Marlene Dumas - Fonoteca Municipal de Lisboa
Marlene Dumas - Fonoteca Municipal de Lisboa
Marlene Dumas - Fonoteca Municipal de Lisboa
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Figure in a<br />
Landscape<br />
(Figura numa<br />
paisagem,<br />
2010)<br />
exteriores, “estrangeiras”. Na opinião<br />
da artista, não existiam outros<br />
caminhos: “Vivia inserida numa socieda<strong>de</strong><br />
que não valorizava a pintura<br />
ou que a submetia a um ensino<br />
caduco. Não respondia aos meus<br />
<strong>de</strong>sejos e aspirações. Chegava a sentir-me<br />
culpada por ser uma pintora,<br />
activida<strong>de</strong> que na África do Sul todos<br />
achavam insignificante e não tinha<br />
mo<strong>de</strong>los. Vivia um conflito com<br />
aquilo <strong>de</strong> que gostava. Por isso, criei<br />
a minha própria história pessoal<br />
com o suporte.”<br />
“Contra o Muro” parece retomar<br />
essa velha e difícil relação, reconciliando<br />
a pintora com géneros e temas<br />
como a abstracção que se insinua no<br />
muro <strong>de</strong> “Em Construção” (2009) e<br />
nos blocos azuis <strong>de</strong> “Barreira mentais”<br />
(2009).<br />
“Sempre quis ser uma pintora abstracta,<br />
adorava os expressionistasabstractos,<br />
mas a abstracção não era<br />
suficiente para mim, pois também<br />
queria a realida<strong>de</strong>. Esse foi outro conflito<br />
que experimentei”, conta. O impasse<br />
acabou resolvido, ou pelo menos<br />
atenuado, com o cinema da Nouvelle<br />
Vague. “Não <strong>de</strong>ixo <strong>de</strong> pensar a<br />
pintura enquanto abstracção, enquanto<br />
construção <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong>.<br />
Não pretendo testemunhar a realida<strong>de</strong>,<br />
apenas confrontar-me com ela.<br />
Daí, para mim, nos meus tempos <strong>de</strong><br />
estudante, a importância <strong>de</strong> filmes<br />
como ‘Hiroshima mon amour’, do<br />
Alain Resnais. Combinava uma história<br />
<strong>de</strong> amor, uma dimensão política<br />
ou documental e uma reflexão sobre<br />
a linguagem artística, que naquele<br />
caso se tratava do cinema. Era essa<br />
“Sempre quis ser uma<br />
pintora abstracta,<br />
mas a abstracção não<br />
era suficiente para<br />
mim, pois também<br />
queria a realida<strong>de</strong>.<br />
Não pretendo<br />
testemunhar<br />
a realida<strong>de</strong>, apenas<br />
confrontar-me<br />
com ela”<br />
coexistência que queria encontrar na<br />
pintura”.<br />
Uma arte ou uma pintura que possa<br />
representar, também, o que é estar<br />
apaixonado, como sugeriu numa entrevista?<br />
“Ah [risos], aí queria apenas<br />
mostrar os meus ciúmes em relação<br />
ao cinema e à música pop. Gosto <strong>de</strong><br />
uma arte inteligente, tanto estética<br />
como conceptualmente, mas [que<br />
seja] também sensual e emocional.<br />
Encontro-a em artistas como Luc Tuymans,<br />
Louise Bourgeois, Francis Bacon<br />
ou Steve McQueen.”<br />
O interesse pela representação e a<br />
vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> abordar motivos narrativos<br />
não implicaram um afastamento das<br />
premissas do conceptualismo, abraçadas<br />
no início da carreira. Pelo contrário.<br />
A reflexão sobre as possibilida<strong>de</strong>s<br />
da pintura, e a relação <strong>de</strong>sta com<br />
a fotografia, bem como o questionar<br />
das imagens, foram atitu<strong>de</strong>s cultivadas<br />
e com frequência passadas para o papel<br />
em pequenos textos assinados pela<br />
pintora. O canadiano Jeff Wall, conhecido<br />
pelas suas fotografias <strong>de</strong> situações<br />
do dia-a-dia, foi, nesse sentido,<br />
uma inspiração. “Quando se interroga<br />
sobre o lugar e a condição do pintor<br />
da vida mo<strong>de</strong>rna, e faz do médium<br />
fotográfico um instrumento pictórico,<br />
[o Jeff Wall] enuncia algumas das minhas<br />
preocupações e i<strong>de</strong>ias. [Ele mostrou-me<br />
que] era possível e legítimo<br />
aceitar o <strong>de</strong>safio que certos temas nos<br />
colocam” e, <strong>de</strong>ssa forma, abordar o<br />
“For Whom<br />
the Bell Tolls “<br />
(Por quem os<br />
sinos<br />
dobram), <strong>de</strong><br />
2008<br />
Mortos e vivos, grupos <strong>de</strong><br />
pessoas, bebés, mo<strong>de</strong>los<br />
femininos, mulheres em<br />
lágrimas. A obra <strong>de</strong> <strong>Marlene</strong><br />
<strong>Dumas</strong> é uma galeria <strong>de</strong> figuras,<br />
corpos e rostos, construída<br />
através da pintura e do <strong>de</strong>senho,<br />
num confronto repetido com<br />
o conceito <strong>de</strong> retrato e com o<br />
próprio espectador.<br />
Um mundo <strong>de</strong> retratos<br />
Na obra <strong>de</strong> <strong>Marlene</strong> <strong>Dumas</strong>, o retrato não é apenas um motivo para levar a realida<strong>de</strong> à tela ou ao papel. É também um meio<br />
<strong>de</strong> questionar a construção <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, a empatia do espectador e a própria pintura.<br />
Em “Contra o Muro” há uma<br />
série que se <strong>de</strong>staca nesse<br />
confronto: “Man Kind”, com os<br />
seus anónimos homens árabes,<br />
sob os títulos <strong>de</strong> “The Semite”,<br />
“The Mediator” (um Cristo<br />
tímido ou indiferente?) ou “The<br />
Lookalike”. São pinturas a óleo<br />
<strong>de</strong> um mundo pós-11 <strong>de</strong> Setembro<br />
– as imagens originais reportam<br />
à guerra no Iraque e em Gaza<br />
– e propõem mais do que uma<br />
posição política, propõem um<br />
questionamento da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
privada e pública. Ou não fossem<br />
rostos abertos ao sentido, nesse<br />
espaço <strong>de</strong> tensão psicológica que<br />
é superfície pintada segundo<br />
<strong>Marlene</strong> <strong>Dumas</strong>.<br />
Em 1986, no conjunto <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>senhos e litografias “Fear<br />
of Babies”, a artista quebrou a<br />
familiar docilida<strong>de</strong> dos bebés<br />
em esgares inquietantes, antes<br />
<strong>de</strong> regressar ao tema, cinco<br />
anos <strong>de</strong>pois, com “The First<br />
People I-V” (1991), retratando<br />
querubins em poses adultas,<br />
rectas e frontais. No início dos<br />
anos 90, foi a vez dos “Black<br />
Drawings [Desenhos negros]”,<br />
e, pela primeira vez, <strong>Dumas</strong> fez<br />
Propõe-se mais do<br />
que uma posição<br />
política, propõe-se<br />
um questionamento<br />
da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
privada e pública<br />
das pessoas negras assunto da<br />
sua obra. Em diferentes tons <strong>de</strong><br />
preto, sobre papel, cada rosto<br />
numa folha à espera da empatia<br />
do espectador.<br />
Depois da representação<br />
do medo e dos rostos negros,<br />
o <strong>de</strong>sejo e a pornografia com<br />
“Porno as Collage (1993) e<br />
“Porno Blues” (1993), grupos<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>senhos feitos a partir<br />
fotografias <strong>de</strong> revistas<br />
pornográficas. O traço,<br />
levemente expressionista,<br />
compunha corpos anónimos<br />
em actos sexuais e que se<br />
aproximavam da abstracção.<br />
Nos anos seguintes, chegou o<br />
erotismo com “Group Show”<br />
(1994) ou “We Were All All in<br />
Love with Cyclopes (1997)”,<br />
obras inspiradas em fotografias<br />
<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los femininos.<br />
A vida pessoal acaba<br />
igualmente transportada<br />
para a pintura. Em “The First<br />
People I-V” – <strong>Marlene</strong> <strong>Dumas</strong><br />
foi mãe pouco antes iniciar este<br />
trabalho – e sobretudo em “The<br />
Eyes of Night Creatures”, uma<br />
série <strong>de</strong> 16 telas, on<strong>de</strong> reuniu<br />
imagens encontradas em<br />
revistas e polarói<strong>de</strong>s <strong>de</strong> amigos,<br />
familiares e conhecidos. São<br />
retratos <strong>de</strong> rostos, por <strong>de</strong>trás<br />
dos quais não há nada para<br />
ver: o palco pertence às faces,<br />
aos olhares, à pintura na sua<br />
dimensão mais “autoritária” e<br />
sensual. É o que acontece noutra<br />
série revelada no Museu <strong>de</strong><br />
Serralves: a das mulheres que<br />
choram, em “For Whom the Bell<br />
Tolls”, “Selfportrait at Noon”<br />
ou “Crying at Public”. Mais do<br />
que a realida<strong>de</strong> do sofrimento<br />
humano, a artista evoca a<br />
realida<strong>de</strong>, a dimensão física e<br />
interior da pintura. Com que o<br />
espectador se confronta.<br />
“Living on<br />
your Knees”<br />
(A vida <strong>de</strong><br />
joelhos), <strong>de</strong><br />
2010<br />
10 • Sexta-feira 9 Julho 2010 • Ípsilon