />
frente na carta, percebemos um <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> Dom Afonso V que é essencial para o<br />
entendimento do papel <strong>de</strong>stas crônicas na socieda<strong>de</strong> portuguesa, em especial na relação<br />
régio-nobiliárquica. Aqui po<strong>de</strong>mos perceber tanto o papel <strong>de</strong> Zurara, em seu ofício <strong>de</strong><br />
cronista, como do rei, que tem um objetivo ao requerer a redação:<br />
Muytos certo vos saõ obrigados porque ajnda que os feytos <strong>de</strong> cepta sejaõ asaz <strong>de</strong> resentes<br />
<strong>de</strong>poys que eu vi a coronica que vos <strong>de</strong>lles escreuestes: a muytos fiz onrra e merçe com milhor<br />
vonta<strong>de</strong> por ser çerto dalguns boons feytos que la fizeraõ por seruiço <strong>de</strong> Deos e dos Reys meus<br />
antecessores e meus, e a outros por serem filhos daquelles que laa asim bem seruiam do que eu<br />
naõ era antes entaõ comprido conheçimento, e creo que naõ menos sera aos que <strong>de</strong>poys <strong>de</strong> min<br />
[sic] vierem quando virem ho que aueys <strong>de</strong>screuer dos feytos <strong>de</strong> Alcacer, e se alguns merecem<br />
glorya por yrem a esta terra por seruirem a Deos e a mim e fazerem <strong>de</strong> suas onrras: vos asaz soys<br />
<strong>de</strong> louuar que com <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>screuer a uerda<strong>de</strong> do que eles fizeraõ vos <strong>de</strong>sposestes a leuar o<br />
trabalho que eles soportaraõ. 28<br />
O rei cita explicitamente que após a leitura <strong>de</strong> uma crônica, provavelmente a<br />
Crónica da tomada <strong>de</strong> Ceuta, ele pô<strong>de</strong> recompensar os nobres e ou seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes<br />
que lutaram em nome da monarquia e do cristianismo, enfatizando o tom prestativo e <strong>de</strong><br />
referência aos acontecimentos passados que o documento servia. Analisando a Crónica<br />
da tomada <strong>de</strong> Ceuta, encontrarmos um trecho on<strong>de</strong> Zurara afirma os motivos do rei para<br />
qual foi encarregado, corroborando a idéia <strong>de</strong> referência ao rei para os merecimentos<br />
dos nobres portugueses:<br />
27 GEZ-CCDDM, Trelado <strong>de</strong> huma carta, p. 41.<br />
28 Ibid., p. 42.<br />
23
Fazendo conclusão <strong>de</strong> todos os aquecimentos do Infante Dom Henrique, nos quais foi a força <strong>de</strong><br />
todas as cousas, que se em aquele dia dizeram que notar sejam. Nem presuma algum que eu não<br />
pus tamanha diligência em requerer e buscar todos os aquecimentos dos outros senhores. E não<br />
ainda daqueles principais, mas <strong>de</strong> qualquer outro do povo, escrevera seu feito, se o achava em<br />
merecimento, ou o pu<strong>de</strong>ra saber por qualquer guisa conhecendo bem que a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> el-Rei<br />
[Afonso V] meu senhor é perfeitamente saber todos os merecimentos <strong>de</strong> seus naturais para<br />
honrar a memória dos mortos, e remunerar aos vivos por os trabalhos <strong>de</strong> seus padres ou <strong>de</strong>les<br />
mesmos. 29<br />
Apesar <strong>de</strong> Zurara fazer um elogio aberto ao infante Dom Henrique, ele também<br />
mostra preocupação com os <strong>de</strong>mais portugueses que lá lutaram, em especial os nobres.<br />
De fato, a crônica cita com gran<strong>de</strong> intensida<strong>de</strong> a participação dos nobres, o que será<br />
objeto <strong>de</strong> reflexão nos capítulos seguintes. A preocupação do cronista com os <strong>de</strong>mais<br />
membros do corpo político lusitano aparece juntamente com o conhecimento <strong>de</strong> que o<br />
rei, que neste caso não é Dom João I, mas sim Afonso V, preocupa-se em saber quais<br />
portugueses foram lutar, e caso estivessem mortos, as <strong>de</strong>vidas homenagens seriam<br />
prestadas, sendo que alguns familiares po<strong>de</strong>riam se beneficiar; e se estivessem vivos,<br />
po<strong>de</strong>riam comprovar mais efetivamente o seu papel, reconhecendo os merecimentos<br />
correspon<strong>de</strong>ntes, enfim, reforçando sua posição ou comprovando suas ações ao centro<br />
da coroa portuguesa.<br />
Sobre os meios <strong>de</strong> escrever a crônica, principalmente a última <strong>de</strong> Zurara, temos<br />
que o autor procurou mais os relatos dos portugueses no noroeste africano do que as<br />
informações do arquivo régio. Neste procedimento, o autor confessa que precisava<br />
prestar atenção aos <strong>de</strong>poimentos, pois po<strong>de</strong>ria receber informações duvidosas, como<br />
menciona neste trecho:<br />
[...] pois que <strong>de</strong>uo eu fazer muyto alto princepe que aallem <strong>de</strong> minha gran<strong>de</strong> Jnorancya per mym<br />
assaz conhecida tenho tantos spreitantes que ainda eu bem nom tomo a pena na mãao pera<br />
screuer. Ja começam <strong>de</strong> condanar mjnha obra. huuns por cuydarem que se dyra menos <strong>de</strong>lles do<br />
que lhes sua enganosa afeiçam faz cuydar que merecem. outros pensando. que quanto se elles<br />
mais agrauarem <strong>de</strong> meu screuer tanto o pouoo auvera rezom <strong>de</strong> cuydar que elles som dignos <strong>de</strong><br />
mayores merecymentos e que <strong>de</strong> sse nom screuerem <strong>de</strong>lles gran<strong>de</strong>s cousas que foy mais por<br />
fraqueza <strong>de</strong> que meu screuer que per fallecimento <strong>de</strong> seu trabalho. e o que peor he que taae uy eu<br />
queixosos <strong>de</strong> mym que eu sabya certo que nom soomente nom eram dignos <strong>de</strong> honra nem <strong>de</strong><br />
louuor. 30<br />
Preocupado em nem omitir nem extrapolar dados <strong>de</strong> pessoas, Zurara nos informa<br />
que o procedimento <strong>de</strong> interrogar os portugueses po<strong>de</strong>ria trazer problemas, pois os<br />
<strong>de</strong>poimentos po<strong>de</strong>riam ser mais ten<strong>de</strong>nciosos do que se esperava. Talvez na escrita da<br />
29 GEZ-CTC, Cap. LXXXIV, p. 248.<br />
30 GEZ-CCDDM, Cap. I, p. 45.<br />
24
sua primeira crônica, contando com dados do infante Dom Henrique, ele tenha<br />
conseguido captar os dados que lhe interessavam; mas aqui parece que a fórmula estava<br />
conhecida, isto é, o fato <strong>de</strong> escrever os feitos visando o merecimento do rei po<strong>de</strong>ria ser<br />
tanto um meio <strong>de</strong> ascensão como <strong>de</strong> <strong>de</strong>clínio, visto que algumas ações seriam<br />
eternizadas na escrita. Os <strong>de</strong>poimentos po<strong>de</strong>riam tanto informar como omitir ações.<br />
Aqui po<strong>de</strong>mos perceber como os nobres procuravam interferir <strong>de</strong> forma incisiva na<br />
escrita do cronista, e não apenas no critério <strong>de</strong> encomenda da redação. Lembremos, por<br />
exemplo, o caso da encomenda da Crónica do Con<strong>de</strong> D. Pedro <strong>de</strong> Meneses, que contou<br />
com a solicitação da filha do governador <strong>de</strong> Ceuta. Enfim, tanto nobres como os reis<br />
interferiam na composição, mas não estamos querendo aludir numa falsa composição,<br />
apenas em ênfase <strong>de</strong> temática; e sobre isto veremos nos capítulos seguintes com mais<br />
<strong>de</strong>talhe.<br />
1.5 LIGANDO OS PONTOS DAS CRÔNICAS<br />
Neste capítulo estivemos preocupados em observar a produção <strong>de</strong> crônicas no<br />
reino <strong>de</strong> Portugal, atentando para como dois escritores pensavam sobre o ofício sobre o<br />
qual foram encarregados. Percebendo as crônicas mais como artefatos culturais do que<br />
dados <strong>de</strong>scontextualizados, po<strong>de</strong>mos pensar o papel <strong>de</strong>las na socieda<strong>de</strong>, como sugere<br />
Bernard Guenée:<br />
Des<strong>de</strong> o século XII, as cortes <strong>de</strong> reis e príncipes haviam se tornado centros <strong>de</strong> cultura, on<strong>de</strong> a<br />
história tinha seu espaço. Mas uma história bem diferente da história monástica e conventual.<br />
Ouvindo-as, senhores e damas procuravam com certeza instruir-se; procuravam, mais ainda,<br />
divertir-se. [...] A fronteira oscilava entre a poesia e verda<strong>de</strong>. As canções <strong>de</strong> gesta, que<br />
pretendiam contar o que realmente aconteceu (gesta), estavam, no entanto, muito enganadas. 31<br />
Vimos que a produção das crônicas estava relacionada com personagems que<br />
tinham acesso aos documentos régios, po<strong>de</strong>ndo estes discordar <strong>de</strong> outras produções<br />
cronísticas, sendo que a principal justificativa apresentada era <strong>de</strong> que os feitos passados<br />
<strong>de</strong>veriam ser postos em forma <strong>de</strong> texto. Para tanto, os cronistas organizavam os dados<br />
recolhidos, compondo a escrita dos feitos que julgassem a<strong>de</strong>quados para a memória do<br />
reino e dos portugueses. Segundo Aida Fernanda Dias, “com os cronistas oficiais<br />
entramos na escrita historiográfica ‘or<strong>de</strong>nada’ pela corte e feita para registrar a memória<br />
31 GUENÉE, Bernard. op. cit., p. 524-525.<br />
25
do Reino. A historiografia oficial vai-se sobrepor à corrente que até agora [século XV]<br />
escrevera à sombra dos mosteiros ou à sombra da corte dos gran<strong>de</strong>s senhores”. 32 A<br />
produção aqui analisada aparece como híbrida <strong>de</strong>stas duas vertentes, ou seja, uma<br />
convergência <strong>de</strong> tendências da escrita monástica e dos senhores <strong>de</strong> corte.<br />
Um dos objetivos da composição da Crónica da tomada <strong>de</strong> Ceuta, por exemplo,<br />
era preservar informações que po<strong>de</strong>riam se per<strong>de</strong>r com a morte <strong>de</strong> alguns participantes<br />
do evento, como Zurara escreve:<br />
E por quanto o mui alto e mui excelente Príncipe e senhor el-Rei Dom Afonso, o quinto, ao<br />
tempo que primeiramente começou <strong>de</strong> governar seus reinos soube como os feitos <strong>de</strong> seu avô [D.<br />
João I] ficavam por acabar, consi<strong>de</strong>rando como o tempo escorregava cada vez mais, e que,<br />
tardando <strong>de</strong> serem escritos, po<strong>de</strong>riam as pessoas que ali foram falecer, por cuja a razão se<br />
per<strong>de</strong>ria a memória <strong>de</strong> tão notáveis cousas, porém mandou a mim, Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara, seu<br />
criado, que me trabalhasse <strong>de</strong> as ajuntar e escrever per tal guisa, que, ao tempo que se houvesse<br />
<strong>de</strong> or<strong>de</strong>nar em crónica, fossem achadas sem falecimento. E eu, em cumprimento <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sejo,<br />
por satisfazer a seu mandado, como <strong>de</strong> meu senhor e meu rei, me trabalhei <strong>de</strong> inquirir e saber as<br />
ditas cousas e as escrevi em estes ca<strong>de</strong>rnos pela guisa que ao diante é conteúdo com tenção <strong>de</strong> as<br />
ascresentar ou minguar em quaisquer lugares em que for achado por verda<strong>de</strong>iro juízo que o<br />
merecem. 33<br />
A escrita cronística era uma forma <strong>de</strong> evitar o esquecimento <strong>de</strong> atos passados, <strong>de</strong><br />
enaltecer ações <strong>de</strong> reis e nobres, uma construção social que visava, enfim, esclarecer<br />
acontecimentos e <strong>de</strong>stacar ações <strong>de</strong> reis e nobres que ro<strong>de</strong>avam a esfera política cortesã<br />
portuguesa. Nos dois cronistas analisados, Fernão Lopes e Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara,<br />
po<strong>de</strong>mos perceber esta proposta com o estudo <strong>de</strong> seus objetivos <strong>de</strong> redação no início <strong>de</strong><br />
cada obra, através <strong>de</strong> mecanismos que justificavam e legitimavam a composição.<br />
Ambos procuraram produzir textos que po<strong>de</strong>riam ser consultados como fontes<br />
fi<strong>de</strong>dignas, conscientemente elaboradas e i<strong>de</strong>ntificadas como meios para conhecer o<br />
passado; aquilo que <strong>de</strong>veria ser entendido como passado e relevante ao reino e aos<br />
membros do corpo político. Enfim, uma história política, centrada nas ações <strong>de</strong> homens<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>staque.<br />
Com Fernão Lopes, temos uma escrita voltada para os feitos do reino, reunindo<br />
os vários grupos que compunham a socieda<strong>de</strong>, o que é valorizado pela historiografia,<br />
pois esta vê nisso um traço que permite reconstituir os setores sociais portugueses,<br />
principalmente pelo recorte temporal dos textos, que tratam da mudança dinástica,<br />
mostrando como estes grupos atuaram no processo. A bibliografia consultada elogia a<br />
32 DIAS, Aida Fernanda. op. cit., p. 409.<br />
33 GEZ-CTC, Cap. III, p. 45.<br />
26
qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Fernão Lopes, pois ele conseguiu organizar a narração <strong>de</strong> um período <strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong>s movimentos e ações diversas.<br />
A justificativa apresentada por Fernão Lopes para sua redação foi <strong>de</strong> que a<br />
escrita era um <strong>de</strong>sejo do rei Dom Duarte, e este solicitou a composição dos dados sobre<br />
os monarcas que o prece<strong>de</strong>ram. No caso <strong>de</strong> Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara, observamos que o<br />
objetivo <strong>de</strong> compor as crônicas era informar o monarca Dom Afonso V sobre os feitos<br />
dos portugueses no noroeste africano, fugindo da organização e acesso exclusivos dos<br />
arquivos régios, pois o cronista cruzou o mar Mediterrâneo para colher <strong>de</strong>poimentos que<br />
obviamente não existiam no arquivo régio.<br />
Ambos têm um entendimento do que seria a produção <strong>de</strong> uma crônica, <strong>de</strong> que<br />
ela compunha um gênero histórico, e o que eles produziram <strong>de</strong>veria servir <strong>de</strong> referência<br />
para as pessoas se informarem sobre o passado do reino. A <strong>História</strong> assume, portanto,<br />
uma perspectiva <strong>de</strong> acontecimentos políticos, dos grupos aristocráticos; e as crônicas, o<br />
resultado <strong>de</strong> seus ofícios, eram i<strong>de</strong>ntificadas como objetos <strong>de</strong> informação do passado,<br />
isto é, a <strong>História</strong> enquanto conteúdo <strong>de</strong>veria ser buscada naqueles artefatos culturais.<br />
O conceito <strong>de</strong> homem <strong>de</strong> saber <strong>de</strong>finido por Jacques Verger, e adotado por<br />
Marcella Lopes Guimarães no estudo das crônicas <strong>de</strong> Fernão Lopes, parece ser<br />
plausível. A própria caracterização do que seria o trabalho <strong>de</strong> cronista, estudada neste<br />
capítulo, mostrou como se aproxima daquele conceito, po<strong>de</strong>ndo ser aplicado igualmente<br />
ao cronista Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara, pois ele praticou os mesmos ofícios <strong>de</strong> seu<br />
antecessor, e <strong>de</strong>ixou explícito o contato com a informação e cultura do saber, enfim,<br />
como <strong>de</strong>veria proce<strong>de</strong>r para elaborar seu trabalho cronístico.<br />
Em suma, com este capítulo, po<strong>de</strong>mos apreen<strong>de</strong>r a forma como os cronistas<br />
procuravam compor seus escritos. Desta forma, a análise que seguirá nos capítulos<br />
seguintes tem a perspectiva <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r as crônicas através da variável entendida pelos<br />
cronistas, o que não anula a sua interpretação. Por se tratar <strong>de</strong> uma escrita solicitada,<br />
po<strong>de</strong>mos investigar as relações envolvidas para sua composição, relacionando a<br />
importância da escrita e da ação dos nobres e reis no reino português no século XV.<br />
27
2 ADESÃO NO REINO E ESPÍRITO CRUZADÍSTICO NO NOROESTE AFRICANO<br />
O tema das navegações no século XV po<strong>de</strong> ser abordado sob vários olhares, isto<br />
é, o período é i<strong>de</strong>ntificado como uma passagem da Ida<strong>de</strong> Média à Ida<strong>de</strong> Mo<strong>de</strong>rna, e<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sta transição, po<strong>de</strong>-se tanto optar por concluir um estudo sobre o medievo<br />
como iniciar a época mo<strong>de</strong>rna como fruto das navegações. Dentro da bibliografia que<br />
consultamos, poucos são os trabalhos que integraram organicamente o período, unindo<br />
os elos da transição. Acreditamos que <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ste recorte houve alterações que marcam<br />
uma diferença conceitual, mas ficamos com a idéia <strong>de</strong> que não se procura articular <strong>de</strong><br />
forma mais profunda e <strong>de</strong>talhada as fontes. Se houve transformações, permanências<br />
também po<strong>de</strong>m ser observadas. Humberto Baquero Moreno sintetiza isto muito bem<br />
quando escreve:<br />
Uma questão que tem dividido os historiadores portugueses consiste na <strong>de</strong>terminação do<br />
momento exacto ou aproximado em que Portugal entra na Ida<strong>de</strong> Mo<strong>de</strong>rna. Este problema<br />
encontra-se directamente relacionado com a caracterização dos ingredientes que <strong>de</strong>finem o<br />
mo<strong>de</strong>rnismo face o medievalismo representativo <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> manifestações que o<br />
<strong>de</strong>terminam. Todo este processo traduz-se em assintonias que nos permitem consi<strong>de</strong>rar que<br />
existem diversos momentos, que pela sua heterogeneida<strong>de</strong> não permitem afirmar em termos<br />
cronológicos o salto da Ida<strong>de</strong> Média para a Ida<strong>de</strong> Mo<strong>de</strong>rna. Verifica-se a existência <strong>de</strong> diversos<br />
patamares cujo ritmo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento é assimétrico e <strong>de</strong>sigual. 34<br />
O interesse da pesquisa surgiu pelos aspectos da tomada <strong>de</strong> Ceuta pelos<br />
portugueses em 1415, e buscando informações sobre o contexto, o referido episódio<br />
inseria-se na bibliografia consultada como marco introdutório aos processos <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>scobrimento e dominação <strong>de</strong> rotas e terras em América, África e Ásia; Ceuta e 1415<br />
são os marcos iniciais do Império marítimo português. 35 Em outras palavras, até se<br />
procurava explicar os motivos, como iremos tratar no capítulo, mas notou-se na<br />
bibliografia que não havia uma discussão mais profunda entre a mudança dinástica e o<br />
processo <strong>de</strong> tomada militar.<br />
Os cronistas dos quais nos valemos <strong>de</strong> relato sobre o período, Fernão Lopes e<br />
Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara, a princípio não são trabalhados conjuntamente, e talvez isso<br />
cause a idéia <strong>de</strong> que seus textos não possuem relações possíveis <strong>de</strong> análise. Muitas<br />
vezes Fernão Lopes é i<strong>de</strong>ntificado como o último dos cronistas medievais. No entanto,<br />
34 MORENO, Humberto Baquero. A Ida<strong>de</strong> Mo<strong>de</strong>rna entre luzes e sombras. In: NOVAES, Adalto.<br />
(Org.) A <strong>de</strong>scoberta do homem e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 163.<br />
35 Sobre o Império português, consultar: BOXER, Charles. O império marítimo português. 1415-1825.<br />
São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 442 p.<br />
28
como tratado no capítulo anterior, po<strong>de</strong>mos perceber como este e Gomes Eanes <strong>de</strong><br />
Zurara possuíam uma ativida<strong>de</strong> muito próxima, os argumentos observados nas crônicas<br />
eram semelhantes, sendo que traços e idéias sobre o ato cronístico <strong>de</strong> Fernão Lopes<br />
pu<strong>de</strong>ram ser encontrados no seu sucessor. Portanto, as crônicas dos dois portugueses<br />
supracitados po<strong>de</strong>m ser analisadas conjuntamente, ainda mais porque o conteúdo <strong>de</strong>las<br />
permite perceber uma trajetória <strong>de</strong> alguns portugueses que será fundamental para os<br />
objetivos da presente pesquisa histórica.<br />
Como o interesse <strong>de</strong>spertado na pesquisa foi atentar para as relações políticas<br />
entre a nobreza e a casa dinástica no processo <strong>de</strong> conquista <strong>de</strong> Ceuta, encontrou-se um<br />
obstáculo em situar esse processo apenas enquanto objetivos ultramarinos. Percebemos<br />
que se enfatiza sobremaneira a ação ultramarina propriamente dita, e <strong>de</strong>ixa-se <strong>de</strong><br />
discutir a formação da dinastia <strong>de</strong> Avis sob Dom João I, o contexto ibérico ou como a<br />
nova casa régia e a nobreza que a cercava caminhou e navegou até Ceuta. As<br />
motivações são citadas, mas não relacionadas a ponto <strong>de</strong> centrar a análise nelas. Não<br />
vemos isto como erro, mas uma opção e <strong>de</strong>limitação <strong>de</strong> objeto.<br />
Para respon<strong>de</strong>r aos nossos objetivos, a saber, analisar a formação da casa<br />
dinástica <strong>de</strong> Avis e a a<strong>de</strong>são da nobreza nesta e igualmente na tomada <strong>de</strong> Ceuta,<br />
optamos por selecionar a última crônica <strong>de</strong> Fernão Lopes, pois nela temos o relato sobre<br />
a formação da nova dinastia, e como alguns nobres agiram politicamente em alguns<br />
momentos. O próprio <strong>de</strong>senrolar das ações internas e externas no reino condiciona,<br />
como analisaremos, um ambiente propício para navegar até Ceuta. Com a tomada <strong>de</strong>sta<br />
praça, utilizaremos os relatos <strong>de</strong> Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara, compondo uma continuação<br />
das ações <strong>de</strong> alguns portugueses. Este é um dos objetivos do presente capítulo, pois<br />
assim po<strong>de</strong>mos atentar para questões não apenas momentâneas, ou que possam ser<br />
analisadas apenas em um cronista ou relacionadas ao ultramar. Recuando a análise <strong>de</strong><br />
Ceuta com a crônica <strong>de</strong> Fernão Lopes, como preten<strong>de</strong>mos fazer neste capítulo,<br />
po<strong>de</strong>remos integrar ações <strong>de</strong> personagens que são <strong>de</strong>scritos nas crônicas <strong>de</strong> Fernão<br />
Lopes e Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara, e não apenas i<strong>de</strong>ntificá-los na gesta <strong>de</strong> Ceuta.<br />
Preten<strong>de</strong>mos evitar a análise que se baseie apenas nos escritos <strong>de</strong> Gomes Eanes <strong>de</strong><br />
Zurara para compreen<strong>de</strong>r as ações ultramarinas, sendo portanto, Fernão Lopes<br />
importante para o entendimento das ativida<strong>de</strong>s políticas <strong>de</strong> nobres portugueses que<br />
agiram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pelo menos a formação da dinastia <strong>de</strong> Avis.<br />
Outra questão que será objeto <strong>de</strong> investigação no presente capítulo trata dos<br />
argumentos apresentados para justificar o ataque militar, atentando para como os<br />
29
portugueses viam e justificavam sua ação contra Castela e no território africano. Estes<br />
argumentos po<strong>de</strong>m ser pensados enquanto forma ao discurso que permeava as ações dos<br />
nobres e os membros da casa dinástica, integrando as próprias relações políticas <strong>de</strong>stes<br />
grupos. Abordando os argumentos legitimadores, incluiremos uma variável que permita<br />
compreen<strong>de</strong>r os objetivos dos nobres e da casa dinástica em tomar a praça no noroeste<br />
africano, e ainda, o que aspiravam aqueles que lá permaneceram.<br />
Enfim, o objetivo do presente capítulo é integrar dois pontos importantes para a<br />
compreensão <strong>de</strong> ações ultramarinas no início do século XV, em particular a tomada <strong>de</strong><br />
Ceuta. Analisar tanto a formação da dinastia e a ação <strong>de</strong> alguns nobres como os<br />
argumentos legitimadores para a conquista da praça po<strong>de</strong>m trazer uma discussão sobre<br />
as práticas políticas levadas a cabo no reino português nos séculos XIV e XV.<br />
2.1 CRISE RÉGIA E O FIM DE UMA DINASTIA<br />
Ao tentar compreen<strong>de</strong>r a formação da dinastia <strong>de</strong> Avis, como é objetivado neste<br />
capítulo, precisamos recuar contextualmente ao reinado <strong>de</strong> Dom Fernando, último rei da<br />
dinastia anterior, a <strong>de</strong> Borgonha. Contexto este da segunda meta<strong>de</strong> do século XIV<br />
agitado na Europa por guerras, lutas entre her<strong>de</strong>iros, peste, fome; não que não houvesse<br />
isto em outros momentos, mas queremos apenas sinalizar uma intensida<strong>de</strong> e<br />
confluências <strong>de</strong> adversida<strong>de</strong>s. Segundo Fátima Regina Fernan<strong>de</strong>s,<br />
Todo o século XIV caracteriza-se como um período <strong>de</strong> transição em vários aspectos da vida<br />
política, econômica e social, com importantes reflexos na estabilida<strong>de</strong> interna dos reinos<br />
europeus. Várias são as ocasiões <strong>de</strong> crises dinásticas neste período. Em Portugal marca-se a<br />
transição da dinastia <strong>de</strong> Borgonha à <strong>de</strong> Avis. Em França, os últimos Capetos, para os Valois. Em<br />
Castela, a dinastia <strong>de</strong> Borgoña, para os Transtâmara. Em Inglaterra, a transição dos Plantagenetas<br />
aos Lancaster. [...] Enfim, um momento <strong>de</strong> transformação das estruturas, que obriga os monarcas<br />
a buscarem consenso interno e apoios externos a fim <strong>de</strong> consolidar seu po<strong>de</strong>r. 36<br />
E com relação ao reino português, em particular a Dom Fernando, Armindo <strong>de</strong><br />
Sousa nos informa:<br />
D. Fernando nasceu em Coimbra no dia 31 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1345. Tinha, portanto, vinte e um anos<br />
e alguns meses quando subiu ao trono. Herdava um reino em paz e um erário muito rico. Tudo<br />
indicava que, apesar da crise social e econômica que se vivia – aliás, comum a toda a Europa –<br />
36 FERNANDES, Fátima Regina. Tempo, po<strong>de</strong>r e política na Baixa Ida<strong>de</strong> Média portuguesa. Trabalho<br />
apresentado no V EIEM. Salvador: ABREM/UFBA, 2003. f. 1-2.<br />
30
Portugal iria ter um bom reinado: rei dado ao trato com a nobreza, augúrio <strong>de</strong> paz interna, e<br />
neutral nos negócios <strong>de</strong> Castela, promessa <strong>de</strong> paz com os vizinhos. 37<br />
No entanto, Dom Fernando sobe ao trono solteiro e sem esposa negociada aos<br />
interesses do reino. Os casamentos, principalmente dos reis naquele contexto, não<br />
levavam somente em conta questões <strong>de</strong> amor e sentimentos, mas sim as viabilida<strong>de</strong>s dos<br />
reinos em estabelecerem os acordos apropriados. Dom Fernando casa-se com Leonor<br />
Teles, causando o contragosto <strong>de</strong> seus súditos, pois <strong>de</strong>srespeitou a prática e optou pelo<br />
seu gosto, como informa Armindo <strong>de</strong> Sousa:<br />
De modo que não causa qualquer estranheza ter sido D. Fernando consi<strong>de</strong>rado pela maioria dos<br />
súbditos como temerário, impru<strong>de</strong>nte e egoísta ao tomar por mulher Leonor Teles, ‘menina’<br />
fidalga reinol, apetecida só pela beleza, casada e tudo. Esquecendo tratados. Pondo em risco a<br />
paz do reino. [...] Não admira, portanto, que esse casamento, realizado em segredo no ano <strong>de</strong><br />
1371 e publicamente em 1372, precedido <strong>de</strong> relações adulterinas notórias, tenha servido <strong>de</strong><br />
motivo alegado para revoltas populares como até aí nunca se viram. 38<br />
Esta incompatibilida<strong>de</strong> entre a escolha do rei e dos interesses do reino terá<br />
conseqüências na sucessão e própria autonomia do reino, como veremos mais a frente.<br />
E as revoltas, se bem que relacionadas com este assunto, também se inseriam no<br />
contexto <strong>de</strong> epi<strong>de</strong>mias, guerras e crises agrícolas. Dom Fernando inicia um reino com<br />
uma estrutura financeira e social estável, mas que aos poucos, <strong>de</strong>vido às ativida<strong>de</strong>s que<br />
expõe e é exposto o reino, esta estabilida<strong>de</strong> começa a alterar-se.<br />
Durante o reinado <strong>de</strong> Dom Fernando, este e alguns nobres se envolveram em<br />
conflitos com Castela, como era comum entre os membros <strong>de</strong> ambos os reinos ibéricos.<br />
Entre as explicações para as invasões e disputas, encontram-se as aspirações <strong>de</strong> jovens<br />
nobres; o partidarismo dos reinos ibéricos entre França e Inglaterra na Guerra dos Cem<br />
Anos (1337-1453); e também o Gran<strong>de</strong> Cisma do Oci<strong>de</strong>nte (1378-1417), que dividiu a<br />
Cristanda<strong>de</strong> com um papa em Roma e outro em Avinhão. Sob estas questões, os reinos<br />
e seus membros invadiram e recuaram entre as fronteiras, conce<strong>de</strong>ndo tratados que<br />
apenas davam uma trégua momentânea aos conflitos.<br />
Com relação ainda ao Gran<strong>de</strong> Cisma do Oci<strong>de</strong>nte, po<strong>de</strong>mos perceber tanto uma<br />
crise <strong>de</strong> expressiva conseqüência às bases da Igreja na Europa, como a opção <strong>de</strong> conflito<br />
dos partidários por cada papa. Em outros termos, abria-se a possibilida<strong>de</strong> legitimada <strong>de</strong><br />
cristãos lutarem contra cristãos, já que estariam disputando a <strong>de</strong>fesa da autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
37 SOUSA, Armindo <strong>de</strong>. Realizações. In: MATTOSO, José. (Org.) op. cit., p. 490.<br />
38 Ibid., p. 491.<br />
31
sua respectiva Santida<strong>de</strong>, contra os cismáticos, ainda que estes cristãos mostrem uma<br />
mudança <strong>de</strong> pensamento sobre o papa mais a<strong>de</strong>quado, como sugere Armindo <strong>de</strong> Sousa:<br />
E cismáticos porquê? Porque o papa <strong>de</strong>les era o outro. Útil, excessivamente útil aos príncipes o<br />
Gran<strong>de</strong> Cisma do Oci<strong>de</strong>nte. Mudarão <strong>de</strong> obediência pontifícia ao sabor das oportunida<strong>de</strong>s<br />
diplomáticas e políticas. Castela e França seguirão o papa <strong>de</strong> Avinhão e Inglaterra o <strong>de</strong> Roma;<br />
Portugal vai seguir um e outro, conforme lhe convenha a ‘fé’ dos Franceses ou a ‘fé’ dos <strong>de</strong><br />
Inglaterra. Assim, em 1378, duas ‘fés’, primeiro a <strong>de</strong> Roma e <strong>de</strong>pois a <strong>de</strong> Avinhão; em 1381,<br />
volta-se à <strong>de</strong> Roma; no ano seguinte, retorna-se a <strong>de</strong> Avinhão. Com D. João I, Roma é que será a<br />
autêntica: Castela estava no erro. 39<br />
Diante das revoltas e incertezas no reino português, Dom Fernando toma<br />
algumas atitu<strong>de</strong>s governativas, como uma reforma administrativa, que envolve a lei das<br />
Sesmarias, leis protetoras aos mercadores, entre outras, na tentativa <strong>de</strong> agradar os<br />
grupos sociais. Como afirma Armindo <strong>de</strong> Sousa: “O povo revoltava-se contra o rei e<br />
contra os tempos. E o rei tentava, embainhada a espada inglória, socorrer-se da pena<br />
administrativa – à qual, é facto, se <strong>de</strong>vem os bons actos da sua governação.” 40<br />
No ano <strong>de</strong> 1373, o monarca português resolve atacar o reino castelhano, pois o<br />
rei Henrique II Trastâmara havia morrido, e seu sucessor, João I <strong>de</strong> Castela, parecia um<br />
adversário fraco. No entanto, o embate ocorre apenas em 1381, e <strong>de</strong>sta vez foi o rei <strong>de</strong><br />
Castela que inva<strong>de</strong> Portugal, sendo que após os conflitos militares, chega-se a uma<br />
trégua, que <strong>de</strong>ntre os vários pontos, um passava pelo acordo <strong>de</strong> que a infanta Dona<br />
Beatriz, her<strong>de</strong>ira do trono português, casaria com um her<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> Castela. Ficando o rei<br />
castelhano viúvo em 1383, Dona Beatriz, em tratado re<strong>de</strong>finido no mesmo ano, passou a<br />
ser esposa <strong>de</strong> Dom João I <strong>de</strong> Castela, com a seguinte cláusula: falecendo Dom Fernando<br />
sem filho varão, isto é, legítimo e acima <strong>de</strong> 14 anos, as coroas <strong>de</strong> Portugal e Castela,<br />
apesar <strong>de</strong> separadas, estariam sob o domínio <strong>de</strong> Dom João I <strong>de</strong> Castela e Dona Beatriz,<br />
ainda que Leonor Teles por regedora do reino português, já que sua filha tinha então 11<br />
anos. Uma situação <strong>de</strong>licada ao reino lusitano, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da sucessão agnática;<br />
lembremos que o casamento que Dom Fernando não foi politicamente arranjado, sendo<br />
neste momento o peso da sua escolha <strong>de</strong>cisiva ao futuro do reino, ou melhor, nas<br />
palavras <strong>de</strong> Armindo <strong>de</strong> Sousa:<br />
D. Fernando, emotivo e manobrável, amigo <strong>de</strong> fidalgos e <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhador do povo, <strong>de</strong> Formoso e<br />
Inconstante cognominado, ocupa no painel dos reis portugueses uma posição mal olhada. Des<strong>de</strong><br />
sempre. O cronista Fernão Lopes dá <strong>de</strong>le a imagem <strong>de</strong> um homem que morre chorando,<br />
39 Ibid., p. 493.<br />
40 Ibid., p. 492.<br />
32
amaldiçoando-se, farrapo <strong>de</strong> príncipe. E com efeito: coroa dilapidada, trono sem her<strong>de</strong>iro, espada<br />
vencida, rainha adúltera e nação [sic] em perigo. 41<br />
Com a morte <strong>de</strong> Dom Fernando em 1383, inicia-se a regência <strong>de</strong> sua esposa.<br />
Regência esta iniciada em outubro, em tempos conturbados no reino, pois o povo não<br />
concordava com o tratado realizado entre os reinos. A confusão estabelecida no reino<br />
português dava-se mais ainda após a movimentação do rei castelhano em buscar<br />
possíveis her<strong>de</strong>iros. A tentativa do monarca <strong>de</strong> Castela era enfraquecer o po<strong>de</strong>r<br />
português a seu favor, aumentando as chances <strong>de</strong> ter o controle político por completo do<br />
reino vizinho. O auge dos conflitos na regência <strong>de</strong> Leonor Teles ocorre no dia 6 <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1383, quando o Con<strong>de</strong> João Fernan<strong>de</strong>s An<strong>de</strong>iro, amante <strong>de</strong>sta, é<br />
assassinado pelo Mestre <strong>de</strong> Avis, futuro Dom João I <strong>de</strong> Portugal. É neste contexto que a<br />
dinastia <strong>de</strong> Borgonha tem seus últimos dias, e um interregno – um período em que não<br />
há rei nem autorida<strong>de</strong> que responda por um monarca – marca a transição <strong>de</strong> dinastias.<br />
2.2 O NASCIMENTO DA DINASTIA DE AVIS<br />
Após o assassinato do Con<strong>de</strong> An<strong>de</strong>iro, alguns portugueses resolvem estabelecer<br />
um acordo para que o Mestre <strong>de</strong> Avis fosse <strong>de</strong>fensor do reino, sendo apoiado pelo povo<br />
<strong>de</strong> Lisboa, como escreve o cronista Fernão Lopes:<br />
Amdamdo o poboo assi levamtado, posto em trabalho <strong>de</strong> fallar em tam gram<strong>de</strong>s duvidas; e veĕdo<br />
no Meestre tamta autorida<strong>de</strong>, que pera os <strong>de</strong>ffem<strong>de</strong>r era perteemçemte, ardiam todos com cobiiça<br />
<strong>de</strong> o averem por senhor; e fallamdo huũs com os outros <strong>de</strong>ziam: Que estamos fazendo?<br />
Tomemos este homem por <strong>de</strong>ffensor, ca sua discriçom e fortelleza he tamta, que abastara pera<br />
empuxar todollos periigoos que nos aviinr po<strong>de</strong>m. 42<br />
Esse apoio à pessoa do Mestre <strong>de</strong> Avis não foi provavelmente obra do acaso,<br />
ainda mais pela personalida<strong>de</strong> hesitante que este tinha; po<strong>de</strong>mos pensar num movimento<br />
ao contrário, isto é, o acordo seria parte do assassinato, tendo alguns nobres um<br />
posicionamento <strong>de</strong>fensivo previamente estabelecido à imagem do assassino. Aos olhos<br />
<strong>de</strong> Marcella Lopes Guimarães, este apoio vinha cercado <strong>de</strong> contradições que seriam<br />
próprias das relações entre os nobres, já que precisavam atuar politicamente para<br />
assegurar suas respectivas posições:<br />
41 Ibid., p. 491.<br />
42 FL-CDJI-I, Cap. XX, p. 42.<br />
33
É interessante perceber o movimento dos nobres em torno do assassinato do An<strong>de</strong>iro. Depois <strong>de</strong><br />
executar um ato que afrontava diretamente a rainha, com o apoio dos fidalgos que apoiavam a<br />
regência da esposa do monarca falecido, [...] o Mestre vai cercado por esses pedir perdão à<br />
Leonor Teles. Na verda<strong>de</strong>, sabemos que essa ação culminará com a passagem da regência para<br />
D. João <strong>de</strong> Avis, o que significará a <strong>de</strong>serção <strong>de</strong> vários <strong>de</strong>sses fidalgos que queria a morte do<br />
An<strong>de</strong>iro. Po<strong>de</strong>mos afirmar que a sua morte era uma necessida<strong>de</strong> entrevista pelos nobres para<br />
reequilibrar a balança <strong>de</strong> honra e proveito que a influência do con<strong>de</strong> João Fernan<strong>de</strong>s fazia<br />
pen<strong>de</strong>r-lhes <strong>de</strong>sfavorável. 43<br />
No início <strong>de</strong> 1384, o rei <strong>de</strong> Castela inva<strong>de</strong> Portugal, realizando um cerco à<br />
cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa, que por alguns motivos, em especial a peste que ataca a parte externa<br />
dos muros, acaba propiciando a vitória portuguesa. Esta manutenção <strong>de</strong> soberania acaba<br />
<strong>de</strong>spertando um sentimento <strong>de</strong> unida<strong>de</strong> em torno do Mestre <strong>de</strong> Avis, que parecia não<br />
mais ser apoiado apenas por alguns, ou nas palavras <strong>de</strong> Armindo <strong>de</strong> Sousa, “[...] a causa<br />
do Mestre já não era a <strong>de</strong> uns rebel<strong>de</strong>s que se ergueram em Lisboa, mas a <strong>de</strong> Portugal<br />
erguido contra Castela. Para que o Mestre fosse rei só faltava uma eleição confirmada<br />
pelos três braços da nação [sic]. Em cortes, obviamente.” 44 O acordo estabelecido <strong>de</strong><br />
que o Mestre <strong>de</strong> Avis <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>sse o reino foi cumprido, e a realização dos objetivos <strong>de</strong><br />
alguns nobres em aliar-se a ele estava cada vez mais sólida.<br />
Mesmo com a retirada dos castelhanos, a situação no reino era complicada, pelo<br />
fato do reino estar sem rei. Neste contexto, alguns portugueses tomavam a palavra em<br />
nome da coletivida<strong>de</strong>, causando divisões típicas em períodos <strong>de</strong> crise, ou revolução<br />
como querem alguns historiadores. Vozes como as <strong>de</strong> Álvaro Pais e Álvaro Gonçalves,<br />
que solicitam ao rei que seja não mais apenas <strong>de</strong>fensor, mas regedor e <strong>de</strong>fensor do<br />
reino, como <strong>de</strong>screve Fernão Lopes:<br />
[...] vaamos ao Mestre e peçamos lhe aficadamente, que seja sua merçee em toda guisa, tomar<br />
carrego <strong>de</strong> <strong>de</strong>fem<strong>de</strong>r este çida<strong>de</strong> e o rregno; e nos o serviemos com os corpos e averes, e lhe<br />
daremos todo quamto teemos: e assi farom todollos outros do rregno que verda<strong>de</strong>iros<br />
Portugueses forem; e nom curem <strong>de</strong> mais emviar rrecado aa Rainha, nem da rreposta que lhe ha<br />
<strong>de</strong> mamdar.<br />
Estomçe ho comuũ poboo livre e nom sogeito a alguũs que o comtrario disto semtissem, lhe<br />
pedirom por merçee que se chamasse Regedor e Defensor dos rregnos; e ell veemdo seu gram<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sejo, <strong>de</strong>si o comsselho <strong>de</strong> frei Johane, e dos outros que lhe sobristo aviam fallado, outorgou <strong>de</strong><br />
o fazer. 45<br />
Neste período, Dona Leonor é expulsa do reino, e então o Mestre <strong>de</strong> Avis rege e<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> o reino por mais um ano, até <strong>1385</strong>, ano em que as Cortes <strong>de</strong> Coimbra são<br />
convocadas, para eleger um novo rei. Nas cortes, havia alguns candidatos, e diante das<br />
43 GUIMARÃES, Marcella Lopes. op. cit., f. 169-170.<br />
44 SOUSA, Armindo <strong>de</strong>. op. cit., p. 495.<br />
45 FL-CDJI-I, Cap. XXVI, p. 52.<br />
34
argumentações advogadas por cada um, ou melhor, na fala do orador, grupos dividiram-<br />
se entre as qualida<strong>de</strong>s e atributos políticos e sociais dos elegíveis, como sugere Armindo<br />
<strong>de</strong> Sousa:<br />
As cortes, <strong>de</strong> que estavam ausentes os partidários <strong>de</strong> D. Beatriz, dividiram-se em dois blocos:<br />
um, apoiado pelos concelhos e pela nobreza <strong>de</strong> segunda; e outro, pelos nobres <strong>de</strong> primeira e<br />
provavelmente pela maioria dos prelados. Aquele votava em D. João I, Mestre <strong>de</strong> Avis,<br />
‘Governador e Regedor do Reino’ <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a expulsão <strong>de</strong> D. Leonor; este votava no outro D. João,<br />
meio-irmão do anterior, consi<strong>de</strong>rado por muitos como infante legitimado por casamento<br />
clan<strong>de</strong>stino. 46<br />
Desta polarização, surge o orador oficial das cortes, João das Regras, que<br />
assume a posição do Mestre <strong>de</strong> Avis. Durante cerca <strong>de</strong> um mês ficaram as cortes em<br />
reuniões para <strong>de</strong>cidir o novo rei <strong>de</strong> Portugal, já que o reino estava vulnerável a ameaças<br />
externas e ao caos interno. Nas palavras <strong>de</strong> Fernão Lopes, que no trecho abaixo<br />
apresenta João das Regras, po<strong>de</strong>mos perceber a importância das reuniões em Coimbra e<br />
da <strong>de</strong>cisão a ser tomada, a fim <strong>de</strong> manter a soberania <strong>de</strong> Portugal na península:<br />
Elles todos em huũ paaço, postos em assessego e boa hor<strong>de</strong>namça, era hi huũ notavell barom,<br />
homem <strong>de</strong> perfeita autorida<strong>de</strong>, e comprido <strong>de</strong> sçiemçia, mui gram<strong>de</strong> leterado em lex, chamado<br />
doutor Joham das Regas, cuja sotillda<strong>de</strong> e clareza <strong>de</strong> bom fallar amtre os leterados, oje em dia he<br />
theuda em comta. Este propos naquellas Cortes, teemdo cuidado <strong>de</strong> mostrar per sçiemçia e<br />
rrazom, a verda<strong>de</strong> e proveito <strong>de</strong> tam gram negoçio como este, e aos poboos ficar <strong>de</strong>pois<br />
emcarrego, escolher quall <strong>de</strong>terminaçom quisessem. [...] ‘Bem sabees como somos aqui jumtos,<br />
pera com a graça <strong>de</strong> Deos e sua ajuda avermos <strong>de</strong> trautar e acordar as cousas que compridoiras<br />
som pera rregimento e governamça <strong>de</strong>stes rreinos; espeçiallmente em feito <strong>de</strong> <strong>de</strong>ffemssõ da<br />
guerra, na quall somos postos e tã prestes teemos como todos bem sabees’. ‘E mais pera<br />
fallarmos, se estes rreinos <strong>de</strong>pois da morte <strong>de</strong>lRei dom Fernando, que <strong>de</strong>lles foi postumeiro<br />
possuidor, ficarom vagos e <strong>de</strong>semparados, sem rei e <strong>de</strong>ffemsor li<strong>de</strong>mo que os possa e <strong>de</strong>va<br />
herdar <strong>de</strong> <strong>de</strong>reito, pera sobrello proveermos como nos Deos ajudar, <strong>de</strong> guisa que o rreino seja<br />
mantheudo em <strong>de</strong>reito e justiça, e nos guardados e <strong>de</strong>ffesos <strong>de</strong> nossos emmiigos e comtrairos.<br />
Mas porque alguũs dizem que nom ha hi <strong>de</strong>reito her<strong>de</strong>iro; outros afirmam que o teemos mui<br />
çerto, e por esto sooes ĕ alguũ <strong>de</strong>sacordo; porem eu por tirar damtre vos tall <strong>de</strong>bato e fadiga, em<br />
favor das rrazoões dos que <strong>de</strong>vem herdar, quero mostrar, que nom soomente ha hi huũ her<strong>de</strong>iro,<br />
mas que teemos assaz <strong>de</strong>lles, <strong>de</strong> que po<strong>de</strong>mos tomar quall nos prouguer’. 47<br />
João das Regras procura <strong>de</strong>monstrar que havia vários prováveis candidatos, e<br />
que todos apresentavam o mesmo empecilho: a ilegitimida<strong>de</strong>. Para contornar seu<br />
argumento a favor do Mestre <strong>de</strong> Avis, <strong>de</strong>stacando-o dos <strong>de</strong>mais, João das Regras<br />
procura i<strong>de</strong>ntificar no monarca i<strong>de</strong>al algumas qualida<strong>de</strong>s, a saber: ser <strong>de</strong> boa linhagem,<br />
ter bom coração para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o reino, e amor aos súditos. Qualida<strong>de</strong>s genéricas que<br />
marcariam uma harmonia entre o corpo político português, sendo as Cortes <strong>de</strong> Coimbra<br />
46 SOUSA, Armindo <strong>de</strong>. op. cit., p. 496.<br />
47 FL-CDJI-I, Cap. CLXXXIII, p. 393-394.<br />
35
o espaço apropriado para selar o acordo em favor daquele que se a<strong>de</strong>quasse às<br />
condições. Com a <strong>de</strong>fesa militar que o Mestre <strong>de</strong> Avis fez ao cerco <strong>de</strong> Lisboa em 1384,<br />
o Mestre assumia uma qualida<strong>de</strong> importante para conquistar a confiança dos membros<br />
das Cortes, como aponta Fernão Lopes:<br />
Hora, senhores, disse aquell Doutor [João das Regras], pois que ja vistes claramente aquello<br />
sobre que tamto duvidavees, e que a Deos prougue <strong>de</strong> seer<strong>de</strong>s em conheçimento, em como estes<br />
rreynos som <strong>de</strong> todo vagos, e postos em nossa disposiçom pera emlegermos quĕ os <strong>de</strong>ffemda e<br />
governe. [...] E digo brevemente segumdo os saibos rrecomtam, que amtre as cousas que em ell<br />
ha daver, <strong>de</strong>ve <strong>de</strong> seer <strong>de</strong> boom linhagem, e <strong>de</strong> grã<strong>de</strong> coraçom pera <strong>de</strong>ffem<strong>de</strong>r a terra; <strong>de</strong>si que<br />
aja amor aos subditos; e com isto bomda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>vaçom. Hora que estas comdiçoões sejam<br />
achadas no Mestre, nosso senhor, que teemos ĕ voomta<strong>de</strong> pera emlleger, assaz he visto<br />
claramente como todos bem sabees. [...] Assi que pellas cousas que vimos atta hora, este dom<br />
Joham Meestre dAvis, que tãto trabalhou e trabalha por homrra e <strong>de</strong>ffemssom <strong>de</strong>stes rreinos, he<br />
apto e perteeçemte, e mereçe esta homrra e estado <strong>de</strong> rei." [...] nomeemos e escolhamos na<br />
melhor maneira que po<strong>de</strong>r seer, este dom Joham, filho <strong>de</strong>lRei dom Pedro, por rei e senhor <strong>de</strong>stes<br />
rreinos; e outtorguemoslhe que sse chame Rei, e mã<strong>de</strong> fazer no rregimento e <strong>de</strong>ffenssom <strong>de</strong>lles,<br />
todallas cousas que perteeçem ao offiçio <strong>de</strong> rei, segumdo costumarom <strong>de</strong> fazer aquelles que o<br />
ataa qui forom. 48<br />
Temos nas Cortes <strong>de</strong> Coimbra a vitória do Mestre <strong>de</strong> Avis como novo monarca<br />
<strong>de</strong> Portugal, sendo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então chamado Dom João, primeiro da dinastia <strong>de</strong> Avis;<br />
Armindo <strong>de</strong> Sousa vê neste movimento mais um temor à ação enérgica e violenta <strong>de</strong><br />
Nuno Álvares Pereira, nobre <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>staque a atuação política no reino, do que uma<br />
concordância com os argumentos <strong>de</strong> João das Regras. De qualquer forma, constatamos<br />
que o grupo que o apóia era essencialmente a nobreza <strong>de</strong> segunda linhagem, que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />
assassinato do Con<strong>de</strong> João Fernan<strong>de</strong>s An<strong>de</strong>iro, a<strong>de</strong>re a seu favor; uma espécie <strong>de</strong><br />
renovação, já que com a mudança dinástica, alguns nobres portugueses migram ou se<br />
exilam para o reino <strong>de</strong> Castela. Por algum tempo, por exemplo, o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Nuno<br />
Álvares Pereira, <strong>de</strong>scrito por Fernão Lopes, quase se equipara ao do novo monarca, o<br />
que marca um posicionamento afirmativo daquele para o estabelecimento dos interesses<br />
<strong>de</strong> parte da nobreza presentes naquele contexto.<br />
Não tarda e o rei <strong>de</strong> Castela resolve cobrar os seus direitos sobre o tratado que<br />
assinara com Dom Fernando, como escreve Fernão Lopes:<br />
[...] naõ embarguando a vonta<strong>de</strong> que trazia, quis primeiro aver cõselho cõ os seus sera bem vir<br />
por seu corpo e emtrar em Portugal, ou se era melhor poer fromteiros no estremo e fazer ouutra<br />
maneira <strong>de</strong> guerra; e sobre esto foy hũ muito gram<strong>de</strong> e notavel cõsselho, no quoal se falaraõ<br />
muitas e boas rezoĕis; mas <strong>de</strong> todolas elas estas em breve abastĕ das que aly foraõ propostas.<br />
48 FL-CDJI-I Cap. CXCI, p. 419-421.<br />
36
Hũs diziaõ que seu comsselho era que elRey <strong>de</strong>via <strong>de</strong> emtrar cõ todo seu po<strong>de</strong>r em Portugal e<br />
trabalhar por cobrar o Reino que lhe per direito pertemçia. 49<br />
A invasão <strong>de</strong> Castela a Portugal marcaria para Dom João I a própria afirmação<br />
da sua posição enquanto monarca do reino português, agora vencedor <strong>de</strong> duas batalhas<br />
que Fernão Lopes enaltece com especial brilho. E esta, que ocorre perto <strong>de</strong> Leiria, na<br />
al<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> Aljubarrota, diferentemente do cerco <strong>de</strong> Lisboa, era campal e com gran<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>scompasso numérico entre os portugueses e castelhanos, estes em maior número. Em<br />
um trecho que sintetiza o momento, o cronista Fernão Lopes consegue captar o espírito<br />
da batalha, reveladora enquanto gênese dinástica fundada na vitória militar:<br />
[...] a qual era taõ gram<strong>de</strong> [os castelhanos] e asy fermosa <strong>de</strong> ver, quue os portuugueses nnaõ<br />
pareçiaõ mais amte eles que ho lume <strong>de</strong> huũa pobre estrela amte clarida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lua em seus<br />
perfeitos dias. [...] Rei falando: Amiguos Senhores, nnaõ embarguamdo que nosos imiguos<br />
vennhão a nos em gram<strong>de</strong> multidaõ como ve<strong>de</strong>s, naõ queiraes temer ho espanto que poĕ, como ja<br />
dixe, mas se<strong>de</strong> fortes e nnaõ temaes nada, pois que legeira cousa hee ao Senhor Deus sogeguar<br />
muitos em maõs <strong>de</strong> poucos. [...] e nos por nosa <strong>de</strong>femssaõ e do Reinno e da nosa Madre Santa<br />
Igreija pelejamos com eles e vos vereis oje como todos saõ vemçidos e <strong>de</strong>ribados amte noĕ. [...]<br />
Na oste <strong>de</strong>l Rey <strong>de</strong> Castela hera muito pelo contrario caa aly nnaõ avia mester dar esforço a<br />
nnenhuũa gemte nĕ ouutra fouteza pera pelejar, e todos aviaõ a batalha por vemçida e por<br />
sam<strong>de</strong>us e <strong>de</strong>sesperados os portuugueses quue aguordavaõ; somemte tinnhaõ semtido como os<br />
aviaõ <strong>de</strong> matar e cuuida<strong>de</strong> quue fariaõ dos que tomasĕ cativos. [...] E semdo a batalha cada vez<br />
maior e muy ferida dambolas partes, prouve a Deus que a bam<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Castela foy <strong>de</strong>ribada e o<br />
pemdaõ da divisa com ela, e algũs castelaoõs começarão <strong>de</strong> voltar atras; os moços portugueses<br />
que tinnhaõ as bestas e muitos dos outros que eraõ com eles começaraõ altas vozes bradar e<br />
dizer: Ja fogem! Ja fogem! E os castelõs, por naõ fazer <strong>de</strong>les memtirosos, começaraõ cada vez <strong>de</strong><br />
fogir mais. 50<br />
De situação adversa, os portugueses atribuem a vitória a um milagre, obra divina<br />
que confirmaria então os rumos corretos que davam ao reino; e milagre também <strong>de</strong>ntro<br />
do pensamento cismáticos, pela polarização entre o papa <strong>de</strong> Roma e do Avinhão. A<br />
própria figura do rei, que foi eleito em um contexto conturbado, se beneficiou com mais<br />
uma vitória frente à Castela. No enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Marcella Lopes Guimarães,<br />
Um dos aspectos mais interessantes a serem apontados <strong>de</strong>pois da vitória portuguesa em<br />
Aljubarrota é a transformação do rei <strong>de</strong> Portugal, pois o saldo mais importante da batalha foi<br />
prová-lo como viável. Do hesitante Mestre, passando pelo simples cavaleiro que, com facas,<br />
comporta-se como alguém apenas <strong>de</strong>sejoso <strong>de</strong> ganhar fama, a representação <strong>de</strong> D. João I vai<br />
ganhando uma modulação mais inteira e consistente <strong>de</strong> um perfil régio [...]. Seus gestos, palavras<br />
e justiças, cada vez mais presentes no texto [<strong>de</strong> Fernão Lopes], aparecem individualizados, e a<br />
sua necessida<strong>de</strong> à frente do reino ganha raízes profundas. 51<br />
49 FL-CDJI-II Cap. XXVI, p. 59.<br />
50 FL-CDJI-II Cap. XLI, p. 102-107.<br />
51 GUIMARÃES, Marcella Lopes. op. cit., f. 211.<br />
37
Em situação favorável, Dom João I procura reaver territórios que consi<strong>de</strong>rava<br />
usurpados pelo reino vizinho, e <strong>de</strong> incursões e recuos, paulatinamente consegue agrupar<br />
várias cida<strong>de</strong>s que obe<strong>de</strong>ciam à Castela. Dos acordos frágeis e rompidos, chegou-se ao<br />
acordo <strong>de</strong> 1402, que previu trégua e paz por 10 anos, renovado em 1412 em Segóvia; as<br />
fronteiras <strong>de</strong> Portugal voltaram praticamente ao traçado tradicional, como informa<br />
Fernão Lopes:<br />
Tornou o Douctor a Casteella pera fallar em feito da treguoa, seguumdo o recado que <strong>de</strong>l Rey<br />
levava. E leixamdo o lomguo razoado que damballas partes sobre esto ouve e as comdiçoens<br />
odiosas <strong>de</strong> que se os castellãos <strong>de</strong> todo <strong>de</strong>ceram, finalmente foram comcordados em tregoa <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>z annos com certos capitollos em ella postos dos quaes brevemente diremos estes, a saber: que<br />
elle e seus er<strong>de</strong>iros nam fariam guerra por parte da Rainha dona Breatiz nem daquele Ifamte que<br />
se chamava Rey, nem comsemtiriam a elles que a fizesem com gemte doutra nação nem sua; e<br />
quaamdo a fazer quisesem que elle seria em <strong>de</strong>sfazimemto do tall com todo seu po<strong>de</strong>r. Outrosi<br />
que se emtreguasem <strong>de</strong> hũu Regno a outro todollos luguares que foram filhados per quoall quer<br />
guisa que fose, a saber: <strong>de</strong> Purtuguall a Castella, Badalhouce, Tuy, Salvaterra, Saom Martinho, e<br />
<strong>de</strong> Castella a Purtuguall, Braguamça, Vinhaees, o casteello <strong>de</strong> Piconha, Myramda, Penamacor,<br />
Penaguarcia, Segura, Noudal, os quaes emtreguas aviam <strong>de</strong> seer <strong>de</strong>sta guisa: que a certos dias<br />
<strong>de</strong>pois da publicaçaom <strong>de</strong>sta treguoa, fosem postos por arrefĕes em po<strong>de</strong>r do Com<strong>de</strong>estabre ou<br />
quem seu po<strong>de</strong>r tivese. 52<br />
Com estes acordos, o reino português teria um novo problema a resolver: a<br />
manutenção <strong>de</strong> práticas militares <strong>de</strong>ntro do pensamento nobiliárquico, mas sem um alvo<br />
<strong>de</strong>finido. Sabemos que saques e invasões pontuais permaneceriam, mas teriam uma<br />
conotação inferior se entendidas que as anteriores, marcadas por apoios régios,<br />
ganhavam <strong>de</strong>staque por possuírem alianças travadas com o po<strong>de</strong>r monárquico, e <strong>de</strong><br />
como este articulava a a<strong>de</strong>são dos nobres. Nas palavras <strong>de</strong> Luís Filipe Thomaz,<br />
[...] o ‘<strong>de</strong>semprego’ da aristocracia após a paz com Castela foi exatamente o argumento final<br />
lançado na balança por D. João I <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> terem sido pesadas e repesadas todas as vantagens e<br />
inconvenientes do projeto [tomar Ceuta]: agora que se alcançou a paz e que os nobres já não têm<br />
guerra em que se ocupar, ou continuarão a fazer incursões no país vizinho à revelia dos po<strong>de</strong>res,<br />
pondo uma vez mais em perigo a paz e a in<strong>de</strong>pendência do reino, ou então multiplicação as<br />
exações e a opressão sobre o povo miúdo e perturbarão a estabilida<strong>de</strong> social interna. 53<br />
A ascensão da dinastia <strong>de</strong> Avis significa para Portugal uma organização interna<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um contexto ainda marcado na Europa pela Guerra dos Cem Anos e o Gran<strong>de</strong><br />
Cisma do Oci<strong>de</strong>nte, e que na Península Ibérica assumia polarizações entre os reinos.<br />
Alguns nobres viam no conflito militar a sua forma <strong>de</strong> se estabelecem enquanto grupo<br />
social distinto dos <strong>de</strong>mais, e o próprio monarca po<strong>de</strong>ria projetar nas armas uma<br />
52 FL-CDJI-II Cap. CLXXXVI. p. 409.<br />
53 THOMAZ, Luís Filipe. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1994. p. 57.<br />
38
estratégia <strong>de</strong> fortalecer sua posição perante o reino. Armindo <strong>de</strong> Sousa vê em Dom João<br />
I um rei por acaso, que soube tirar proveito do contexto, pois “não nasceu herói; fez-se.<br />
Não nasceu rei; apren<strong>de</strong>u. Empurrado pelos factos? Com certeza. Mas tirou dos factos<br />
lição.” 54<br />
Num primeiro momento, po<strong>de</strong>mos perceber como o contexto conturbado <strong>de</strong><br />
transição dinástica <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia a iniciativa <strong>de</strong> manutenção da autonomia política <strong>de</strong><br />
Portugal; e <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sta manutenção, uma parcela do corpo político procura fortalecer<br />
as bases do po<strong>de</strong>r que regiam a socieda<strong>de</strong>, abrindo possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ações capazes <strong>de</strong><br />
aten<strong>de</strong>r aos interesses nobiliárquicos. Neste sentido, o reinado <strong>de</strong> Dom João I apresenta-<br />
se em dois momentos, a saber: da sua ascensão e viabilida<strong>de</strong>, e da condução <strong>de</strong> práticas<br />
capazes <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r aos objetivos da esfera política mais próxima <strong>de</strong>le, mantendo a sua<br />
própria autonomia enquanto reino.<br />
Com isso, optamos por recuar na discussão sobre a tomada <strong>de</strong> Ceuta no noroeste<br />
africano este momento formativo, pois acreditamos ser necessário perceber a trajetória<br />
<strong>de</strong> alguns nobres que atuavam com Dom João I <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pelo menos a escolha <strong>de</strong>le como<br />
<strong>de</strong>fensor do reino; e mesmo perceber como tratados <strong>de</strong> paz com Castela foram<br />
importantes para compreen<strong>de</strong>r as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ação <strong>de</strong> ambos os reinos no século<br />
XV. Em última instância, o movimento levado a cabo pelos nobres em torno <strong>de</strong><br />
questões legitimadoras, como por exemplo, as práticas militares nos reinos ibéricos,<br />
mostrou-se importante na discussão das relações entre nobres e a monarquia, pois<br />
<strong>de</strong>ntro da documentação consultada, esta aliança marca com ênfase os interesses<br />
presentes em ambos os grupos; e neste sentido, analisar esta aliança na conformação da<br />
dinastia <strong>de</strong> Avis auxilia ao entendimento dos objetivos no noroeste africano, que como<br />
veremos a seguir, mostravam-se polissêmicos.<br />
2.3 CRUZ E ESPADA NO NOROESTE AFRICANO<br />
Como foi referido no início <strong>de</strong>ste capítulo, o estudo da tomada <strong>de</strong> Ceuta é<br />
balizado na historiografia consultada como marco inicial do Império marítimo<br />
português, sendo praticamente os estudos iniciados com esta conquista em 1415. Como<br />
foi proposto nesta presente pesquisa histórica, recuamos na transição <strong>de</strong> dinastias <strong>de</strong><br />
Portugal para perceber como ela se estruturou no contexto ibérico, e como alguns<br />
54 SOUSA, Armindo <strong>de</strong>. op. cit. p. 496.<br />
39
nobres que atuariam em Ceuta já tinham uma participação anterior, consi<strong>de</strong>rando,<br />
portanto, uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> análise integrada com as crônicas <strong>de</strong> Fernão Lopes e<br />
Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara.<br />
Chegando ao contexto do início do século XV, e em especial ao movimento <strong>de</strong><br />
tomada militar <strong>de</strong> Ceuta, os historiadores consultados apresentam causas, ou ainda,<br />
motivos que fizeram os portugueses organizarem-se para navegar e cruzar o mar<br />
Mediterrâneo. Lembremos apenas que as várias causas apenas reforçam a idéia <strong>de</strong><br />
sentido polissêmico à tomada <strong>de</strong> Ceuta, sendo que a abordagem pretendida nesta<br />
pesquisa está mais vinculada aos móveis simbólicos da cruzada, e como a nobreza e<br />
monarquia atuaram naquele momento. Nas palavras <strong>de</strong> Charles Boxer, “[...] os impulsos<br />
fundamentais por trás do que se conhece como a ‘Era dos Descobrimentos’ sem dúvida<br />
surgiram <strong>de</strong> uma mistura <strong>de</strong> fatores religiosos, econômicos, estratégicos e políticos, é<br />
claro que nem sempre dosados nas mesmas proporções.” 55 Ao contrário <strong>de</strong> enumerar as<br />
várias causas apontadas pelos historiadores, optamos por analisar diretamente na<br />
documentação os objetivos, fazendo com isso uma discussão sobre os argumentos<br />
apresentados ao movimento <strong>de</strong> guerra.<br />
A Crónica da tomada <strong>de</strong> Ceuta escrita por Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara inicia com o<br />
acordo <strong>de</strong> paz com Castela, mostrando como os reinos firmaram a trégua, observado no<br />
seguinte trecho:<br />
Mas é agora, primeiramente, <strong>de</strong> saber o gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo que el-Rei havia <strong>de</strong> ver acabados os feitos<br />
da guerra que era entre ele e o reino <strong>de</strong> Castela. Não porque ele em seu coração, temesse o po<strong>de</strong>r<br />
dos Castelãos nem doutras nenhumas pessoas, cá assaz era <strong>de</strong>sforçado e valente em todos os<br />
casos perigosos. [...] Mas isto fazia [requerer a paz] a dois fins: o primeiro porque lhe pesava <strong>de</strong><br />
seu dano em quanto eram cristãos, e o segundo porque, guerreando com eles, não podia haver<br />
lugar para servir a Deus como <strong>de</strong>sejava. 56<br />
Nesta passagem, po<strong>de</strong>mos perceber como o critério <strong>de</strong> cismático teria um peso<br />
diminuto neste momento, pois se antes se lutava contra o castelhano por este seguir<br />
outro papa, neste caso o argumento é diferente, pois acima <strong>de</strong> cismático, o castelhano<br />
era cristão, e como tal, <strong>de</strong>veria prezar pela não violência.<br />
A paz ou trégua, tratada como benéfica para ambos os reinos, traria uma dupla<br />
visão aos portugueses, pois Zurara indica que uma parte aprovou, e outra se mostrou<br />
<strong>de</strong>scontente com tal política. Como afirmam Bailey Diffie e George Winius, “os mais<br />
velhos, muitos <strong>de</strong>les mercadores, pon<strong>de</strong>ravam as vantagens econômicas da paz. Mas os<br />
55 BOXER, Charles. op. cit., p. 33.<br />
56 GEZ-CTC, Cap. IV, p. 47-48.<br />
40
jovens membros da nobreza opunham-se à paz com Espanha [sic], alguns dos quais não<br />
possuíam nada, a não ser a esperança da fortuna conseguida por feitos guerreiros.” 57<br />
A aprovação da paz veio, portanto, <strong>de</strong> pessoas que tinham prejuízos com os<br />
confrontos, como camponeses, mercadores, pequenas igrejas, idosos e in<strong>de</strong>fesos. No<br />
entanto, como afirma o cronista, “outras <strong>de</strong>partições mui contrairas <strong>de</strong>stas eram entre os<br />
fidalgos mancebos com todos os outros <strong>de</strong> sua ida<strong>de</strong>. E assim alguns homens que não<br />
tinham outro bem senão esperança do ganho que lhe havia <strong>de</strong> ser dado por avantagem<br />
que fizessem no feito das armas.” 58<br />
A solução encontrada pelo rei Dom João I foi seguir seu preceito religioso, a<br />
saber: lutar a serviço <strong>de</strong> Deus. Nisto estaria o argumento para a trégua com Castela, pois<br />
não <strong>de</strong>veria guerrear com outro cristão; talvez ainda pu<strong>de</strong>sse lutar a favor do papa que<br />
consi<strong>de</strong>rava o legítimo, combatendo o cisma e o inimigo vizinho, mas antes disto ele<br />
<strong>de</strong>veria enfrentar um inimigo acima na hierarquia <strong>de</strong> adversários: o muçulmano. Este<br />
i<strong>de</strong>ntificado, primeiramente, no reino <strong>de</strong> Granada na própria Ibéria: “E, porquanto o<br />
reino <strong>de</strong> Grada [Granada] lhe pareceu mais azado para a guerra que outro algum, fez<br />
saber sua intenção ao Infante Dom Fernando, porquanto os reis <strong>de</strong> Castela têm assim<br />
aquele reino quase em sogeição [em estado <strong>de</strong> vassalagem forjada], dizendo que é da<br />
sua conquista. que, porém, não o <strong>de</strong>ve guerrear nenhuma pessoa sem sua autorida<strong>de</strong> e<br />
mandado.” 59<br />
Nas palavras <strong>de</strong> Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara, o rei Dom João I tinha por <strong>de</strong>sejo<br />
armar seus filhos cavaleiros, e o monarca havia pensado em realizar uma festa pomposa<br />
em Lisboa, chamando autorida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> vários reinos; mas para os preceitos nobres e<br />
militares, como vemos no seguinte trecho, atribuído a fala a Dom Henrique, <strong>de</strong>veria<br />
existir outra forma <strong>de</strong> cerimônia para obter a investidura <strong>de</strong> cavaleiro:<br />
Cá pois as pazes <strong>de</strong> Castela são firmadas, e da parte <strong>de</strong> Grada [Granada] não temos esperança<br />
certa, não há hi pelo presente, cousa nenhuma azada em que possamos receber estado <strong>de</strong><br />
cavalaria, se novamente não for buscada. Cá pela maneira que sua senhoria tem vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> o<br />
fazer, tudo é cousa <strong>de</strong> pequeno valor para a gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> tamanho feito, que, por gran<strong>de</strong>s que as<br />
festas sejam, nunca seu nome é <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> valia para semelhante caso, porque semelhantes<br />
pessoas, nos gran<strong>de</strong>s feitos <strong>de</strong> fortaleza com gran<strong>de</strong>s trabalhos e perigos vendo o sangue dos seus<br />
inimigos espargidos ante seus pés, só é <strong>de</strong> receber o grado <strong>de</strong> sua cavalaria. E os filhos dos<br />
cidadãos e dos mercadores, cuja honra não se po<strong>de</strong> mais esten<strong>de</strong>r que a semelhante estado, <strong>de</strong><br />
57 DIFFIE, Bailey; WINIUS, George. A fundação do império português. 1415-1580. Lisboa: Vega,<br />
1993. v. I. p. 66-67.<br />
58 GEZ-CTC, Cap. VI, p. 53.<br />
59 GEZ-CTC, Cap. VII, p. 54.<br />
41
serem cavaleiros, a estes é cousa convinhável, <strong>de</strong> se fazerem festas e jogos, porque toda a força<br />
<strong>de</strong> sua honra está na fama <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>spesas. 60<br />
O filho do monarca consegue expressar com niti<strong>de</strong>z as intenções <strong>de</strong> receber a<br />
cavalaria enquanto símbolo bélico, e para tal, necessitava <strong>de</strong> ações militares,<br />
justificando o título <strong>de</strong>sejado. Mas palavras <strong>de</strong> Marie-Clau<strong>de</strong> Gerbet,<br />
En realidad, a los ojos <strong>de</strong> todos, la clase <strong>de</strong> vida noble por excelencia era la caballería. Esto<br />
significaba primeramente una consagración professional al servicio <strong>de</strong> las armas, a caballo. El<br />
caballero <strong>de</strong>bía estar constantemente a disposición <strong>de</strong>l rey, tener en su posesión un caballo <strong>de</strong><br />
cierto precio, y armas <strong>de</strong>l mismo valor. [...] A<strong>de</strong>más, el caballero disfrutaba <strong>de</strong> un gran prestigio<br />
social, porque estaba investido <strong>de</strong> una misión gloriosa: era el guerrero <strong>de</strong> Dios por excelencia.<br />
Llevaba a cabo un combate consagrado por el Evangelio, y sus virtu<strong>de</strong>s esenciales estaban<br />
también glorificadas. 61<br />
Mas para esta ação, Portugal encontrava-se em paz com Castela, e existia uma<br />
inviabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ataque a Granada. De outro aspecto, po<strong>de</strong>mos também perceber como a<br />
festa citadina teria um significado para mercadores, não se enquadrando os membros da<br />
casa dinástica nesta situação, que aspiravam na guerra a obtenção <strong>de</strong> honra.<br />
A solução encontrada veio por João Afonso, vedor da Fazenda do reino, que<br />
sugere o ataque a praça <strong>de</strong> Ceuta, pois “segundo o gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> vossos padre e o<br />
vosso não sinto, por o presente, cousa mais honradamente pudésseis fazer <strong>de</strong> vossas<br />
honras como o filhamento daquela cida<strong>de</strong> [Ceuta].” 62 Aos argumentos <strong>de</strong> João Afonso,<br />
Cá sendo bem consi<strong>de</strong>radas todas as partes <strong>de</strong> seu movimento, acharia que, dando-lhe Deus<br />
vitória que acabaria três cousas mui gran<strong>de</strong>s, as quais nenhum gran<strong>de</strong> príncipe não <strong>de</strong>via <strong>de</strong><br />
engeitar [rejeitar], quando se lhe assim oferecessem como se a ele em tal caso ofereceram. a<br />
primeira gran<strong>de</strong> serviço a Deus. [...] E a segunda cousa é honra que se vos disso segue. Cá posto<br />
que vos Deus <strong>de</strong>sse muitas e gran<strong>de</strong>s vitórias contra vossos inimigos, isto foi em <strong>de</strong>fensão <strong>de</strong><br />
vosso reino [...] E a terceira cousa é a gran<strong>de</strong> e boa vonta<strong>de</strong> que ten<strong>de</strong>s <strong>de</strong> nos fazer<strong>de</strong>s<br />
honradamente cavaleiros, o que por outra guisa não po<strong>de</strong>reis fazer <strong>de</strong> que se a vós e a nós siga<br />
maior honra, pois que outra nenhuma conquista não ten<strong>de</strong>s em que o possais fazer. 63<br />
Com a sugestão <strong>de</strong> João Afonso, os objetivos pretendidos, tanto do rei como dos<br />
seus filhos em servir a Deus e receber a cavalaria em combate, estariam passíveis <strong>de</strong><br />
alcance. Este pensamento, como veremos, associava-se ao elemento <strong>de</strong> luta contra o<br />
muçulmano, <strong>de</strong> merecimento <strong>de</strong> ações tendo como base a guerra. Se pensarmos nos<br />
60 GEZ-CTC, Cap. VIII, p. 56.<br />
61 GERBET, Marie Clau<strong>de</strong>. La nobleza en la Corona <strong>de</strong> Castilla: sus estructuras sociales em<br />
Extremadura (1454-1516). Cárceres: Institución Cultural “El Brocense”, 1989. p. 52.<br />
62 GEZ-CTC, Cap. IX, p. 58.<br />
63 GEZ-CTC, Cap. IX, p. 59.<br />
42
elementos constitutivos da socieda<strong>de</strong> medieval, e do contexto das Cruzadas nos séculos<br />
XI e XII, temos uma situação semelhante ao contexto ibérico referido:<br />
[No esquema trifuncional] o que justificava a nobreza era sua função militar e <strong>de</strong>fensiva, a qual<br />
só po<strong>de</strong>ria ser colocada em prática num contexto <strong>de</strong> guerra. Ora, vivia-se um período <strong>de</strong> relativa<br />
estabilida<strong>de</strong> após o estabelecimento dos povos da última vaga <strong>de</strong> invasões [bárbaras], e essa<br />
ociosida<strong>de</strong> dos nobres era prejudicial aos po<strong>de</strong>res políticos que os sustentavam, as monarquias<br />
nascentes: os nobres cobravam dos reis ações militares que justificassem contínuas doações <strong>de</strong><br />
bens e cargos, causavam agitação interna e criavam uma pressão insustentável <strong>de</strong>ntro dos limites<br />
da Cristanda<strong>de</strong>. 64<br />
Frente a isto, a estratégia encontrada pelos monarcas e eclesiásticos medievais<br />
foi dar vazão ao impulso pelas armas, pelo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> pilhar bens materiais e sagrados,<br />
enfim, permitir que os cristãos pu<strong>de</strong>ssem entrar em contato com os símbolos <strong>de</strong> seu<br />
credo, ao mesmo tempo em que legitimava as práticas bélicas, procurando ampliar os<br />
domínios da Cristanda<strong>de</strong>. Na mesma direção <strong>de</strong> argumentos, ocorria o processo <strong>de</strong><br />
Reconquista na península, on<strong>de</strong> os argumentos analisados apontam para um<br />
ressurgimento <strong>de</strong> perspectivas legitimadoras. Nos termos <strong>de</strong> Luís Filipe Thomaz,<br />
Pressionado pelos seus filhos e pelo vedor da sua fazenda João Afonso, D. João I, que aspirava<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> algum tempo a realizar uma expedição a Marrocos, voltou então os olhos para a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Ceuta. Mais arriscada do que a <strong>de</strong> Granada, porque cortada da retaguarda cristã, a conquista <strong>de</strong><br />
Marrocos servia melhor que aquela a política <strong>de</strong> afirmação nacional [sic] e <strong>de</strong> prestígio dinástico<br />
que a nova casa real, maculada <strong>de</strong> bastardia, projetava conduzir: para ali se po<strong>de</strong>ria exportar<br />
também a nobreza exce<strong>de</strong>ntária, conservando-a muito embora sob a suserania portuguesa. 65<br />
Com relação a estes argumentos cruzadísticos, não estamos sugerindo que eles<br />
eram um expediente, uma forma alheia que no momento a<strong>de</strong>quado eram evocados. Pelo<br />
contrário, admitimo-los enquanto estruturas <strong>de</strong> pensamento, que obviamente, tiveram<br />
suas alterações no espaço e no tempo. Luís Filipe Thomaz bem sugere isto neste trecho:<br />
Esquece-se, sobretudo, que o confronto que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século VII se dá no Mediterrâneo não é<br />
meramente o choque entre duas religiões, mas a rivalida<strong>de</strong> entre dois blocos políticos, culturais e<br />
econômicos, organizados cada um em torno <strong>de</strong> seu credo. E é inegável que é esse credo o fecho<br />
<strong>de</strong> abóbada da sua solidarieda<strong>de</strong> intrínseca. Lutar pela religião não é, pois, lutar por algo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>al<br />
e exterior à socieda<strong>de</strong>, mas pelo elemento central da sua própria individualida<strong>de</strong> cultural – logo,<br />
pela sua subsistência como entida<strong>de</strong> coletiva. Esse espírito <strong>de</strong> cruzada tinha mais que em<br />
qualquer outra parte hipóteses <strong>de</strong> manter a vitalida<strong>de</strong> na Península – on<strong>de</strong> esta ainda incompleta<br />
a Reconquista, cuja imagem era na consciência nacional [sic] dos estados <strong>de</strong>la originados<br />
elemento relevante. 66<br />
64 FERNANDES, Fátima Regina. Cruzadas na Ida<strong>de</strong> Média. In: MAGNOLI, Demétrio (Org.) <strong>História</strong><br />
das guerras. São Paulo: Contexto, 2006. p. 100.<br />
65 THOMAZ, Luís Filipe. op. cit., p. 60.<br />
66 Ibid., p. 11.<br />
43
Restava apenas o rei autorizar o combate, revestindo a solicitação em termos<br />
legitimados; e para isso, este pe<strong>de</strong> que eclesiásticos e conselheiros <strong>de</strong>cidissem,<br />
buscando argumentos sobre a autorida<strong>de</strong> do ataque, chegando a seguinte posição:<br />
Ora, senhor, disseram eles, ‘não havemos por que acrescentar mais soma <strong>de</strong> palavras, abasta que<br />
nós que aqui somos presentes por autorida<strong>de</strong> da Santa Escritura, assim como homens que, sem<br />
nosso merecimento, temos grau na sacra teolesia [teologia], <strong>de</strong>terminamos que vossa mercê po<strong>de</strong><br />
mover guerra contra quaisquer infiéis, assim mouros como gentios, ou quaisquer outros que, por<br />
algum modo, negarem alguns dos artigos da Santa Fé Católica. 67<br />
Ao rei ainda impedia-se alguns obstáculos, como as <strong>de</strong>spesas para preparar o<br />
ataque, a distância da praça do reino, a vulnerabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar o reino para o<br />
combate, a retaliação que os muçulmanos teriam após o conflito, enfim, uma hesitação<br />
característica do monarca. Estes empecilhos apresentados por Dom João I foram<br />
diminuídos pelo entusiasmo <strong>de</strong> Dom Henrique no <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> combate aos muçulmanos<br />
em Ceuta, pois se existia uma oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> combate, esta não <strong>de</strong>veria ser <strong>de</strong>scartada.<br />
Os motivos, portanto, apresentavam-se no que dizia respeito ao serviço a Deus, que<br />
resultariam em benefícios aos membros do reino, pois estariam honrando o cristianismo<br />
frente a um inimigo que, segundo eles, queriam por natureza o mal.<br />
2.4 O APOIO DA NOBREZA AO ATAQUE DE CEUTA<br />
Passado o momento <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar o alvo do ataque, a aliança com os nobres<br />
<strong>de</strong>veria ser feita, pois como o próprio rei já havia aludido, o movimento necessitava <strong>de</strong><br />
verbas para ser realizado, além <strong>de</strong> um corpo militar que pu<strong>de</strong>sse efetivamente travar um<br />
combate eficaz, produzindo a situação <strong>de</strong>sejada <strong>de</strong> cerimônia <strong>de</strong> cavalaria. Sobre isso, o<br />
cronista Zurara nos informa que Nuno Álvares Pereira seria um personagem<br />
fundamental para a a<strong>de</strong>são dos nobres:<br />
O segundo empacho é o Con<strong>de</strong>stável [Nuno Álvares], o qual sabeis que, assim por mui boa vida,<br />
como pelos gran<strong>de</strong>s e bem-aventurados aquecimentos que houve, tem assim as gentes do reino<br />
chegadas a sua amiza<strong>de</strong>, que se ele, por ventura, contradisser este conselho, todos teriam que não<br />
era feito direitamente. A qual cousa lhe faria menos esforço para nos ajudarem a isso, quando<br />
forem requeridos. Porém, antes <strong>de</strong> nenhuma cousa, é bem que vejamos por qual maneira lhe<br />
faremos saber a <strong>de</strong>terminação que em isto havemos, porque, ao <strong>de</strong>pois, por seu <strong>de</strong>sprazimento,<br />
não recebamos algum pejo. 68<br />
67 GEZ-CTC, Cap. XI, p. 67.<br />
68 GEZ-CTC, Cap. XIX, p. 88.<br />
44
A maneira encontrada para convencer Nuno Álvares Pereira foi apresentar o<br />
objetivo <strong>de</strong> lutar em nome <strong>de</strong> Deus, <strong>de</strong>sejado pelo monarca, pois assim o Con<strong>de</strong>stável<br />
não teria argumentos para contradizer o objetivo. Outra estratégia encontrada pelos<br />
filhos <strong>de</strong> Dom João I, em especial Dom Henrique, foi não enviar mensageiros ou carta<br />
ao nobre, mas que o rei fosse pessoalmente conversar com o ele. Da conversa inicial,<br />
em que Nuno Álvares Pereira aceita a a<strong>de</strong>são, ao conselho que o rei resolve consultar a<br />
fim <strong>de</strong> formalizar os objetivos e direcionar os preparativos, temos na escrita <strong>de</strong> Gomes<br />
Eanes <strong>de</strong> Zurara uma <strong>de</strong>scrição do Con<strong>de</strong>stável que mostra a sua aprovação e elogio<br />
pelo movimento:<br />
Que argumento <strong>de</strong> palavra, senhor, respon<strong>de</strong>u o Con<strong>de</strong>stável, posso eu fazer nem outra nenhuma<br />
pessoa que aqui seja ante vossa presença que pareça razoado somente dizer-vos como profeta.<br />
[...] mas este feito somente pertence ao serviço <strong>de</strong> Deus e salvação das almas, vossa e daqueles<br />
que vos nisso servirem. [...] E eu, <strong>de</strong> minha parte, ponho lei a mim mesmo <strong>de</strong> Lhe dar muitas<br />
graças por isso, pela parte que a mim acontece. E assim como vos servi em todas as outras<br />
cousas, assim vos servirei em esta. E ainda quanto a cousa é melhor e mais proveitosa, tanto<br />
porei nisso maior vonta<strong>de</strong> e diligência. 69<br />
O nobre não apenas a<strong>de</strong>re ao objetivo <strong>de</strong> lutar em Ceuta, mas aponta o<br />
significado do serviço <strong>de</strong> Deus, isto é, lutar contra o muçulmano representava a<br />
salvação da alma; nesta <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> Nuno Álvares, indiretamente ele sugere a participação<br />
daqueles que pu<strong>de</strong>ssem lutar em África, já que trariam benefícios materiais e espirituais;<br />
neste sentido, a sua influência pô<strong>de</strong> talvez ser <strong>de</strong>cisiva para que muitos portugueses<br />
optassem pelo combate em solo africano, refletindo a escolha e preocupação dos filhos<br />
do monarca em conseguir o seu apoio. Lembremos da pressão <strong>de</strong> Nuno Álvares Pereira<br />
pela escolha do Mestre <strong>de</strong> Avis como novo monarca, que Armindo <strong>de</strong> Sousa nos<br />
sugeriu; seu papel enquanto centro <strong>de</strong> a<strong>de</strong>são era muito consi<strong>de</strong>rado.<br />
Com base no apoio <strong>de</strong> Nuno Álvares Pereira, o rei Dom João I apresenta os<br />
motivos para convocar os <strong>de</strong>mais nobres, como percebemos no seguinte trecho:<br />
Quem po<strong>de</strong>ria àquele tempo falar em outra cousa senão em armas e em percebimento <strong>de</strong> guerra.<br />
Cá logo el-Rei escreveu a todos os senhores e fidalgos e homens <strong>de</strong> conta suas cartas <strong>de</strong><br />
percebimento, nas quais lhe fazia saber como ele, por seu serviço e honra do reino, tinha<br />
or<strong>de</strong>nado <strong>de</strong> enviar seus filhos, o Infante Dom Pedro e o Infante Dom Henrique, por capitães <strong>de</strong><br />
sua frota, para o servirem no que ele mandasse, com os quais lhe prazia que fossem aqueles a que<br />
ele assim escrevia. Porém, que lhes mandava que se fizessem logo prestes para irem com eles em<br />
a dita frota, e lhe fazerem, primeiramente, saber as gentes com que o entendiam <strong>de</strong> servir, para<br />
lhe <strong>de</strong>sembargar seus dinheiros e or<strong>de</strong>nados para corregimento seu e das ditas suas gentes. 70<br />
69 GEZ-CTC, Cap. XXVII, p. 109.<br />
70 GEZ-CTC, Cap. XXX. p. 117.<br />
45
O rei procura focar nos filhos a organização dos preparativos e a arrecadação <strong>de</strong><br />
verbas para financiar os materiais necessários, sendo que os interessados procurariam os<br />
meios para auxiliar na organização da viagem. Além <strong>de</strong>stes preparativos internos, a casa<br />
régia procurou enviar embaixadas para os reinos, como os <strong>de</strong> Aragão e Granada. Castela<br />
soube das intenções <strong>de</strong> tomar Ceuta, e também busca informações sobre a manutenção<br />
da trégua já firmada.<br />
O embarque da frota em direção a Ceuta ocorreu no dia 24 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1415, e o<br />
cronista Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara <strong>de</strong>screve no qüinquagésimo capítulo uma lista extensa<br />
dos portugueses que se faziam lembrar naquele momento da escrita. Apesar <strong>de</strong> o<br />
cronista escrever que “não lhe guardamos nenhuma or<strong>de</strong>nança no escrever, porque<br />
achamos que por nenhum modo o po<strong>de</strong>ríamos fazer”, nota-se uma hierarquia <strong>de</strong><br />
prestígio na sua composição, pois os nomes <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque e algumas referências são<br />
citados num primeiro momento, como vemos em um pequeno trecho:<br />
Era, principalmente, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> el-Rei, o Infante Duarte, e o Infante Dom Pedro, e o Infante Dom<br />
Henrique, e o con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Barcelos, e o Mestre <strong>de</strong> Cristo Dom Lopo Dias <strong>de</strong> Sousa, e o Prior do<br />
Espital Alvoro Gonçalves Camelo, e o Con<strong>de</strong>stável, e o almirante Mice Lançarote, o marechal<br />
Gonçalo Vaz <strong>de</strong> Coutinho, e o capitão Afonso Furtado <strong>de</strong> Mendonça, João Gomes da Silva,<br />
alferes <strong>de</strong> el-Rei, o con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Viana Dom Pedro alferes do Infante, Dom Fernando <strong>de</strong> Bragança<br />
filho do Infante Dom João irmão que foi <strong>de</strong> el-Rei, Dom Afonso <strong>de</strong> Cascais, Dom João <strong>de</strong> Castro<br />
Dom Fernando seu irmão, Dom Álvaro Pires <strong>de</strong> Castro, Dom Pedro seu filho, Dom João <strong>de</strong><br />
Loronha Dom Henrique seu irmão Martim Afonso <strong>de</strong> Melo guarda-mor <strong>de</strong> el-Rei, João Freire <strong>de</strong><br />
Andra<strong>de</strong>, ... Todos estes senhores fidalgos eram capitães <strong>de</strong> gente, muita ou pouca, cada um<br />
segundo seu estado. [...] Ficaram, isso mesmo no reino, por todas as comarcas, fidalgos<br />
repartidos para guardar as frontairas e, sobre todos, o Mestre <strong>de</strong> Avis que ficava em pessoa <strong>de</strong> el-<br />
Rei. 71<br />
Com os portugueses nos barcos, frei João Xira, confessor <strong>de</strong> Dom João I, fala<br />
sobre os objetivos <strong>de</strong> tomar a praça <strong>de</strong> Ceuta, tentando motivar e dar sentido a ação que<br />
fariam. Para se fundamentar, ele toma os preceitos religiosos, sendo que o ataque militar<br />
era justificado em textos do apóstolo Paulo, como neste trecho:<br />
[...] que não somente aqueles que são contra a Fé são dignos <strong>de</strong> morte, mas ainda os que o<br />
consentem não lho contrariando com todas suas forças. Pela qual cousa parece aqueles que se<br />
tem por católico e verda<strong>de</strong>iro cristão, e com toda sua força não se dispõe a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a sua santa<br />
Fé, não é verda<strong>de</strong>iro cavaleiro, nem nembro <strong>de</strong> Jesus Cristo, nem tem parte alguma com Ele, e<br />
que é pior que cada um daqueles infiéis. [...] Cá Deus todo po<strong>de</strong>roso sabe que, se algum <strong>de</strong> vós<br />
outros morrer, que morre pela verda<strong>de</strong> da Fé e salvação da Sua Lei. Pelo qual Ele mesmo lhe<br />
dará o celestial galardão. [...] Ora honrados senhores, el-Rei nosso senhor vos faz a saber, como<br />
por todas as razões suso ditas sua intenção é com a Graça do Senhor Deus ir sobre a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Ceuta, e trabalhar quanto ele pu<strong>de</strong>r, por tomar à Fé <strong>de</strong> Nosso Senhor Jesus Cristo. 72<br />
71 GEZ-CTC, Cap. L, p. 178.<br />
72 GEZ-CTC, Cap. LII, p. 181-182.<br />
46
Esta evocação, que mais se assemelha a uma pregação sobre a guerra entre<br />
cristãos e muçulmanos, enquadrava-se no pensamento cruzadístico. Com relação a este<br />
tema em Portugal do século XV, João Marinho dos Santos enten<strong>de</strong> que seria uma<br />
estratégia <strong>de</strong> manutenção da própria autonomia do reino:<br />
Por outras palavras, também na perspectiva político-militar a Expansão se converterá em meio e<br />
suporte da in<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> Portugal. Explicitaremos mais adiante este aspecto do interesse<br />
nacional [sic], em começos do século XV, mas queremos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já adiantar que, na continuida<strong>de</strong><br />
da Reconquista Cristã, o muçulmano ou o mouro (atente-se na persistência da <strong>de</strong>signação) será<br />
sempre, no i<strong>de</strong>ário português <strong>de</strong> Quatrocentos e Quinhentos, o inimigo absoluto, mau em todas<br />
as circunstâncias e, por tal, sem direito à existência. 73<br />
Não se trata <strong>de</strong> pensar na Reconquista cristã em si, mas talvez na evocação e<br />
apropriação <strong>de</strong>ste pensamento para unir forças capazes <strong>de</strong> realizar os objetivos<br />
simbólicos da cavalaria. Sobre isso, novamente João Marinho dos Santos nos ajuda a<br />
pensar sobre isso:<br />
[...] a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o itinerário da Expansão Portuguesa ter <strong>de</strong> coincidir o mais possível com a<br />
presença muçulmana documenta a vantagem do funcionamento do mito cruzadístico compensar,<br />
i<strong>de</strong>ologicamente, a escassez <strong>de</strong> combatentes lusos e sua débil apetência pela guerra, já que esta<br />
situação ten<strong>de</strong>rá a ser estrutural. De facto, a Expansão Portuguesa irá buscar ao i<strong>de</strong>ário da<br />
Reconquista Cristã (<strong>de</strong>signadamente ao cruzadismo) muito da sua carga tradicionalista, se se<br />
enten<strong>de</strong>r que o tradicionalismo é uma reactivação consciente do passado, <strong>de</strong> um tempo glorioso<br />
em que muitos dos valores sociais estão intensamente embebidos <strong>de</strong> sagrado. 74<br />
A frota portuguesa passara pela praça litorânea <strong>de</strong> Tarifa, 75 on<strong>de</strong> o rei <strong>de</strong> Castela<br />
tinha por alcai<strong>de</strong> o nobre Martim Fernan<strong>de</strong>s Portocarreiro, filho da con<strong>de</strong>ssa Dona<br />
Guiomar, que era tio do Con<strong>de</strong> Dom Pedro <strong>de</strong> Meneses. O alcai<strong>de</strong>, vendo aquela<br />
movimentação, resolve enviar mantimentos e seu filho, Pero Fernan<strong>de</strong>s, ao serviço do<br />
rei português, como cita Zurara neste trecho:<br />
Como ali chegou Pero Fernan<strong>de</strong>s com aquele presente [mantimentos], logo houve um batel em<br />
que foi falar a el-Rei a bordo da galé. E <strong>de</strong>pois que ele beijou a mão, disse: ‘Senhor, meu padre,<br />
Martim Fernan<strong>de</strong>s, vos envia pedir por mercê que, se enten<strong>de</strong>r<strong>de</strong>s que vos ele em alguma cousa<br />
po<strong>de</strong> servir, que façais <strong>de</strong>le conta como <strong>de</strong> cada um dos outros <strong>de</strong> vossa casa. E vos envia dizer<br />
que, porque ele tem, em si encargo daquela vila por el-Rei <strong>de</strong> Castela seu senhor, que vos não<br />
po<strong>de</strong> vir, por si, fazer aquela reverência que é teúdo segundo vosso gran<strong>de</strong> estado. Nem isso<br />
mesmo se po<strong>de</strong> fazer prestes para se ir convosco pelo encargo que tem, mas quer-vos fazer<br />
serviço <strong>de</strong> mim que sou seu filho em ida<strong>de</strong> e disposição para vos po<strong>de</strong>r servir em qualquer cousa<br />
que me vossa mercê mandar. E, porque enten<strong>de</strong> que há já dias que sois no mar e que havereis<br />
73<br />
SANTOS, João Marinho dos. A expansão pela espada e pela cruz. In: NOVAES, Adauto (Org.)<br />
op. cit., p. 148.<br />
74<br />
Ibid., p. 149.<br />
75<br />
Para uma visualização da região, conferir nos ANEXOS o MAPA 2.<br />
47
mister algum refresco para vossos cavaleiros e fidalgos, vos envia ali aquele gado, o qual vos<br />
pe<strong>de</strong> por mercê que recebais <strong>de</strong>le em serviço como <strong>de</strong> cousa vossa. 76<br />
O rei agra<strong>de</strong>ce a iniciativa <strong>de</strong> Martim Fernan<strong>de</strong>s Portocarreiro e seu filho, mas<br />
aconselha este a fica na região. De qualquer forma, esta recepção mostra-se importante<br />
para o <strong>de</strong>correr da situação que se travara, como veremos mais a frente.<br />
2.5 O CONTROLE PORTUGUÊS E A SIMBOLOGIA DA CAVALARIA<br />
A viagem segue, e os portugueses acabam tendo algumas hesitações ou dúvidas<br />
sobre como atacar a cida<strong>de</strong>, que topográfica e geograficamente traria dificulda<strong>de</strong>s em<br />
um cerco, pela entrada facilitada <strong>de</strong> ajuda vinda do continente. 77 A solução foi mais<br />
emotiva do que estratégica, sendo que no momento que os barcos se aproximam do<br />
litoral, <strong>de</strong>sfizeram-se as táticas ou movimentos organizados. Lembremos apenas como<br />
este impulso seria enaltecido como um traço qualificativo dos portugueses por parte do<br />
cronista, mas po<strong>de</strong>mos pensar também do espírito <strong>de</strong> salvação da alma por lutarem em<br />
nome da fé cristã, <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>ndo-se <strong>de</strong> qualquer medo da morte, como nos aponta João<br />
Marinho dos Santos:<br />
Rapidamente, vamos referir alguns ritos sagrados introduzidos logo na operação da tomada <strong>de</strong><br />
Ceuta, lembrando, a propósito, que, para Deus se dispor a auxiliar os cristãos no extermínio dos<br />
muçulmanos, exigia que eles se arrepen<strong>de</strong>ssem dos seus pecados, fizessem penitência e<br />
confiassem no seu po<strong>de</strong>r. Deste modo, todo o sentido do ritual religioso antes do combate<br />
apontará para que o guerreiro se mostre arrependido através do acto <strong>de</strong> confissão, se apresente<br />
purificado pela absolvição e acredite que Deus-Todo-Po<strong>de</strong>roso está efectivamente a seu lado. 78<br />
O relato do cronista sobre o ataque procura <strong>de</strong>monstrar a ação dos portugueses<br />
em dominar a região, nomeando vários personagens <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque, tanto em situações <strong>de</strong><br />
entradas bem-sucedidas com hasteamento <strong>de</strong> ban<strong>de</strong>iras, como em casos <strong>de</strong> morte. Nesta<br />
última, o relato <strong>de</strong> Zurara ganha uma conotação <strong>de</strong> homenagem, porque assim o cristão<br />
morto seria lembrado, associando os preceitos <strong>de</strong> lutar contra o infiel com a salvação da<br />
alma. Po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar o ataque extremamente rápido, pois em um espaço <strong>de</strong> um dia,<br />
mais especificamente no dia 21 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1415, os portugueses conseguiram<br />
controlar a praça, expulsando ainda que momentaneamente boa parte da população<br />
local.<br />
76 GEZ-CTC, Cap. LVI, p. 191.<br />
77 Para uma visualização da região, conferir nos ANEXOS o MAPA 2.<br />
78 SANTOS, João Marinho dos. op. cit., p. 159.<br />
48
Com este controle, Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara aponta que, apesar <strong>de</strong> provavelmente<br />
mais do que este teve conhecimento, o rei mandara notificações para anunciar a vitória,<br />
como percebemos no seguinte trecho:<br />
Somente a dous lugares achamos que el-Rei enviou notificar o bom aquecimento que lhe Deus<br />
<strong>de</strong>ra em sua vitória. On<strong>de</strong> haveis <strong>de</strong> saber que, pela boa vonta<strong>de</strong>, que Martim Fernan<strong>de</strong>s<br />
Portocarreiro mostrou a seu serviço, quando enviou seu filho a ele à frota, como já ouvistes.<br />
Teve el-Rei por bem <strong>de</strong> lho fazer saber primeiro que a outro nenhum. E ainda disseram alguns<br />
que lhe enviou assim aquelas novas, além do que dito é, porque as po<strong>de</strong>sse o dito Martim<br />
Fernan<strong>de</strong>s notificar, por outras partes daquele reino <strong>de</strong> Castela. 79<br />
Assim, a prestação inicial do alcai<strong>de</strong> <strong>de</strong> Tarifa apresentava-se interessante na<br />
aliança com a monarquia portuguesa, ainda que indiretamente, por vinculações dos<br />
respectivos reinos. Talvez o cronista também procure ilustrar um exemplo <strong>de</strong> como um<br />
nobre procurou a<strong>de</strong>rir à causa régia, ainda mais por não ser português, e como esta<br />
ajuda seria prestativa e atenta para estes movimentos.<br />
Dois dias após o combate, o rei chama o seu confessor e capelão-mor, frei João<br />
Xira e Afonso Eanes, respectivamente, solicitando que transformasse a mesquita maior<br />
<strong>de</strong> Ceuta em uma igreja, para que no domingo seguinte, após uma missa solene, pu<strong>de</strong>sse<br />
armar seus filhos cavaleiros. Os eclesiásticos chamam alguns portugueses para limpar a<br />
edificação, benzendo as pare<strong>de</strong>s em sinal <strong>de</strong> purificação do local. Essa transformação<br />
ganha um significado enquanto controle da cida<strong>de</strong>, pois procurava <strong>de</strong>sfazer dos<br />
elementos que compunha a população muçulmana.<br />
No sermão realizado na missa, o frei procura mostrar as qualida<strong>de</strong>s simbólicas<br />
que aqueles portugueses obtiveram em lutar em nome <strong>de</strong> Deus, reforçando as idéias que<br />
motivaram o combate, e como a escolha fora a<strong>de</strong>quada para o merecimento <strong>de</strong> honra e<br />
glória:<br />
O Mestre pregou ali uma pregação com muitas autorida<strong>de</strong>s da Santa Escritura, aprovando o<br />
gran<strong>de</strong> serviço que Nosso Senhor Deus recebera em aquele feito, dizendo que todos po<strong>de</strong>riam<br />
diretamente dizer o seu tema. que em Ceuta era toda glória e honra. ‘Glória’, disse ele, ‘se toma<br />
por muitas guisas porque cada um cobrando aquela cousa, em cuja bem-aventurança tem posto<br />
seu fim, propriamente lhe parece que tem a perfeição da glória. Empero falando direitamente, em<br />
duas cousas somente está a perfeição da glória. na bem-aventurança que pertence à alma, a qual<br />
sobre todas as cousas é a perfeição. E, segundo a glória é a honra <strong>de</strong>ste mundo, quando a os<br />
homens percalçam cobrando, por usança <strong>de</strong> alguma virtu<strong>de</strong>, a vitória <strong>de</strong> alguma cousa tratada ou<br />
cometida a fim <strong>de</strong> algum bem. 80<br />
79 GEZ-CTC, Cap. XC, p. 261.<br />
80 GEZ-CTC, Cap. XCVI, p. 274.<br />
49
Este trecho ilustra a união dos elementos religiosos <strong>de</strong> lutar contra o muçulmano,<br />
afirmando como esta luta era louvada também em termos militares, aliando e não<br />
po<strong>de</strong>ndo ser pensado em separado; honra, glória e cavalaria faziam parte da mesma<br />
lógica, on<strong>de</strong> o combate contra o muçulmano agrupava os respectivos interesses. Isso<br />
po<strong>de</strong> ser bem visualizado quando Marie Clau<strong>de</strong> Gerbet <strong>de</strong>fine os elementos simbólicos<br />
da cavalaria, on<strong>de</strong> a nobreza ocupava o papel <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque:<br />
[...] [<strong>de</strong>senvolveu-se] en el corazón <strong>de</strong> la caballería, la honra, noción esencial para compren<strong>de</strong>r la<br />
mentalidad nobiliaria. El término honra poseía um doble significado: en primer lugar, como<br />
señala A. Sanchez Albornoz, la ‘honra-homenaje personal’, el homenaje <strong>de</strong>bido a los reyes, a los<br />
po<strong>de</strong>rosos, y <strong>de</strong>spués la ‘honra-categoría social’, es <strong>de</strong>cir, el rango social herdado o conferido<br />
por el rey, o incluso adquirido por alguna acción brillante que confería la gloria. En los últimos<br />
años <strong>de</strong> la Edad Media, el i<strong>de</strong>al caballeresco había cristalizado en torno a la honra, que llegó a<br />
ser verda<strong>de</strong>ro cimiento <strong>de</strong> la mentalidad nobiliaria, pero que también ejercía influencia sobre el<br />
resto <strong>de</strong> la sociedad. La preocupación por mantener la honra y ganar la gloria, essencialmente<br />
militar, sobrevivieron mucho a la caballaria. El caballero ejercía, pues, un oficio prestigioso,<br />
cuyo i<strong>de</strong>al, forjado a lo largo <strong>de</strong> los años <strong>de</strong> lucha contra el infiel, cuando la guerra se<br />
i<strong>de</strong>ntificaba con la cruzada, estaba siempre vivo en el siglo XV. Es indudable que la caballería<br />
clásica había alcanzado elevada consi<strong>de</strong>ración en la sociedad. 81<br />
Após a missa, os filhos do monarca voltam para suas guarnições, vestem o traje<br />
a<strong>de</strong>quado <strong>de</strong> cavaleiro para receberem a investidura, passando esta qualida<strong>de</strong> aos seus<br />
respectivos seguidores e protetores, como bem <strong>de</strong>screve Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara em<br />
outro trecho que sinaliza para a importância dos nomes em forma <strong>de</strong> lista e sua<br />
disposição na hierarquia <strong>de</strong> prestígio:<br />
E, tanto que chegaram ante ele [D. João I], o Infante Duarte se pôs primeiramente em joelhos e<br />
tirou a espada da bainha e beijou-a e meteu-a na mão a seu padre e fez-o com ela cavaleiro. E por<br />
semelhante guisa fizeram seus irmão. E isto assim acabado, beijaram-lhe a mão e afastaram-se<br />
para uma parte, cada um para fazer os <strong>de</strong> sua quadrilha cavaleiro. Muito me pesa, porque não<br />
pu<strong>de</strong> saber os nomes daqueles que ali receberam or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> cavalaria. Empero <strong>de</strong> alguns que<br />
aprendi. o Infante Duarte fez cavaleiro o con<strong>de</strong> Dom Pedro e Dom Fernando <strong>de</strong> Meneses e Dom<br />
João <strong>de</strong> Noronha e Dom Henrique seu irmão e Pero vaz <strong>de</strong> Almada e Nuno Martins da Silveira e<br />
Diogo Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Almeida e Nuno vaz <strong>de</strong> Castelo-Branco e assim outros alguns. E o Infante<br />
Dom Pedro fez hi cavaleiros Aires Gomes da Silva filho <strong>de</strong> João Gomes e Álvaro Vaz <strong>de</strong><br />
Almada e Aires Gonçalves <strong>de</strong> Abreu e Martim Correia e João <strong>de</strong> Ataí<strong>de</strong> e Martim Lopes <strong>de</strong><br />
Sequeira. E o Infante Dom Henrique fez cavaleiros, Dom Fernando senhor <strong>de</strong> Bragança e Gil<br />
Vaz da Cunha e Álvaro da Cunha e Álvaro Pereira Álvaro Fernan<strong>de</strong>s Mascarenhas e Vasco<br />
Martins <strong>de</strong> Albergaria e Diogo Gomes da Silva e assim outros. E <strong>de</strong> el-Rei não falamos nada,<br />
porque fez a tantos até que, com enfadamento os leidou <strong>de</strong> fazer. 82<br />
Após essa cerimônia altamente <strong>de</strong>stacada pelo cronista, pois legitimava as ações<br />
militares em solo africano, Zurara <strong>de</strong>screve como ela teria em si uma significação<br />
81 GERBET, Marie Clau<strong>de</strong>. op. cit., p. 56.<br />
82 GEZ-CTC, Cap. XCVI, p. 276-277.<br />
50
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, isto é, por mais que o objetivo fosse atingido, havia um obstáculo para que<br />
a legitimação alcançada fosse mantida. Este empecilho seria a guarda da praça, on<strong>de</strong> o<br />
rei Dom João I aponta quatro motivos para não <strong>de</strong>ixar a cida<strong>de</strong> à sorte <strong>de</strong> Deus:<br />
Cá se agora assim leixássemos esta cida<strong>de</strong>, não sei que serviço receberia <strong>de</strong> nosso trabalho. Cá os<br />
infiéis tornariam logo a ela. E, por doesto da Sua santa Fé, naquelas casas, on<strong>de</strong> o Seu sacrifício<br />
foi feito, fariam outras cousas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> vitupério e <strong>de</strong>sonra nossa. E a segunda razão é, porque<br />
ficando assim esta cida<strong>de</strong> só nosso po<strong>de</strong>r [sob nosso domínio], po<strong>de</strong>rá ser azo [po<strong>de</strong>rá resultar<br />
oportunida<strong>de</strong>] <strong>de</strong> se moverem alguns príncipes cristãos para virem aqui e com seu po<strong>de</strong>rio e frota<br />
sojugarem alguns outros lugares <strong>de</strong>sta conquista. [...] A terceira razão é, porque os bons homens<br />
<strong>de</strong> meus reinos não hajam razão <strong>de</strong> esquecer o virtuoso exercício das armas, ou, por ventura,<br />
querendo obrar em isso, não irão buscar os reinos alheios, on<strong>de</strong> provém sua força, tendo, ante si,<br />
cousa tão azada em que o possam fazer. [...] A quarta razão é, porque a memória <strong>de</strong> tamanho<br />
feito possa durar ante os olhos dos homens, enquanto a Deus prouver <strong>de</strong> conservar a sua<br />
obediência <strong>de</strong> sob o po<strong>de</strong>rio dos rex <strong>de</strong> Portugal e por que alguns gentis homens, que por honra e<br />
amor <strong>de</strong> Nosso Senhor Deus quererão trabalhar contra os inimigos da Sua santa Fé, tenham casa<br />
e lugar, on<strong>de</strong> possam fazer. 83<br />
Dentre os quatro motivos apresentados, <strong>de</strong>ixar a praça controlada por<br />
portugueses para o exercício <strong>de</strong> armas e memorar os feitos com esta permanência teria,<br />
na interpretação do monarca, o significado importante para completar o primeiro<br />
motivo, que era evitar que os muçulmanos voltassem e profanassem a terra, <strong>de</strong>sfazendo,<br />
pois, o serviço <strong>de</strong> Deus. Em conselho, foi dito ao rei que sua intenção <strong>de</strong> manter a<br />
cida<strong>de</strong> sob controle português era louvável, mas haveria algumas objeções, pois Ceuta<br />
ficaria distante do reino, e em caso <strong>de</strong> represarias dos muçulmanos, um auxílio vindo <strong>de</strong><br />
Portugal po<strong>de</strong>ria ser ineficaz. Para isto, po<strong>de</strong>r-se-ia <strong>de</strong>ixar um número consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong><br />
cavaleiros e auxiliares em África, mas a divisão entre África e o reino po<strong>de</strong>ria ser<br />
perigosa para ambos os espaços, já que dividindo-se as forças, estariam os portugueses<br />
vulneráveis em duas frentes. 84<br />
O monarca, guiado pelo sentimento <strong>de</strong> que estava fazendo a opção certa em<br />
servir a Deus, pensando justamente como este estava Lhe auxiliando na condução do<br />
reino, <strong>de</strong>ixa as questões sobre a permanência, afastando seu comportamento hesitante, e<br />
resolve <strong>de</strong>ixar um corpo político português na região:<br />
Eu sou bem nembrado, respon<strong>de</strong>u el-Rei, quantos contrairos houve no começo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> feito e<br />
quantas vezes fui conselhado por alguns <strong>de</strong> vós outros, que leixasse <strong>de</strong> prosseguir minha<br />
<strong>de</strong>manda, mostrando-me outras muitas razões por que o <strong>de</strong>via <strong>de</strong> fazer. E eu sempre tive, ante<br />
meus olhos, o fundamento que tomei para prosseguir esta obra. E como me nembrava que era<br />
serviço <strong>de</strong> Deus, logo me parecia que não tinha razão para a leixar <strong>de</strong> acabar, antes me <strong>de</strong>via a<br />
83 GEZ-CTC, Cap. XCVII, p. 278-279.<br />
84 Para uma visualização da região, em especial a distância entre Ceuta e o reino <strong>de</strong> Portugal, conferir<br />
nos ANEXOS o MAPA 1.<br />
51
dispor a todo trabalho e perigo pelo pôr em fim. E consi<strong>de</strong>ro agora como sobre tantos contrairos<br />
oferecidos, Nosso Senhor Deus quis dar a vitória contra todo natural juízo dos homens. Assim<br />
espero em Ele que lhe prazerá trazer minha intenção a fim <strong>de</strong> seu santo serviço. E certamente<br />
que, quando eu em isso mais consi<strong>de</strong>ro, tanto me parece que presumo que ainda esta cida<strong>de</strong> há<strong>de</strong><br />
ser azo <strong>de</strong> outro muito maior bem para mim, ou para alguns da minha geração. 85<br />
Com essa <strong>de</strong>cisão, ele mostra como apren<strong>de</strong>u a tomar <strong>de</strong>cisões importantes para<br />
o reino, diferentemente do seu início, quando hesitou em assassinar o Con<strong>de</strong> An<strong>de</strong>iro.<br />
Em situação <strong>de</strong> conselho, ele procura apenas certificar que suas intenções fizessem parte<br />
<strong>de</strong> um <strong>de</strong>bate, ouvindo as partes, mas que sua opinião enquanto rei teria a ressonância<br />
apropriada.<br />
2.6 UMA ESTRATÉGIA DE ASCENSÃO POLÍTICA NA FRONTEIRA<br />
Se nos basearmos na Crónica da tomada <strong>de</strong> Ceuta, a escolha do rei recaiu<br />
primeiramente no seu guarda-mor Martim Afonso <strong>de</strong> Melo:<br />
Acabadas assim estas razões, logo ali, naquele mesmo conselho, el-Rei disse a Martim Afonso<br />
<strong>de</strong> Melo, por fazer logo começo <strong>de</strong> sua intenção, que se fizesse prestes para ficar por fronteiro<br />
em aquela cida<strong>de</strong>. Martim Afonso, disse ele, assim pelos muitos serviços que vós e vosso padre e<br />
todos os outros <strong>de</strong> vossa geração têm feito a mim e aos rex don<strong>de</strong> eu venho, como por sentir que<br />
o sabereis mui bem fazer. A mim praz <strong>de</strong> vos entregar esta cida<strong>de</strong>, na qual sinto que fareis<br />
serviço a Deus e a mim, e acrescentareis em vossa honra e <strong>de</strong> vossa linhagem. E eu vos leixarei<br />
dos fidalgos <strong>de</strong> minha casa e <strong>de</strong> meus filhos e assim dos outros meus naturais, por que vós sejais<br />
bem ajudado a vosso trabalho. E, isso mesmo vos leixarei artilharias e corregimentos para vossa<br />
<strong>de</strong>fensão. 86<br />
O guarda-mor do rei agra<strong>de</strong>ce a escolha, sendo que <strong>de</strong>veria conversar com dois<br />
conselheiros; estes, que Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara fez questão mencionar, sugerem<br />
recusar a nomeação. Os conselheiros eram um escu<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> Évora <strong>de</strong> nome João Gomes<br />
Arnalho, e outro João Jusarte. O rei mostrou <strong>de</strong>sgosto com tal recusa, pois o guarda-mor<br />
era <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> habilida<strong>de</strong> com o lidar das armas, e seria importante para os objetivos<br />
traçados. Na visão do monarca, a culpa da negação <strong>de</strong> Martim Afonso <strong>de</strong> Melo era dos<br />
conselheiros, que <strong>de</strong>veriam ficar em Ceuta como punição <strong>de</strong> aconselhar sobre o local<br />
não ser a<strong>de</strong>quado.<br />
No entanto, se analisarmos a Crónica do Con<strong>de</strong> Dom Pedro <strong>de</strong> Meneses, escrita<br />
posteriormente, Zurara informa que o rei pediu sugestões <strong>de</strong> nomes, sendo Nuno<br />
Álvares Pereira a primeira escolha:<br />
85 GEZ-CTC, Cap. XCIX, p. 281.<br />
86 Ibid., p. 282.<br />
52
Senhor, - disserã casy todos – pareçe-nos que, pera tam gram<strong>de</strong> cousa e em que tamto há-te<br />
<strong>de</strong>pem<strong>de</strong>r a homra <strong>de</strong> vossa coroa, nos nõ semtimos quem ho melhor possa fazer que he o<br />
Com<strong>de</strong>stabre. Essa seria - disse aquelle com<strong>de</strong> - das mayores merçees que me Deus e ell rey,<br />
meu senhor, podiã fazer, semdo eu em tall hyda<strong>de</strong> pera o soportar, mas a natureza, como vos<br />
ver<strong>de</strong>s, me tem jaa trazido a tamta fraqueza, que por nenhũ modo po<strong>de</strong>ria soportar semelhante<br />
trabalhom, caa esta çida<strong>de</strong> he muy gram<strong>de</strong> e quem quer que ha há-<strong>de</strong> ter nõ lhe compre dormir<br />
seu sono cheo, něse fiar sempre <strong>de</strong> todos, espiçiallmemte agora no começo, que lhe os mouros<br />
nunca am-<strong>de</strong> sayr da porta, pero eu farey o que ell rey, meu senhor, mamdar. 87<br />
O rei tinha conhecimento que o Con<strong>de</strong>stável <strong>de</strong>sejava passar seus últimos dias<br />
no mosteiro <strong>de</strong> Santa Maria do Carmo, em Lisboa, claustro que o próprio Nuno Álvares<br />
fundou. Dom João I aceita o pedido <strong>de</strong> dispensa, muito diferente da atitu<strong>de</strong> para com<br />
Martim Afonso <strong>de</strong> Melo, que nesta crônica sobre o primeiro governador <strong>de</strong> Ceuta,<br />
Zurara cita novamente a recusa do guarda-mor.<br />
Desta in<strong>de</strong>finição do nome a governar Ceuta, surge o nome do Con<strong>de</strong> Dom<br />
Pedro <strong>de</strong> Meneses, dispondo-se sobre as qualida<strong>de</strong>s solicitadas. Os membros da casa<br />
régia vendo a disposição <strong>de</strong>le resolvem por levar o nome à apreciação do rei. Este<br />
aprova o nome, e no dia 2 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1415, quando retornam para o reino, o rei<br />
assim o aconselha:<br />
Pois que a Deus aprouve que vos encaminhar para requerer semelhante cousa com mui boa<br />
vonta<strong>de</strong>, que ten<strong>de</strong>s para me fazer<strong>de</strong>s serviço, pelo qual eu sou teúdo <strong>de</strong> vos acrescentar e fazer<br />
honra e mercê, eu vos encomendo que tenhais sempre ante os olhos, o encargo que filhastes e<br />
que não menos coração tenhais para o guardar e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r do que tivestes para o requerer e ainda<br />
muito maior consi<strong>de</strong>rando bem, que na guarda <strong>de</strong>sta cida<strong>de</strong> se contém vossa honra e vida. E vos<br />
encomendo que agasalheis mui bem estes fidalgos que aqui leixo para vos ajudarem a guardar e<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r esta cida<strong>de</strong>. E, isso mesmo vos encomendo toda a outra gente que aqui fica, que os<br />
trateis docemente e com todo favor que razoadamente pu<strong>de</strong>r<strong>de</strong>s. E a uns e aos outros<br />
encomendo, que vos obe<strong>de</strong>çam como a capitão e verda<strong>de</strong>iro fronteiro. E ditas estas palavras, lhe<br />
beijaram todos a mão, e se espediram <strong>de</strong>le. Aos fidalgos, disse el-Rei, que lhes encomendava que<br />
não fizesse míngua sua presença ante seus olhos, mas que sempre trabalhassem por sua honra,<br />
segundo a linhagem <strong>de</strong> que vinham requeria e a confiança que em eles havia. 88<br />
Estas orientações seriam necessárias para o controle do Con<strong>de</strong> Dom Pedro <strong>de</strong><br />
Meneses, que assumia o governo <strong>de</strong> Ceuta, sendo fronteiro e responsável pela conduta<br />
dos portugueses em assegurar o controle em nome do reino <strong>de</strong> Portugal. A escolha do<br />
rei em seu nome po<strong>de</strong> ter sido facilitada por algumas circunstâncias, como ele ser<br />
sobrinho <strong>de</strong> Martim Fernan<strong>de</strong>s Portocarreiro, alcai<strong>de</strong> <strong>de</strong> Tarifa. Lembremos <strong>de</strong> como<br />
Dom João I fez questão <strong>de</strong> informar este alcai<strong>de</strong> da vitória em África. Esta aproximação<br />
familiar e geográfica po<strong>de</strong>ria ser importante no caso <strong>de</strong> solicitar ajuda em combates com<br />
87 GEZ-CCDPM, Cap. V, p. 196-197.<br />
88 GEZ-CTC, Cap. CI, p. 285-286.<br />
53
os muçulmanos da região, que muito provavelmente voltariam para retomar Ceuta. 89<br />
Martim Fernan<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>ria ser, na visão do monarca português, um ponto <strong>de</strong> apoio<br />
importante na manutenção <strong>de</strong> Ceuta, e associando o governador a este alcai<strong>de</strong><br />
castelhano, uma ligação estaria firmada, pelo prévio comprometimento <strong>de</strong> ambos com a<br />
causa régia.<br />
Outro ponto que po<strong>de</strong>mos observar na crônica escrita por Zurara foi que o<br />
Con<strong>de</strong> Dom Pedro <strong>de</strong> Meneses recebeu a cavalaria do infante Dom Duarte após a<br />
cerimônia <strong>de</strong> investidura <strong>de</strong>ste, sendo, portanto, um objetivo importante ao con<strong>de</strong> ir a<br />
Ceuta para alcançar a honra e proveito; os espíritos <strong>de</strong> guerra e fazer honra através das<br />
armas seriam outra estratégia política. Em outras palavras, o fato <strong>de</strong> requerer o controle<br />
militar em Ceuta po<strong>de</strong>ria indicar as intenções <strong>de</strong> prolongar perspectivas políticas, o que<br />
po<strong>de</strong> ser pensado através <strong>de</strong>ste trecho:<br />
O com<strong>de</strong> dom Pedro <strong>de</strong> Meneses, como amdava <strong>de</strong>sejoso <strong>de</strong> se allevamtar naquello que lhe seu<br />
nobre e gram<strong>de</strong> samgre rrequeria, como vio que ho Com<strong>de</strong>stabre nõ avia <strong>de</strong> ficar, fallou llogo<br />
com ho mestre <strong>de</strong> Cristos, que hera seu tio, e com ho priol do Espritall, pedindo-lhe por merçee<br />
que lhe azassě como ouvesse aquela homrra, os quais, como vyram que Martym Affomso se<br />
espedia e que lhe hera neçessaryo buscar outro, llevamtarão-se ambos em pee, tomamdo-o amtre<br />
sy, e disseram: Senhor, pois nõ tě<strong>de</strong>s <strong>de</strong>terminado quem vos nesto aja <strong>de</strong> servir, nos vos<br />
ofreçemos aquy o com<strong>de</strong> dom Pedro, o qual vos pe<strong>de</strong> por merçee que vos syrvais <strong>de</strong>lle naqueste<br />
offiçio e vos promete aquella ffee que homě <strong>de</strong> tall linhagem como elle he <strong>de</strong>ve a rrey com que<br />
vive e que o criou, e elle, senhor, he homě em quě cabe semelhamte emcarrego, pedimdo por<br />
merçe aos ymfamtes que os quisessě ajudar naquelle feito, levamtamdo-se logo o ymfamte<br />
Duarte e pedimdo por merçee a seu padre que lho ortorgasse. Ell rey, esguardamdo como tall<br />
rrequerimemto em tall tempo nõ proçedia senão <strong>de</strong> gram<strong>de</strong>za <strong>de</strong> coração e <strong>de</strong>sy porque ho vyra<br />
assy homrrosamemte vir em sua companha, teve-lho a gram<strong>de</strong> bem. Çertamente - disse elle - eu<br />
por tall conheço dom Pedro como vos <strong>de</strong>zeis e lhe tenho em muy assynado serviço seu bõo<br />
rrequerimemto, pello quall ho creçemtarey com muita homra e merçe, e me praz <strong>de</strong> lho<br />
outorgar. 90<br />
Talvez ele nem <strong>de</strong>sejasse ficar em Ceuta, mas <strong>de</strong>ntro da situação on<strong>de</strong> Nuno<br />
Álvares e Martim Afonso <strong>de</strong> Melo apresentavam recusas, sendo que para o primeiro o<br />
rei aceitou, e para o segundo Dom João I ficou contrariado, apresentar-se como<br />
candidato atrairia boas impressões ao monarca, facilitando suas pretensões. Lembremos<br />
ainda que o reino continuaria, a princípio, em paz com Castela, e Granada não seria uma<br />
boa opção <strong>de</strong> luta no contexto ibérico.<br />
89 Para uma visualização da região, em especial a aproximação geográfica entre as praças <strong>de</strong> Ceuta e<br />
Tarifa, conferir nos ANEXOS o MAPA 2.<br />
90 GEZ-CCDPM, Cap. V, p. 198-199.<br />
54
A questão da fronteira, que tanto po<strong>de</strong>ria ser um obstáculo para a manutenção <strong>de</strong><br />
Ceuta pelos portugueses, como um espaço <strong>de</strong> ascensão e prestígio, po<strong>de</strong> ser pensada<br />
<strong>de</strong>ntro da polarização centro-periferia que Jacques Le Goff <strong>de</strong>senvolve:<br />
Em suma, a melhor <strong>de</strong>finição ‘da’ fronteira medieval parece-me ser aquela <strong>de</strong> Pierre Toubert: ‘A<br />
fronteira jamais é linear, a não ser por abstração: ela é uma zona. Ela é estática apenas na<br />
aparência. Ela é sempre a resultante <strong>de</strong> um movimento e apenas materializa no espaço um<br />
precário estado <strong>de</strong> equilíbrio [...]. O movimento que cria ou sustenta uma fronteira é constituído<br />
pela intervenção <strong>de</strong> numerosos componentes <strong>de</strong> diferentes or<strong>de</strong>ns (<strong>de</strong>mográficos, econômicos,<br />
lingüísticos, religiosos, geopolíticos, etc.) [...]. A fronteira nunca é um obstáculo ou uma simples<br />
barreira, mas uma membrana viva ou [...] um ‘órgão periférico’ [...]. A fronteira parece, muitas<br />
vezes, produzir, talvez, ‘gêneros <strong>de</strong> vida específicos’, como o do ‘soldado-camponês’. Ela cria,<br />
em todo caso, um estilo <strong>de</strong> vida cujos caracteres fundamentais são a violência e o <strong>de</strong>srespeito às<br />
normas e aos mecanismos <strong>de</strong> enquadramento social que prevalecem nas zonas centrais, O mundo<br />
da fronteira é assim, por excelência, o do out law. 91<br />
Neste sentido, o uso das armas estaria novamente em questão, sendo o noroeste<br />
africano um espaço alternativo para estas práticas, como o próprio rei pensava.<br />
Conseguir uma boa posição política nesta região po<strong>de</strong>ria significar uma nova<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ascensão nas relações com a monarquia. Entretanto, não estamos<br />
querendo afirmar que o Con<strong>de</strong> Dom Pedro <strong>de</strong> Meneses não possuía prestígio e atributos<br />
nobiliárquicos, valendo-se apenas da situação <strong>de</strong> ausência <strong>de</strong> nomes para sua ascensão,<br />
pois o próprio cronista Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara <strong>de</strong>screve na crônica feita sobre o con<strong>de</strong><br />
a sua <strong>de</strong>scendência:<br />
Foi este com<strong>de</strong> dom Pedro filho do com<strong>de</strong> dõ Joham Affomso Thello <strong>de</strong> Meneses, com<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Viana, e da com<strong>de</strong>ssa dona Mayor <strong>de</strong> Porto Carreiro e neto do com<strong>de</strong> d'Ourem, a que tambem<br />
chamarão [chamaram] dom Johão Affomso Thello <strong>de</strong> Meneses, e <strong>de</strong> dona Guyomar <strong>de</strong> Villa<br />
Lobos, o quall com<strong>de</strong> d'Ourem foy filho <strong>de</strong> dom Johão Affomso Tello <strong>de</strong> Meneses, rrico homem<br />
direyto, que foy o primeiro homě <strong>de</strong>sta linhagě <strong>de</strong> Meneses que veo a esta terra <strong>de</strong> Castella,<br />
dom<strong>de</strong> partio per odio que ell rrey dom Pedro, filho <strong>de</strong>ll rrey dom Affomso, ganhou comtra seu<br />
filho Martym Affomso Tello, hyrmão daquelle com<strong>de</strong> d'Ourem, <strong>de</strong> que <strong>de</strong>çem<strong>de</strong>o <strong>de</strong>pois a<br />
rrainha dona Lianor, molher <strong>de</strong>ll rrey dom Fernamdo. E a com<strong>de</strong>ssa dona Guyomar foy filha <strong>de</strong><br />
Lopo Fernam<strong>de</strong>z Pacheco, que jaz na See <strong>de</strong> Lixboa, e <strong>de</strong> dona Maria <strong>de</strong> Villa Lobos, neta <strong>de</strong>ll<br />
rrei dom Samcho <strong>de</strong> Castella. 92<br />
De <strong>de</strong>scendência da família Teles <strong>de</strong> Meneses, tinha, portanto, raízes que<br />
migraram <strong>de</strong> Castela para Portugal. Órfão paterno ainda moço, foi criado no círculo<br />
político <strong>de</strong> Dom Duarte, que o fez cavaleiro em Ceuta. O con<strong>de</strong> era ainda sobrinho <strong>de</strong><br />
Martim Fernan<strong>de</strong>s Portocarreiro, como já mencionado, auxiliando nesta zona fronteiriça<br />
entre Castela, Granada e o noroeste africano. Com base nestas informações, temos que<br />
91 LE GOFF, Jacques. Centro/periferia. In: Id.; SCHMITT, Jean-Clau<strong>de</strong>. (Coord.) op. cit. v. I. p. 208.<br />
92 GEZ-CCDPM, Cap. III, p. 182.<br />
55
sua posição <strong>de</strong>ntro do cenário político português era consi<strong>de</strong>rável; não se aproximava ao<br />
grau <strong>de</strong> Nuno Álvares Pereria obviamente, mas não <strong>de</strong>veria negar um pedido régio,<br />
como fez Martim Afonso <strong>de</strong> Melo. Soube, portanto, valer-se da situação e <strong>de</strong> sua<br />
<strong>de</strong>scendência.<br />
2.7 RECOLHENDO AS ARMAS<br />
Com esta análise integrada das crônicas <strong>de</strong> Fernão Lopes e Gomes Eanes <strong>de</strong><br />
Zurara, po<strong>de</strong>mos compreen<strong>de</strong>r as estratégias levadas a cabo tanto pela monarquia como<br />
pelos nobres, e principalmente nestes que viam na aproximação da figura real uma<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ascensão política. Estes traços personalistas marcam, como afirma Luís<br />
Filipe Thomaz,<br />
Parece assim ficar claro que, pelas suas motivações como pelo caráter, pela sua continuida<strong>de</strong><br />
com a Reconquista como pela i<strong>de</strong>ologia que a informa, pelo espaço geográfico em que se<br />
<strong>de</strong>senrola, pela base social, a expansão portuguesa em Marrocos antes <strong>de</strong> D. João II é muito mais<br />
um <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro episódio da história medieval que o primeiro episódio da mo<strong>de</strong>rna. O seu nexo<br />
lógico com a revolução comercial do século XI e com a ascensão da burguesia é mais que tênue.<br />
Obviamente, Ceuta não é exceção. 93<br />
Este movimento <strong>de</strong> lutar em nome da fé cristã contra o muçulmano, <strong>de</strong>ntro dos<br />
preceitos <strong>de</strong> com isso buscar honra e proveito assemelha-se a um movimento medieval,<br />
opondo-se a uma conceitualização <strong>de</strong> objetivos mo<strong>de</strong>rnos em face <strong>de</strong> uma expansão<br />
burguesa. Não queremos opor conceitos, muito menos afirmar que tal opção econômica<br />
não existiu, mas compreen<strong>de</strong>r as relações entre a monarquia e nobreza neste primeiro<br />
momento da ocupação portuguesa no noroeste africano. Diante da documentação<br />
selecionada, po<strong>de</strong>mos perceber como os elementos simbólicos da cavalaria estavam<br />
presentes, fazendo parte do pensamento legitimador <strong>de</strong> ações que permitiram a<br />
formação <strong>de</strong> um corpo político naquele espaço. Novamente lembremos da significação<br />
polissêmica da expansão ultramarina, e como preten<strong>de</strong>mos apenas focar nossa análise<br />
nas questão <strong>de</strong> ascensão da dinastia <strong>de</strong> Avis, e da a<strong>de</strong>são da nobreza no projeto <strong>de</strong><br />
tomada <strong>de</strong> Ceuta através dos argumentos cruzadísticos.<br />
93 THOMAZ, Luís Filipe. op. cit., p. 29.<br />
56
3 DO PRETÉRITO PERFEITO AO PRESENTE MAIS-QUE-PERFEITO<br />
Ao longo <strong>de</strong>sta pesquisa, estamos nos <strong>de</strong>frontamos com a questão da produção<br />
do gênero histórico presente nas crônicas tardo-medievais portuguesas, percebendo que<br />
o lugar da <strong>História</strong> nestes textos foi um local privilegiado, ou melhor, o estatuto <strong>de</strong><br />
historicida<strong>de</strong> estava presente justamente em compor tais relatos em prosa.<br />
O principal interesse <strong>de</strong> pesquisa foi observar a a<strong>de</strong>são da nobreza e suas<br />
relações com a monarquia na tomada <strong>de</strong> Ceuta. Como já foi referido, esta tomada <strong>de</strong><br />
praça no noroeste africano marca na historiografia o início do chamado Império<br />
marítimo português, e diante disso, o cronista Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara é analisado como<br />
a principal fonte <strong>de</strong> informações. No entanto, optamos por integrar os relatos <strong>de</strong>ste com<br />
seu antecessor Fernão Lopes, mostrando como uma parte da nobreza a<strong>de</strong>riu ao Mestre<br />
<strong>de</strong> Avis e o apoiou em algumas situações. Com isso, procuramos evitar uma análise<br />
pontual <strong>de</strong>sta a<strong>de</strong>são apenas neste projeto <strong>de</strong> guerra contra os muçulmanos em solo<br />
africano, o que po<strong>de</strong>ria sinalizar para um arranjo tangente e superficial <strong>de</strong> interesses.<br />
Com a análise integrada, conseguimos perceber que as relações régio-nobiliárquicas<br />
eram presentes e faziam sentido naquele ambiente, não caracterizando, pois, um mero<br />
artifício i<strong>de</strong>ológico, fora <strong>de</strong> propósito e externo à realida<strong>de</strong> dos envolvidos.<br />
Se por um lado nos preocupamos com esta integração na análise, também nos<br />
interessa a elaboração <strong>de</strong> tais documentos, posteriores aos acontecimentos, pois marcam<br />
uma preocupação com o resgate <strong>de</strong>stas informações. Em outras palavras, se nos<br />
interessa analisar a a<strong>de</strong>são <strong>de</strong> nobres com a monarquia na tomada <strong>de</strong> Ceuta, também é<br />
<strong>de</strong> relevância atentar para o momento <strong>de</strong> solicitação <strong>de</strong> tais documentos, rememorando<br />
o passado, até porque talvez este momento <strong>de</strong> produção exerça uma ênfase, ou ainda,<br />
uma predominância <strong>de</strong> assuntos que são tratados nas fontes.<br />
Desta indagação sobre a influência do momento <strong>de</strong> solicitação, e até mesmo das<br />
pessoas que fizeram tais pedidos, não nos interessa verificar compatibilida<strong>de</strong>s ou<br />
verossimilhanças, pois estamos tratando <strong>de</strong> momentos distintos, e como tais, passíveis<br />
<strong>de</strong> análises particulares. O que estaremos percorrendo neste último capítulo, em<br />
essência, é observar como os cronistas e seus solicitadores, balizados entre as décadas<br />
<strong>de</strong> 1430-1460, olharam e relataram os acontecimentos do final do século XIV e início<br />
do século XV. Trata-se, portanto, <strong>de</strong> perceber a importância dos conteúdos no contexto<br />
<strong>de</strong> produção, bem como os interesses em produzir tais crônicas. Para iniciar tal<br />
57
abordagem, vamos proce<strong>de</strong>r a análise sobre os acontecimentos posteriores a tomada <strong>de</strong><br />
Ceuta em 1415, pois foi cerca <strong>de</strong> duas décadas <strong>de</strong>pois dos acontecimentos narrados que<br />
o pedido <strong>de</strong> escrita <strong>de</strong> crônicas se iniciou, e florescia também no espaço da casa régia a<br />
produção <strong>de</strong> textos doutrinários por parte <strong>de</strong> seus membros.<br />
Após o retorno dos portugueses ao reino, e nos anos seguintes, Dom João I<br />
assume uma posição <strong>de</strong> maior <strong>de</strong>staque <strong>de</strong> sua autorida<strong>de</strong>, até porque dominava com<br />
mais astúcia os diálogos entre os grupos sociais. Nos termos <strong>de</strong> Armindo <strong>de</strong> Sousa, as<br />
medidas tomadas pela casa régia tinham como objetivo a<br />
[...] superação do caos instaurado no tempo da revolução [<strong>1385</strong>]; imposição da autorida<strong>de</strong><br />
monárquica sobre o clero, a nobreza e os concelhos; e instauração <strong>de</strong> uma aura <strong>de</strong> prestígio da<br />
dinastia em todo o espaço europeu. Não se po<strong>de</strong> garantir que o motor da idéia foi o interesse do<br />
Estado, essa coisa fusca que está para além dos protagonismos políticos. Porque, vendo bem,<br />
procurou-se enaltecer o rei e a dinastia emergente. Os textos propagandísticos, <strong>de</strong>signadamente o<br />
epitáfio da Batalha e o retrato moral <strong>de</strong> D. João I exarado por D. Duarte no Leal conselheiro,<br />
parecem conclusivos. 94<br />
Se tomarmos o reinado <strong>de</strong> Dom João I por completo, po<strong>de</strong>remos perceber duas<br />
etapas importantes <strong>de</strong> sua ação frente ao reino, já i<strong>de</strong>ntificados na pesquisa: a sua<br />
afirmação como rei viável, e a partir disto, sua consolidação como autorida<strong>de</strong> maior do<br />
reino. Uma ascensão contínua que se iniciou com a <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> Lisboa em 1384, seguida<br />
da vitória em Aljubarrota, alcançando a diplomacia com Castela, a vitória em Ceuta e a<br />
armação dos filhos como cavaleiros, enfim, um início no mínimo auspicioso da segunda<br />
dinastia portuguesa.<br />
De boa memória, como é o codinome <strong>de</strong> Dom João I, temos que estas vitórias<br />
obtidas necessitavam <strong>de</strong> relatos e <strong>de</strong>scrições. Ao lado dos sucessos militares, a<br />
consolidação em letras dos acontecimentos representava outra conquista. Quão mais<br />
organizado o reino se figurava, melhor e mais <strong>de</strong>talhado apresentava o local da corte à<br />
guarda dos documentos régios. Já no final do século XIII, como afirma Joaquim<br />
Veríssimo Serrão,<br />
As lutas da Reconquista e o caráter itinerante da Corte não eram <strong>de</strong> mol<strong>de</strong>, até ao terceiro quartel<br />
do século XIII, a concentrar num <strong>de</strong>pósito fixo os documentos da Coroa. Não falando nos livros<br />
da chancelaria, que acompanhavam os monarcas nas suas andanças pelo reino, muitos treslados<br />
ficaram à guarda <strong>de</strong> municípios e conventos e outros ter-se-iam perdido. É possível também que<br />
em Lisboa se houvesse conservado outros documentos que, no tempo <strong>de</strong> D. Dinis, foram<br />
94 SOUSA, Armindo <strong>de</strong>. op. cit., p. 499.<br />
58
integrados na torre da ‘escrevaninha’, que se erguia perto do Arco Escuro. Por tal motivo, o que<br />
po<strong>de</strong> constituir a raiz <strong>de</strong> um arquivo real apenas se comprova nos fins do século XIII. 95<br />
A organização da Torre do Tombo inicia-se com Dom Fernando, mantendo a<br />
guarda <strong>de</strong> documentos importantes em um local fixo e protegido. Mas foi na dinastia <strong>de</strong><br />
Avis, em especial com Dom Duarte, que o cargo <strong>de</strong> cronista régio foi instituído,<br />
ampliando o papel do responsável pela guarda dos registros. Como já mencionado no<br />
primeiro capítulo <strong>de</strong>sta pesquisa, o cronista exercia primeiro a função <strong>de</strong> guarda-mor do<br />
arquivo, e disto ele tinha acesso aos documentos régios, possibilitando o conhecimento<br />
<strong>de</strong> informações para o seu ofício <strong>de</strong> cronista.<br />
Com o reinado <strong>de</strong> Dom Duarte, não se apresentam muitas mudanças<br />
governativas com relação ao seu pai, pois aquele esteve junto <strong>de</strong>ste no comando do<br />
reino praticamente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 1420, como sugere Armindo <strong>de</strong> Sousa:<br />
[D. Duarte] prosseguiu, portanto, a política que vinha a fazer-se, mantendo nos cargos<br />
conselheiros e altos funcionários, assim como dando seguimento às estratégias governativas<br />
pelas quais se havia corresponsabilizado há muito. Não admira, pois, que se note um<br />
<strong>de</strong>senvolvimento coerente na condução dos negócios marroquinos, nas navegações atlânticas, no<br />
aproveitamento das ilhas, no progresso da centralização monárquica e na área das relações com o<br />
estrangeiro. 96<br />
É <strong>de</strong> Dom Duarte que parte a nomeação <strong>de</strong> Fernão Lopes como cronista do<br />
reino, mas a escrita <strong>de</strong> textos não se restringe apenas a este cargo <strong>de</strong> ofício. Dom João I<br />
compõe o Livro da Montaria, e seus filhos produzem mais escritos: <strong>de</strong> Dom Duarte<br />
temos o Leal Conselheiro e o Livro <strong>de</strong> Ensinança <strong>de</strong> Bom Cavalgar, e <strong>de</strong> seu irmão<br />
Dom Pedro, o Livro da Virtuosa Benfeitoria. 97 Alguns pesquisadores procuram indicar<br />
que esta orientação para a escrita adveio com a influência da esposa <strong>de</strong> Dom João I, a<br />
rainha <strong>de</strong> origem inglesa Dona Filipa <strong>de</strong> Lancastre; disto surge o epíteto <strong>de</strong> ínclita<br />
geração, como um hábito <strong>de</strong> erudição. De qualquer forma, esta primeira meta<strong>de</strong> do<br />
século XV marca uma produção <strong>de</strong> textos por parte dos membros da casa régia, ou por<br />
eles solicitados, como são o caso das crônicas.<br />
Pelos próprios títulos das obras, percebe-se a diferença entre os propósitos dos<br />
escritores, pois se os infantes escrevem sobre temas morais ou dos hábitos dos<br />
95<br />
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. A historiografia portuguesa. Doutrina e crítica. Lisboa: Editorial<br />
Verbo, 1972. v. I., p. 38-39.<br />
96<br />
SOUSA, Armindo <strong>de</strong>. op. cit., p. 501.<br />
97<br />
Estudos sobre estes textos po<strong>de</strong>m ser consultados em: MONGELLI, Lênia Márcia. (Coord.) A<br />
literatura doutrinária na corte <strong>de</strong> Avis. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 413 p.<br />
59
cavaleiros, os cronistas centram nas <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong> acontecimentos do reino. Lembremos<br />
também que a solicitação inicial <strong>de</strong> Dom Duarte para Fernão Lopes significava a escrita<br />
não tão somente dos membros da casa <strong>de</strong> Avis, mas dos reis Dom Pedro e Dom<br />
Fernando, os dois últimos monarcas da casa <strong>de</strong> Borgonha.<br />
3. 1 FERNÃO LOPES E A ESCRITA DOS REIS<br />
Se tomarmos a obra <strong>de</strong> Fernão Lopes por completo, po<strong>de</strong>remos perceber dois<br />
pontos sobre seus escritos. O primeiro é que ele constitui um relato com elevado grau <strong>de</strong><br />
precisão sobre datas e nomes, o que configura um ofício eficiente enquanto <strong>de</strong>scrição. A<br />
consulta <strong>de</strong> documentos foi feita <strong>de</strong> forma exaustiva, como o autor informa em seu<br />
prólogo da primeira parte da Crônica <strong>de</strong> D. João I. Não significa ler<br />
<strong>de</strong>spreocupadamente o seu texto, mas constatar as informações contidas na crônica com<br />
a origem dos dados, como fez Anselmo Braamcamp Freire.<br />
No segundo ponto sobre os escritos <strong>de</strong> Fernão Lopes, que mais no interessa<br />
neste momento, po<strong>de</strong>remos chamar <strong>de</strong> eficiência prescritiva. Definimos prescritivo por<br />
perceber um perfil <strong>de</strong> monarca nas suas três crônicas, que projeta um arquétipo ou<br />
exemplo, po<strong>de</strong>ndo servir a alguns objetivos.<br />
Na pesquisa <strong>de</strong> Marcella Lopes Guimarães, ela percebe contraposições sobre as<br />
ações e representações, em especial aos reis Dom Fernando e Dom João I. Disto não<br />
significa afirmar que o cronista forçou uma imagem, até porque se <strong>de</strong>ve atentar para os<br />
contextos e como cada monarca agiu nestas situações. No entanto, o estudo das<br />
representações dos monarcas na obra <strong>de</strong> Fernão Lopes concluiu que uma contraposição<br />
<strong>de</strong>ntre os reis, e em conseqüência, entre as duas dinastias, pô<strong>de</strong> possibilitar uma<br />
elevação da imagem dos membros <strong>de</strong> Avis nas primeiras décadas do século XV, pois<br />
Dom João I figura como o iniciador da Sétima Ida<strong>de</strong>, o Mexias português. 98 Esta<br />
contraposição ganhava significado também com relação ao reino <strong>de</strong> Castela, pois ainda<br />
segundo Marcella Lopes Guimarães,<br />
A morte <strong>de</strong> D. Fernando catapultou o nome do mestre <strong>de</strong> Avis, certamente o filho menos amado<br />
<strong>de</strong> D. Pedro I. De Mestre a Regedor, <strong>de</strong> Regedor a ‘Mexias’... – máxima mitificação para a<br />
conseqüência que o cronista não escon<strong>de</strong> que este homem <strong>de</strong>sejava: ser rei. [...] [e] rapidamente<br />
o texto registra a sua transformação em objeto <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>manda <strong>de</strong> justiça e necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
98 GUIMARÃES, Marcella Lopes. op. cit., f. 187.<br />
60
in<strong>de</strong>pendência frente a um po<strong>de</strong>rio objetivamente muito maior, o <strong>de</strong> D. João <strong>de</strong> Castela. D. João<br />
<strong>de</strong> Portugal conseguiu o impensável para os recursos e condição, saiu-se vencedor. Contra<br />
orgulhosos castelhanos, o português se amparou nos povos que só tinham a ele para lhes valer. O<br />
rei se ergueu do cheiro <strong>de</strong>ssa massa heterogênea, da qual não estavam ausentes nobres, <strong>de</strong><br />
segunda sim, mas ainda nobres, como Fátima Regina Fernan<strong>de</strong>s já lembrou. 99<br />
Ou ainda, se havia um obstáculo <strong>de</strong> ilegitimida<strong>de</strong> ao iniciador <strong>de</strong> Avis, aqui<br />
po<strong>de</strong>ríamos perceber uma retomada do argumento <strong>de</strong> João das Regras nas Cortes <strong>de</strong><br />
Coimbra em <strong>1385</strong>: o rei tinha bom coração para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o reino, e amor aos súditos.<br />
A escrita das crônicas <strong>de</strong> Fernão Lopes não significa tão somente uma afirmação<br />
da figura régia da dinastia <strong>de</strong> Avis, mas talvez uma consolidação, um complemento às<br />
práticas levadas a cabo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1383. E compor em forma <strong>de</strong> prosa os feitos passados<br />
estaria na or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> assegurar uma legitimida<strong>de</strong> pautada na aliança com os portugueses<br />
do reino, que esperavam do monarca ações eficientes, e que Fernão Lopes fez questão<br />
<strong>de</strong> informar e comprovar. Os textos do cronista, em especial a sua última crônica, que<br />
foi objeto da nossa análise, não supriam uma carência <strong>de</strong> ações políticas realizadas por<br />
Dom João I, o que po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>notar uma <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> governativa e, por conseguinte, um<br />
erro na <strong>de</strong>cisão das Cortes <strong>de</strong> <strong>1385</strong>; erro que seria reparado pela escrita, equiparando a<br />
contradição das ações e contextos. Pelo contrário, a crônica estabelecia a boa condução<br />
dos feitos, e por isso sua redação era <strong>de</strong>sejada.<br />
As suas crônicas, pelos anos em que foram encomendadas e escritas, seguiram a<br />
cronologia da sucessão <strong>de</strong> Dom Pedro, Dom Fernando e Dom João I. Ele po<strong>de</strong>ria ter<br />
escrito na seqüência oposta, o que indicaria um projeto mais explícito <strong>de</strong> afirmação da<br />
dinastia <strong>de</strong> Avis, ou ainda, a não redação sobre os reis anteriores, mas o que acreditamos<br />
ser menos condizente com aquela realida<strong>de</strong>. Portugal enquanto reino se fundava na<br />
tradição, no passado que recuperado po<strong>de</strong>ria representar uma consolidação <strong>de</strong> hábitos e<br />
ações. Enfim, o que constatamos foi que os escritos <strong>de</strong> Fernão Lopes, em especial a sua<br />
última crônica, produzem um resultado positivo à dinastia <strong>de</strong> Avis, pois ao mesmo<br />
tempo em que recriava acontecimentos passados em forma <strong>de</strong> texto, possibilitava a<br />
leitura, enquanto elemento gerador <strong>de</strong> sentido, <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>s do monarca Dom João I.<br />
Assim, a crônica atingia seu componente prescritivo, pela exaltação <strong>de</strong> atributos<br />
positivados no monarca <strong>de</strong> Avis, e possibilitava a comparação <strong>de</strong> ações com os reis<br />
anteriores. Esta comparação po<strong>de</strong>ria gerar a concordância aos atributos com relação ao<br />
99 Ibid., f. 251.<br />
61
corpo político instituído, exatamente no momento <strong>de</strong> elaboração dos textos cronísticos.<br />
Causa e efeito, neste sentido, difícil <strong>de</strong> separar; se é que po<strong>de</strong>mos pensar em divisão.<br />
3.2 UMA TRANSIÇÃO DINÁSTICA INTERNA<br />
Os escritos <strong>de</strong> Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara, apesar <strong>de</strong> terem uma influência do seu<br />
antecessor, inserem-se em um momento histórico distinto no reino português. As duas<br />
últimas crônicas <strong>de</strong> Fernão Lopes foram escritas após 1438, ano da morte <strong>de</strong> Dom<br />
Duarte. Apesar <strong>de</strong> a configuração política alterar-se sutilmente no reino, como veremos<br />
a seguir, as crônicas <strong>de</strong> Fernão Lopes não apresentam uma consi<strong>de</strong>rável diferença<br />
estrutural e estilística, o que po<strong>de</strong>ria indicar uma mudança sugerida e externa. Mas entre<br />
os textos <strong>de</strong> Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara, po<strong>de</strong>remos perceber uma mudança <strong>de</strong> ênfase, o<br />
que será foco <strong>de</strong> nossa atenção.<br />
Com o falecimento <strong>de</strong> Dom Duarte, o seu filho Dom Afonso tinha apenas 6<br />
anos, e não podia assumir a condução do reino. Deixado testamento, este informava que<br />
sua esposa, a rainha Dona Leonor <strong>de</strong> Aragão, seria tutora e regedora até os 14 anos do<br />
primogênito. No entanto, esta <strong>de</strong>cisão não agradou os membros do reino, pois temia a<br />
perda da autonomia. Em <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> Dom Henrique em Torres Novas, ficou <strong>de</strong>cidido<br />
que a rainha, o infante Dom Pedro, e um grupo restrito dividiriam o po<strong>de</strong>r máximo <strong>de</strong><br />
Portugal. Novamente esta solução não teve unanimida<strong>de</strong>, e os membros <strong>de</strong> Lisboa e<br />
Porto resolveram centralizar a regência apenas em Dom Pedro. Nas palavras <strong>de</strong><br />
Armindo <strong>de</strong> Sousa:<br />
O regimento <strong>de</strong> Torres Novas foi anulado e o infante D. Pedro, tal como há muitos anos o pai,<br />
<strong>de</strong>clarado por pressão do povo ‘Regedor e Defensor do Reino’; e, mais ainda, tutor e curador do<br />
rei. A rainha tentou resistir, apoiada por forças internas e pela promessa <strong>de</strong> ajuda dos seus irmãos<br />
<strong>de</strong> Aragão. Vai haver movimentação <strong>de</strong> tropas e clima <strong>de</strong> invasão iminente, mas sem<br />
conseqüências dignas <strong>de</strong> nota. A rainha foge para Castela, é acusada <strong>de</strong> se conluiar com<br />
estrangeiros, <strong>de</strong>spojada <strong>de</strong> todos os seus bens, e acaba por morrer em Toledo, no ano <strong>de</strong> 1445.<br />
Regressará a Portugal mais tar<strong>de</strong>, para dormir no Mosteiro da Batalha o sono da paz perto do<br />
marido, que tal <strong>de</strong>cidiu o filho <strong>de</strong> ambos, Afonso V. 100<br />
A regência <strong>de</strong> Dom Pedro não se realiza como um ato ingênuo. Pelo contrário,<br />
este infante era conhecedor dos meandros políticos, culto e astuto, mas que atuou <strong>de</strong><br />
100 SOUSA, Armindo <strong>de</strong>. op. cit., p. 502-503.<br />
62
forma dúbia em algumas situações. A começar nas cortes que o elegeram, pois segundo<br />
novamente Armindo <strong>de</strong> Sousa,<br />
[...] o infante faz questão <strong>de</strong> tornar claro, no próprio momento em que recebe o Po<strong>de</strong>r, que o<br />
aceita, não para beneficiar clientelas sociais e políticas, mas para servir o País [sic], a Nação<br />
[sic], todos os grupos e classes. Por outras palavras, <strong>de</strong>marca-se, logo que eleito, dos seus<br />
eleitores mais numerosos e assume publicamente uma postura <strong>de</strong> homem <strong>de</strong> Estado. A qual, era<br />
fatal, irá em breve <strong>de</strong>sagradar a todos. 101<br />
Esta atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Dom Pedro é vista na historiografia <strong>de</strong> duas formas: uma<br />
visualiza um aumento do centralismo régio; outra vê a prática oposta, um neo-<br />
senhorialismo. Não aceitamos inteiramente ambas, pois nos parece muito acentuadas,<br />
distorcendo <strong>de</strong>talhes. Definir um neo-senhorialismo equivaleria afirmar que haveria<br />
uma ruptura, talvez creditando um móvel burguês no início expansionista; burguesia<br />
que neste momento <strong>de</strong> Dom Pedro seria ofuscada pelos privilégios retomados pela<br />
nobreza.<br />
Houve, na nossa interpretação, um rearranjo <strong>de</strong> grupos sociais, dispostos nas<br />
relações políticas, e que a diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> opiniões, <strong>de</strong>sejos e projetos produziram<br />
divergências. Concordamos, portanto, com os termos <strong>de</strong> Armindo <strong>de</strong> Sousa que afirma:<br />
[...] <strong>de</strong>pois do infante D. Pedro, os concelhos, e logo os povos, per<strong>de</strong>ram terreno em proveito da<br />
nobreza e do clero. Regrediram. Tal como o direito comum em benefício do canônico e do<br />
privilégio. E porque assim foi, regrediu o Estado em prol do feudalismo. Ora, não cremos que o<br />
processo <strong>de</strong> regressão tenha sido fomentado nem consentido pelo regente. Até porque os<br />
beneficiários do processo viram nele o maior obstáculo. Por isso o combateram. E, já<br />
aposentado, perseguiram-no. 102<br />
Com o reinado <strong>de</strong> Dom Afonso V, os interesses entre a nobreza e este rei foram<br />
muito semelhantes, e suas atitu<strong>de</strong>s são i<strong>de</strong>ntificadas como o último traço <strong>de</strong> cruzado<br />
medieval em Portugal. Ainda que contestamos tal afirmação finalista, os i<strong>de</strong>ais já<br />
estudados sobre os objetivos em Ceuta parecem renovar-se, e é neste momento que os<br />
escritos <strong>de</strong> Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara, como veremos em alguns trechos, informam, ainda<br />
que o cronista queria <strong>de</strong>screver os acontecimentos passados.<br />
101 Ibid., p. 503.<br />
102 Ibid., p. 505.<br />
63
3.3 GOMES EANES DE ZURARA E A ESCRITA NOBILIÁRQUICA<br />
Com os textos <strong>de</strong> Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara, po<strong>de</strong>mos i<strong>de</strong>ntificar também os dois<br />
elementos presentes nos textos <strong>de</strong> Fernão Lopes, a saber: o <strong>de</strong>scritivo e o prescritivo.<br />
Algumas idéias já foram lançadas ao longo da pesquisa sobre isso, mas iremos retomar<br />
neste momento, a fim <strong>de</strong> mapear a relação entre escrita e solicitação.<br />
O elemento <strong>de</strong>scritivo é o mais característico, até porque marca justamente a<br />
tipologia dos escritos cronísticos. Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara <strong>de</strong>screve acontecimentos<br />
i<strong>de</strong>ntificados como importantes ao reino, em especial a tomada <strong>de</strong> Ceuta em 1415.<br />
Muitos pesquisadores afirmam que a Crónica da tomada <strong>de</strong> Ceuta é uma continuação<br />
da última crônica <strong>de</strong> Fernão Lopes; seria, portanto, a terceira parte. Lembremos que<br />
Zurara escreve seus textos num momento em que Fernão Lopes ainda possuía um<br />
trânsito no arquivo régio. Com relação aos <strong>de</strong>mais textos <strong>de</strong> Zurara, ele mantém o<br />
elemento <strong>de</strong>scritivo, mas se a sua primeira crônica centra nas ações do reino <strong>de</strong> Portugal<br />
em Ceuta, as <strong>de</strong>mais são particulares, e marcam um traço aproximado com o momento<br />
<strong>de</strong> elaboração dos escritos, e <strong>de</strong> seus solicitadores. Diferentemente dos escritos <strong>de</strong><br />
Fernão Lopes, as crônicas <strong>de</strong> Zurara mudam <strong>de</strong> ênfase, sendo as duas últimas<br />
relacionadas e centradas em ações <strong>de</strong> nobres, essencialmente.<br />
O tom prescritivo apresenta-se enquanto ação <strong>de</strong> nobres que atuaram em nome<br />
<strong>de</strong> Deus, contra o muçulmano, e que alcançaram o estado <strong>de</strong> prestígio e privilégio por<br />
agirem <strong>de</strong>sta forma. Relatar esses portugueses seria uma forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar e afirmar<br />
como <strong>de</strong>veria ser um português i<strong>de</strong>al, apoiador do rei e convicto <strong>de</strong> sua participação na<br />
condução do corpo político, sobressaído por combater o muçulmano. A prescrição<br />
eleva-se a partir da <strong>de</strong>scrição, sendo que <strong>de</strong>staca um arquétipo. Se com Fernão Lopes o<br />
rei era o Mexias, com Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara os nobres são o braço direito e<br />
indispensáveis à condução dos projetos do reino.<br />
Para exemplificar esta argumentação tomemos, por exemplo, a relação entre<br />
nobres e Dom João I em Tavira, já no reino, quando do retorno <strong>de</strong> Ceuta, presente na<br />
Crónica da tomada <strong>de</strong> Ceuta:<br />
E, estando assim el-Rei em Tavira como dito é, fez ajuntar todos aqueles principais e disse-lhes:<br />
'Porquanto minha vonta<strong>de</strong> é <strong>de</strong> vos <strong>de</strong>spachar por vos arredar <strong>de</strong> custa e <strong>de</strong> trabalho, cada uns <strong>de</strong><br />
vós outros po<strong>de</strong>reis avisar a todos aqueles que vêm em vossa companhia que me venham<br />
requerer quaiquer mercês ou cousas que a suas honras e liberda<strong>de</strong>s pertençam. E, como quer que<br />
já eu, por muitas vezes, tivesse experimentadas vossas boas vonta<strong>de</strong>s em todas as outras cousas,<br />
64
para que vos requeri, em este presente trabalho senti muito as boas vonta<strong>de</strong>s <strong>de</strong> todos. As quais<br />
fizeram muito mais esforçar a minha, para vos sempre buscar toda honra e acrescentamento que<br />
em minha posse for.<br />
E, sobretudo dou muitas graças a Nosso Senhor Deus, por me fazer reinar sobre gente, que me<br />
tão verda<strong>de</strong>iramente e tão lealmente têm servido. Pelo qual lhes peço, por Sua santa mercê, que<br />
me dê sempre azo e po<strong>de</strong>r por que os possa reger e governar em todo direito e justiça e aos bons<br />
honrar e acrescentae, segundo é razão.'<br />
Todos foram muito contentes daquelas palavras <strong>de</strong> el-Rei, dizendo que lho tinham muito em<br />
mercê. E assim começaram logo alguns <strong>de</strong> fazer suas petições, para requerer suas cousas<br />
segundo lhes pertencia. As quais eram mui graciosamente <strong>de</strong>sembargadas outorgando a todos<br />
aquilo que achava que era razão e se podia fazer. E àqueles que, por ventura, pediam além o<br />
razoado era dada graciosa resposta, <strong>de</strong> guisa que a doçura da palavra lhe fazia gran<strong>de</strong><br />
contentamento. Outros houve ali que não quiseram, pelo presente pedir nenhuma cousa e se<br />
[d]espediram assim espaçando seus requerimentos para outro tempo. E, por tal guisa foi tudo<br />
encaminhado que todos partiram mui ledos e contentes da presença <strong>de</strong> el-Rei. E ele, outrossim<br />
das boas vonta<strong>de</strong>s que lhe sentia para seu serviço. 103<br />
Primeiro, po<strong>de</strong>mos i<strong>de</strong>ntificar o reconhecimento <strong>de</strong> Dom João I pela<br />
contribuição dos nobres na conquista <strong>de</strong> Ceuta, e o seu entusiasmo pelo comando. Esta<br />
participação assumia, diante das relações régio-nobiliárquicas, uma retribuição que<br />
passava por privilégios e honras, sendo requeridas pelos interessados. O <strong>de</strong>talhe é que<br />
Zurara nos passa três formas ou comportamentos diante do monarca, o que nos permite<br />
perceber como o elemento prescritivo era operado.<br />
A primeira forma <strong>de</strong> solicitação é a i<strong>de</strong>al, pois requer exatamente o que condiz<br />
com sua posição e atuação. A segunda maneira é aquela em que o nobre procura extrair<br />
mais benefícios, o que era i<strong>de</strong>ntificado como abuso e, portanto, recusado; ou seja, a<br />
relação entre nobres e a casa dinástica <strong>de</strong>veria ser proporcional, ou ainda, se os nobres<br />
projetavam na aproximação com a monarquia a obtenção <strong>de</strong> benefícios, sua ação<br />
<strong>de</strong>veria ser condizente. E por fim, a última forma era aquela que não buscava,<br />
diretamente, a retribuição; nisto po<strong>de</strong>ríamos i<strong>de</strong>ntificar pessoas bem estabelecidas, ou<br />
ainda, que esperassem outra oportunida<strong>de</strong>, não configurando aquela como uma ação<br />
apenas eventual ou pontual. Requerer e recusar não são ações exclu<strong>de</strong>ntes, mas não<br />
solicitar po<strong>de</strong>ria ser uma forma <strong>de</strong> que o rei, sensibilizado pela conduta, estabelecesse o<br />
vínculo em outro momento, já que po<strong>de</strong>ria pensar que aquela recusa pelo merecimento<br />
não significava a recusa pela a<strong>de</strong>são ao rei. Ou seja, não era o nobre que po<strong>de</strong>ria ir ao<br />
rei, mas o contrário, ou melhor, o rei po<strong>de</strong>ria contar com a aliança daquele nobre, ou<br />
pelo menos assim se configurava.<br />
E em outro trecho, mais revelador do sentimento <strong>de</strong> escrita e do seu significado,<br />
Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara aponta para o papel <strong>de</strong> reconhecimento da crônica como objeto<br />
103 GEZ-CTC, Cap. CII, p. 288.<br />
65
<strong>de</strong> memória e, portanto, <strong>de</strong> importância para os membros interessados em perpetuarem<br />
suas ações em forma escrita. Assim escreve o cronista:<br />
Certo, toda a nobreza dos homens fora <strong>de</strong>struída, se as penas dos escrivães a não puseram em<br />
fim. E, porém, dizia Lucano [Marcus Annaeus Lucanus, irmão <strong>de</strong> Sêneca] no oitavo livro <strong>de</strong> sua<br />
história, falando <strong>de</strong> como César chegou àquele lugar on<strong>de</strong> foi a Tróia, contando ali a <strong>de</strong>struição<br />
daquelas cousas tão gran<strong>de</strong>s as quais Júlio César esguardava com tão gran<strong>de</strong> femença porque ele<br />
e toda a linhagem real <strong>de</strong> Roma <strong>de</strong>scendia da geração <strong>de</strong> Eneias.<br />
'Oh santo e gran<strong>de</strong> trabalho', diz Lucano, 'dos autores historiais como tolhes à morte todas as<br />
cousas que achas e as guardas em memória que não esqueçam nem moiram e dás aos homens<br />
mortais ida<strong>de</strong> que lhes dure sempre'. E, porém, concluindo este capítulo, entendamos que os<br />
gran<strong>de</strong>s príncipes e outros bons homens <strong>de</strong>vem assim virtuosamente obrar em seus feitos, por<br />
que os autores das histórias hajam razão <strong>de</strong> escrever suas obras por sua notável memória e<br />
ensinança dos outros que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>les quiserem conseguir virtu<strong>de</strong> e arredar-se dos viciosos<br />
costumes, por tal que o seu nome não viva, ante os homens para todo sempre, em seu doesto [sua<br />
vergonha] porque, além do bom nome que nunca morre, ou o contrario que nunca se per<strong>de</strong>,<br />
acrescentam ne bem-aventurança que pertence à sua alma. Porquanto aqueles, que <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>m <strong>de</strong><br />
sua geração, recebendo honra pelo seu merecimento, regam a Deus por eles. E assim todos os<br />
outros hão em gran<strong>de</strong> reverênça suas sepulturas e bem dizem o seu nome, ouvindo ou vendo o<br />
processo <strong>de</strong> suas bonda<strong>de</strong>s. 104<br />
Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara, ao mesmo tempo em que reconhece a importância da<br />
escrita como forma <strong>de</strong> eternizar os feitos, sugere a ação, o empenho em <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r os<br />
i<strong>de</strong>ais nobres. Contra um esquecimento <strong>de</strong> acontecimentos, o que po<strong>de</strong>ria levar a uma<br />
<strong>de</strong>smotivação a prática <strong>de</strong> projetos, o cronista evoca a atuação, pois se ela fosse<br />
efetivada, seria ofício dos cronistas por em letras as honras. O exemplo <strong>de</strong> César<br />
sinaliza para o conhecimento ou documentação <strong>de</strong> ações que posteriormente não seriam<br />
visíveis, ou <strong>de</strong>struídas. Transpondo aos atos <strong>de</strong> guerra ou gestos <strong>de</strong> cavalaria, eles<br />
seriam importantes, sendo que sua escrita comprovaria a existência.<br />
Se retomarmos a tría<strong>de</strong> <strong>de</strong> honra, proveito e glória, aqui po<strong>de</strong>remos compreen<strong>de</strong>r<br />
um pouco <strong>de</strong>sta dinâmica <strong>de</strong> escrita. A noção <strong>de</strong> proveito parece ser a mais básica, pois<br />
consi<strong>de</strong>ra a pilhagem, ou ainda, o aproveitamento material dos feitos. O conceito <strong>de</strong><br />
honra, que o frei João Xira exemplifica em Ceuta, aproxima as idéias <strong>de</strong> merecimento e<br />
privilégio, que pu<strong>de</strong>mos i<strong>de</strong>ntificar nos três tipos <strong>de</strong> comportamento em Tavira. E a<br />
glória, que po<strong>de</strong>ria ser misturada a noção <strong>de</strong> honra, significa a eternização dos feitos, o<br />
que as crônicas procuravam fazer, já que eram o local da <strong>História</strong>, e possuíam o estatuto<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>stacar os grupos sociais. E eternizar acontecimentos significava o oposto do<br />
esquecimento, o que contribuía para a consolidação <strong>de</strong> práticas, pois a <strong>História</strong> serviria<br />
para conservar e não alterar os rumos do reino. Desta forma, a nobreza dos homens não<br />
104 GEZ-CTC, Cap. CIV, p. 293-294.<br />
66
seria <strong>de</strong>struída, pois os cronistas transferiam o estatuto temporal dos eventos, passando<br />
os acontecimentos, ou ainda, os dados pesquisados, em escrita cronística. Sendo a<br />
crônica o lugar privilegiado da <strong>História</strong>, a inserção dos homens nestes textos não apenas<br />
significava sua heroicização, mas a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> outros <strong>de</strong> sua linhagem adquirir<br />
benefícios, e terem um exemplo a seguir. Enfim, se os textos escritos pelos membros da<br />
dinastia procuravam tipificar a conduta <strong>de</strong> nobres e cavaleiros, as crônicas assumiam o<br />
papel <strong>de</strong> inserir estas condutas em situações reais, prescrevendo atuações em nome da<br />
honra e glória, e mostrando como aquelas condutas po<strong>de</strong>riam ser realizadas,<br />
confirmando aquele pensamento militar e religioso.<br />
O rei Dom Afonso V solicitava a escrita <strong>de</strong> tais crônicas, e diante dos textos<br />
compilados por Zurara, o rei retribuía os feitos dos portugueses, como vimos na carta<br />
anexada da Crónica do Con<strong>de</strong> D. Duarte <strong>de</strong> Meneses e na Crónica da tomada <strong>de</strong> Ceuta.<br />
Desta forma, o rei também <strong>de</strong>senvolvia um mecanismo que po<strong>de</strong>ria gerar uma atuação<br />
por parte das pessoas que estariam no momento <strong>de</strong> solicitação, isto é, o fato do monarca<br />
retribuir ações em forma <strong>de</strong> privilégios e distinções por ler os feitos nas crônicas, e <strong>de</strong> o<br />
cronista afirmar que estes feitos <strong>de</strong>veriam ser realizados, pois era compromisso <strong>de</strong>le<br />
preservar em forma <strong>de</strong> texto, po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>senvolver um potencial <strong>de</strong> ação, já que esta ação<br />
seria incluída em crônica, entrando na relação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e, conseqüentemente, nos<br />
merecimentos que os portugueses po<strong>de</strong>riam aspirar com tal aproximação da casa régia.<br />
Enfim, um mecanismo que sem dúvida passava prioritariamente pela ação, mas que<br />
ganhava uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aproximação pela escrita, haja vista o interesse em<br />
conhecer e recuperar acontecimentos passados, não apenas pelo monarca, mas pelos<br />
nobres. Lembremos a preocupação que os habitantes <strong>de</strong> Ceuta tinham para passar a<br />
Zurara, sendo que este percebeu que alguns procuravam omitir ou extrapolar<br />
informações. Esta preocupação se justificava diante da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> materialização<br />
dos relatos, que seriam eternizados em prosa através das crônicas.<br />
Po<strong>de</strong>mos pensar, sobre este sentido, na primeira tentativa <strong>de</strong> conquista <strong>de</strong> Tânger<br />
em 1337, praça próxima <strong>de</strong> Ceuta. Ou ainda, no confronto entre Dom Afonso V e seu<br />
tio, Dom Pedro, em Alfarrobeira, no ano <strong>de</strong> 1449. No primeiro caso os portugueses<br />
motivados, sobretudo por Dom Henrique, sofrem uma <strong>de</strong>rrota, <strong>de</strong>ixando no local Dom<br />
Fernando como refém. E em Alfarrobeira, al<strong>de</strong>ia próxima <strong>de</strong> Lisboa, com posições<br />
divergentes à condução do reino, os partidários <strong>de</strong> Dom Afonso V e Dom Pedro lutam,<br />
67
sendo o momento <strong>de</strong> afirmação do filho <strong>de</strong> Dom Duarte como novo monarca, e a morte<br />
<strong>de</strong> Dom Pedro em batalha.<br />
São momentos, enfim, on<strong>de</strong> as convicções sobre o posicionamento do corpo<br />
político que efetivamente atuava no reino foram questionadas, ou ainda, se aquelas<br />
atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong>veriam ser mantidas. Com a vitória <strong>de</strong> Dom Afonso V, vimos que o espírito<br />
<strong>de</strong> guerra contra os muçulmanos, e o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> percorrer a costa atlântica da África,<br />
continuaram vivos, e on<strong>de</strong> a produção <strong>de</strong> crônicas sobre esta temática estaria<br />
reafirmando isto. Concordamos, enfim, com Luis Filipe Thomaz quando escreve:<br />
É certo que muitas transformações irreversíveis tinham sobrevindo entretanto, das quais o início<br />
da expansão marítima portuguesa não foi, <strong>de</strong> modo algum, a menor; e sob as aparências fictícias,<br />
<strong>de</strong> um regresso ao passado incubam os germes <strong>de</strong> mutações mais radicais ainda. Todavia, <strong>de</strong><br />
momento, a atmosfera mental era antes propícia à restauração dos mo<strong>de</strong>los da Ida<strong>de</strong> Média. Eis o<br />
que explica que as crônicas <strong>de</strong> Zurara, nomeado cronista-mor do Reino em 1454, <strong>de</strong>ixem<br />
transparecer uma i<strong>de</strong>ologia nobiliárquica, neomedieval, que contrasta vivamente com o tom<br />
‘populista’ <strong>de</strong> aparência mais ‘mo<strong>de</strong>rna’, do seu pre<strong>de</strong>cessor Fernão Lopes, que exerceu o cargo<br />
<strong>de</strong> 1434 a 1454. 105<br />
Com a afirmação da posição política <strong>de</strong> Dom Afonso V temos, portanto, um<br />
acréscimo do interesse nos signos da nobreza, pautados na guerra e honra, on<strong>de</strong><br />
merecimentos advinham <strong>de</strong> aproximações com a casa régia. A <strong>de</strong>rrota em Tânger em<br />
1337 custou não apenas a vida <strong>de</strong> nobres e <strong>de</strong> Dom Fernando, mas o questionamento da<br />
imagem <strong>de</strong> Portugal como reino abertamente inimigo dos muçulmanos. Aceitar esta<br />
<strong>de</strong>rrota seria recuar frente ao inimigo <strong>de</strong> fé. O confronto, em suma, <strong>de</strong>veria continuar, e<br />
nos parece que a política <strong>de</strong> Dom Afonso V ao requerer o relato dos acontecimentos<br />
passados, e a disposição <strong>de</strong> Zurara em sugerir a ação, pois esta estaria em crônica,<br />
aponta para o estímulo à guerra em África, ao elogio <strong>de</strong>stas práticas, que ao mesmo<br />
tempo em que sustentavam a monarquia, po<strong>de</strong>riam permitir a ascensão <strong>de</strong> nobres e<br />
burgueses que quisessem investir numa aproximação régia, contando com benefícios.<br />
3.4 O DOCUMENTO E A CRÔNICA/MONUMENTO<br />
Enfim, com este último capítulo do trabalho, queríamos enten<strong>de</strong>r as crônicas<br />
como objetos culturais, produzidos em um momento social que difere dos<br />
105 THOMAZ, Luís Filipe. op. cit., p. 128.<br />
68
acontecimentos que narram. Elas não foram compostas sem um objetivo, e foi a<br />
compreensão <strong>de</strong>stes objetivos que estivemos preocupados em analisar.<br />
O principal ponto observado foi que os solicitadores, principalmente Dom<br />
Duarte e Dom Afonso V, tinham uma preocupação em trazer ao seu presente<br />
acontecimentos passados. No caso <strong>de</strong> Dom Duarte, nos pareceu que ele procurava não<br />
apenas documentar a dinastia <strong>de</strong> Avis, mas todos os monarcas <strong>de</strong> Portugal. Obteve,<br />
como conseqüência, a elevação <strong>de</strong> Dom João I como Mexias, iniciador da Sétima Ida<strong>de</strong>.<br />
Como vimos, não foi uma construção fora <strong>de</strong> contexto, mas sua comparação com os<br />
monarcas da época <strong>de</strong> Borgonha parecia inevitável. A <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> Fernão Lopes<br />
po<strong>de</strong>ria assumir a comprovação <strong>de</strong> que a escolha nas Cortes <strong>de</strong> Coimbra em <strong>1385</strong> foram<br />
corretas.<br />
No caso <strong>de</strong> Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara, seus objetivos parecem mais explicitados<br />
nas crônicas, pois percebemos que o rei Dom Afonso V solicitava a composição para<br />
retribuir a ajuda que os nobres <strong>de</strong>ram em conquistas militares, mostrando um esquema<br />
<strong>de</strong> aliança e retribuição. Percorrendo as crônicas <strong>de</strong> Fernão Lopes e Gomes Eanes <strong>de</strong><br />
Zurara em conjunto, como objetivamos nesta pesquisa, pu<strong>de</strong>mos observar como esta<br />
a<strong>de</strong>são não era apenas um expediente prosaico, mas era parte constituinte da<br />
organização política do reino português. No entanto, no momento <strong>de</strong> escrita dos textos<br />
<strong>de</strong> Zurara, pensamos que elas tinham um papel <strong>de</strong> evocar uma participação dos<br />
portugueses nas ações levadas a cabo pelo monarca, sendo estas crônicas objetos <strong>de</strong><br />
i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> acontecimentos passados, <strong>de</strong> comportamentos esperados, e a<br />
oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter as ações eternizadas. Aproximar-se do monarca po<strong>de</strong>ria possibilitar<br />
a obtenção <strong>de</strong> três valores essenciais: o proveito da pilhagem, a honra advinda do<br />
merecimento por parte do rei, e a glória, perpetuando o nome e a ação.<br />
Goff escreve:<br />
Sobre a noção <strong>de</strong> memória e documento, concordamos com o que Jacques Le<br />
O documento não é inócuo. É, antes <strong>de</strong> mais nada, o resultado <strong>de</strong> uma montagem, consciente ou<br />
inconsciente, da história, da época, da socieda<strong>de</strong> que o produziu, mas também das épocas<br />
sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser<br />
manipulado, ainda que pelo silêncio. O documento é uma coisa que fica, que dura, e o<br />
testemunho, o ensinamento (para evocar a etimologia) que ele traz <strong>de</strong>vem ser em primeiro lugar<br />
analisados, <strong>de</strong>smistificando-lhe o seu significado aparente. O documento é monumento. Resulta<br />
do esforço das socieda<strong>de</strong>s históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente –<br />
<strong>de</strong>terminada imagem <strong>de</strong> si próprias. 106<br />
106 LE GOFF, Jacques. op. cit., p. 537-538.<br />
69
Po<strong>de</strong>mos, enfim, pensar a tentativa <strong>de</strong> recuperar o passado como uma maneira <strong>de</strong><br />
monumentalizar as ações em forma <strong>de</strong> crônicas, objetos que representariam uma<br />
distinção social e hierarquizante. Criava-se um ciclo entre as projeções políticas, as<br />
ações e as intenções em registrar não apenas em documentos i<strong>de</strong>ntificados pelo<br />
presente; as crônicas criavam uma dimensão <strong>de</strong> passado importante para as relações <strong>de</strong><br />
po<strong>de</strong>r no reino português, dimensão esta que po<strong>de</strong>ria potencializar outras ações. As<br />
crônicas ao mesmo tempo em que relatavam o passado, sugerem a manutenção <strong>de</strong>stas<br />
práticas, po<strong>de</strong>ndo ser exemplos <strong>de</strong> conduta.<br />
70
CONCLUSÕES<br />
Ao fim <strong>de</strong>sta pesquisa histórica, <strong>de</strong>ixamos este espaço para discutir brevemente<br />
algumas das idéias analisadas ao longo do estudo. Sobre as perguntas postuladas, estas<br />
já foram respondidas no <strong>de</strong>correr da pesquisa, e neste momento tentaremos reunir os<br />
pontos alcançados. Em primeiro lugar, acreditamos que o estudo das crônicas tardo-<br />
medievais revelou a percepção sobre o fazer histórico, o que em parte nos aproxima<br />
enquanto pesquisadores voltados ao passado, guardados os <strong>de</strong>vidos contextos,<br />
propósitos e distanciamentos. O que queremos afirmar é o nosso interesse pela natureza<br />
da documentação que utilizamos, pois observando o resultado do estudo, notamos as<br />
práticas e objetivos naquela socieda<strong>de</strong>. Em outros termos, a importância <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar o<br />
espaço, a representação e os usos que as crônicas tinham naquele contexto.<br />
Sobre as relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r entre os nobres e a monarquia portuguesa, po<strong>de</strong>mos<br />
enten<strong>de</strong>r um pouco como os anseios e estratégias <strong>de</strong> alguns personagens foram<br />
<strong>de</strong>scritos. Com referência ao monarca Dom João I, percebemos como este, diante <strong>de</strong> um<br />
contexto conturbado, pô<strong>de</strong> ser uma opção dos nobres que procuravam um personagem<br />
disposto a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r seus objetivos, ao mesmo tempo em que aquele se beneficiou com a<br />
formação <strong>de</strong> uma dinastia.<br />
Dentro do reino, a aproximação da casa régia po<strong>de</strong>ria possibilitar a ascensão<br />
social, o que distinguia e produziria benefícios aos envolvidos. A região <strong>de</strong> fronteira,<br />
que tanto po<strong>de</strong>ria trazer perigo e preocupação, po<strong>de</strong>ria ser também um espaço <strong>de</strong>stinado<br />
a novas configurações políticas, <strong>de</strong>spertando interesse naqueles que projetavam um<br />
movimento centrífugo. Neste sentido, o estudo da saída dos portugueses no ultramar<br />
mostrou, diferentemente da interpretação que enfatiza os móveis econômicos e<br />
burgueses, a perspectiva <strong>de</strong> ação pautada na guerra e no simbolismo da Reconquista. E<br />
estes elementos religiosos e militares não <strong>de</strong>vem ser interpretados como alheios do<br />
pensamento dos envolvidos, mas como um traço <strong>de</strong> mentalida<strong>de</strong>, que dividia espaço<br />
com outras expectativas.<br />
Enfim, com esta pesquisa, po<strong>de</strong>mos enten<strong>de</strong>r as estratégias <strong>de</strong> alguns<br />
portugueses que tiveram seus nomes e ações preservadas na memória das crônicas. A<br />
preocupação <strong>de</strong> registrar estes feitos fez com que pudéssemos compreen<strong>de</strong>r os<br />
mecanismos personalistas do reino em questão, e em parte os usos e objetivos das<br />
crônicas naquele contexto.<br />
71
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74
ANEXOS<br />
75
MAPA 1 – PENÍNSULA IBÉRICA E SEUS REINOS NO SÉCULO XV ∗<br />
∗ Mapa adaptado <strong>de</strong> Atlas histórico escolar. Rio <strong>de</strong> Janeiro: CNMD, 1962, p. 78.<br />
76
MAPA 2 – NOROESTE AFRICANO E SUL DA PENÍNSULA IBÉRICA ∗<br />
∗ Mapa <strong>de</strong>senvolvido a partir do programa Google Earth. <strong>2007</strong>. versão 4.0.2742.<br />
77