Marlene Dumas - Fonoteca Municipal de Lisboa
Marlene Dumas - Fonoteca Municipal de Lisboa
Marlene Dumas - Fonoteca Municipal de Lisboa
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
O que propõe<br />
é uma reflexão<br />
do papel do<br />
espectador, da sua<br />
responsabilida<strong>de</strong><br />
em trabalhar<br />
com aquilo que lhe<br />
é apresentado, não se<br />
colocando à margem?<br />
Exactamente. Quando fiz “Homem<br />
por Homem” houve pessoas que saíram<br />
e me disseram que era complicado,<br />
perguntaram-me o que <strong>de</strong>viam<br />
pensar. Foi a primeira vez que me irritei<br />
a sério. “Que quer Galy Gay? Ele<br />
quer ser outro homem, ele quer ser<br />
um monstro?”, disseram-me. “Atenção,<br />
tens o direito <strong>de</strong> reflectir”, respondi.<br />
Estamos numa época on<strong>de</strong> o<br />
teatro, pelo texto — e falo por mim<br />
que não sou coreógrafo, não sou artista<br />
visual, e preciso do texto, não o<br />
sei fazer <strong>de</strong> outra forma — me permite<br />
interrogar o outro sobre o que eu<br />
penso que po<strong>de</strong> ser importante. Ou<br />
então dizemos que Horvath não tem<br />
interesse, nem Ionesco, nem Brecht,<br />
e que as questões que eles colocam<br />
não são pertinentes.<br />
Seria necessário encontrar<br />
autores contemporâneos que<br />
trabalhassem sobre os mesmos<br />
temas com um ponto <strong>de</strong> vista<br />
diferente.<br />
Mas essa questão do lugar do espectador<br />
face a essas imagens está no<br />
modo como o espectáculo é construído,<br />
nesse lugar que é o teatro-edifício.<br />
E isso é o mais importante. Às<br />
vezes saio e penso que os espectadores<br />
não estavam lá. Não quero ser<br />
dogmático mas se isso persistir, esse<br />
abaixamento do nível <strong>de</strong> exigência,<br />
então será o político que vai ganhar<br />
na discussão do lugar da arte na socieda<strong>de</strong>.<br />
E o papel do espectador é<br />
fundamental. É preciso um pouco <strong>de</strong><br />
arrojo.<br />
Discutem-se apenas as formas, mas<br />
poucas vezes o sentido. Não estou a<br />
falar da qualida<strong>de</strong> artística, mas do<br />
<strong>de</strong>bate artístico.<br />
Isso porque as pessoas têm uma<br />
memória <strong>de</strong> peixe...?<br />
Sim, é por isso que monto estas peças,<br />
porque tenho a impressão que as pessoas<br />
ficam surpresas quando se fala<br />
<strong>de</strong> crise, que se esquecem que houve<br />
uma II Guerra Mundial, que a Shoah<br />
aconteceu. Paremos. Um pouco <strong>de</strong><br />
dignida<strong>de</strong>, por favor. Há escolhas difíceis<br />
a fazer e <strong>de</strong>vem ser difíceis — se<br />
forem fáceis não são importantes.<br />
A escolha pe<strong>de</strong>-nos uma<br />
posição?<br />
Sim, uma posição que vai criar contrastes<br />
e dificulda<strong>de</strong>s em cada um. As<br />
coisas discutem-se. A televisão impõe<br />
a ausência <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> individual,<br />
mas a escolha <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>finida pelas<br />
dificulda<strong>de</strong>s. Quando Bérenger diz<br />
em “Rinoceronte”, que não po<strong>de</strong> ser<br />
um rinoceronte, quer mas não po<strong>de</strong>,<br />
isso interessa-me. Se uma pessoa diz<br />
que não po<strong>de</strong> ser racista ou anti-semita<br />
em vez <strong>de</strong> dizer que não o quer<br />
ser, essa é uma escolha moral. E, aí,<br />
preciso <strong>de</strong> um autor que trabalhe isto<br />
<strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, e estes autores tiveram<br />
tempo <strong>de</strong> as pensar.<br />
Há uma distância temporal em<br />
relação ao texto que nos permite<br />
i<strong>de</strong>ntificar esse tratamento dado<br />
ao pensamento.<br />
Sim. Por vezes gosto que as coisas não<br />
sejam completamente realistas, e que<br />
existam formas que quando as vemos<br />
não resultem numa discussão natu-<br />
Casimiro<br />
e Carolina<br />
De Odon von Horvath<br />
Encenação <strong>de</strong> Emmanuel<br />
Demarcy-Mota<br />
6ª, 9, no Teatro S. João<br />
Dias 15 e 16 no Teatro<br />
D. Maria II<br />
ralista e teatral. É<br />
isso que procuro.<br />
Há um natural no<br />
teatro?<br />
Não. Preciso que as coisas<br />
tenham uma forma.<br />
Quando aos 18 anos vi “O Sétimo<br />
Selo”, do Bergman, ou os filmes<br />
do Visconti, estava perante uma<br />
“mise-en-forme”, mas hoje o que se<br />
discute é o gosto, a estética. Há espectáculos<br />
dos quais gosto imenso mas<br />
que <strong>de</strong>testo. Gosto da forma mas não<br />
gosto da estética, porque reconheço<br />
a intenção. Que pluralida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sentido<br />
são pesquisadas? À força <strong>de</strong> se<br />
criarem etiquetas, como em Avignon<br />
— teatro-dança, teatro-texto, teatropoema,<br />
teatro-visual —, quando é só<br />
teatro parece uma coisa jurássica, são<br />
dinossauros. Quando Clau<strong>de</strong> Régy<br />
faz isso [com “O<strong>de</strong> Marítima”], fá-lo<br />
porque tem 85 anos, mas se tivesse<br />
40 ia ter um problema. Escolher fazer<br />
Régy para 600 pessoas no Théâtre <strong>de</strong><br />
la Ville é um acto político, porque não<br />
é uma peça, é um poema que as pessoas<br />
conhecem mal — mesmo em Portugal,<br />
on<strong>de</strong> todos dizem ter lido Pessoa<br />
mas não o leram realmente —, que<br />
merece 600 pessoas e não 200. Tenho<br />
a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o fazer, não<br />
apenas como encenador, mas como<br />
director <strong>de</strong>sse teatro. Houve sete mil<br />
pessoas na Place du Châtelet que o<br />
viram, em Avignon foram quatro mil.<br />
Como fazer o nosso trabalho, então?<br />
Devemos respon<strong>de</strong>r às coisas, <strong>de</strong>vemos<br />
ser responsáveis — adoro essa<br />
palavra.<br />
A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> ritual, que o<br />
teatro carregou, é algo que<br />
lhe interessa? Olhando para<br />
algumas das imagens que cria,<br />
fica a sensação <strong>de</strong> estarmos<br />
perante quadros, <strong>de</strong> encenações<br />
ritualistas. E, no entanto, parece<br />
haver uma proximida<strong>de</strong> ao ritual<br />
que <strong>de</strong>pois nos leva para outra<br />
zona, menos clara.<br />
Po<strong>de</strong>ria dizer que isso não me interessa,<br />
mas é isso. Há um ritual profundo<br />
na pintura, por exemplo, cujos<br />
ecos das minhas influências pictóricas<br />
estão presentes, <strong>de</strong> Rembrant a Brueghel,<br />
autores que tinham uma gran<strong>de</strong><br />
liberda<strong>de</strong> e que explodiram com a<br />
imagem. Mas não quero fazer crer que<br />
há um ritual. É um artificio que não<br />
me interessa e falseia as coisas porque<br />
as legitima <strong>de</strong> forma errada. Vejo teatro<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os cinco anos. Tirar os sapatos<br />
antes <strong>de</strong> subir ao palco, como<br />
na tenda da Ariane Mnouchkine, fazer<br />
as pessoas esperar à porta do Théâtre<br />
<strong>de</strong>s Bouffes du Nord para que se veja<br />
que há um ritual, são rituais que estão<br />
já <strong>de</strong>sconstruídos e <strong>de</strong>scodificados,<br />
para mim. Isso não me interessa. É<br />
muito claro que é preciso uma distância<br />
para se ser verda<strong>de</strong>iro, e que é<br />
isso que dá a liberda<strong>de</strong>. É preciso criar<br />
formas para as coisas aparecerem, e<br />
digo-o tanto em relação ao futuro do<br />
teatro como ao seu sentido actual.<br />
Mas é verda<strong>de</strong> que não é o discurso<br />
contemporâneo que me interessa. Há<br />
uma ritualização, sim, mas não a fabricação<br />
<strong>de</strong> um ritual. É preciso ir<br />
mais longe, o ritual existe <strong>de</strong>pois, não<br />
é antes, não se convoca um ritual. É<br />
uma questão muito pessoal, muito<br />
profunda, que dita também uma forma<br />
<strong>de</strong> fazer um espectáculo, <strong>de</strong> preparar<br />
uma peça.<br />
O Ípsilon viajou a convite do Festival <strong>de</strong><br />
Teatro <strong>de</strong> Almada<br />
VINCENT KESSLER/REUTERS<br />
Enigmática, distante e<br />
fria são i<strong>de</strong>ias que se<br />
colaram ao corpo e ao<br />
rosto — mas sobretudo<br />
à figura — <strong>de</strong> Charlotte<br />
Rampling, actriz<br />
<strong>de</strong> “O Porteiro da Noite”<br />
(1974, Liliana Cavani),<br />
“Os Malditos” (1969,<br />
Luchino Visconti) ou “Max,<br />
mon amour” (1986, Nagisa Oshima).<br />
Chega ao Porto e a <strong>Lisboa</strong> por<br />
via do Festival <strong>de</strong> Teatro <strong>de</strong> Almada,<br />
com uma peça que não é, pelo menos<br />
Charlot<br />
São raras e recentes as experiências teatrais d<br />
provoque”, diz, nesta entrevista, em que <strong>de</strong>ixa q<br />
Yourcenar/<br />
Cavafy<br />
Encenação <strong>de</strong> Jean-<br />
Clau<strong>de</strong> Feugnet, dia 16 <strong>de</strong><br />
Julho no Teatro Nacional<br />
S. João, dias 17 e 18 no<br />
Teatro Nacional<br />
D. Maria II.<br />
para ela, um espectáculo, mas “um<br />
encontro” entre<br />
Marguerite<br />
Yourcenar e<br />
nos Constanti-<br />
Cava-<br />
fy, conduzido pela força das palavras<br />
<strong>de</strong>stas duas figuras.<br />
A sua experiência no teatro é bastante<br />
mais reduzida e recente: “La<br />
Fause Suivante”, <strong>de</strong> Marivaux, por<br />
Martin Crimp, “A Dança da Morte”,<br />
<strong>de</strong> Strindberg, e “Pequenos<br />
Crimes Conjugais”, <strong>de</strong> Eric-Emmanuel<br />
Schmitt, são escolhas que reflectem<br />
essa procura <strong>de</strong> um encontro<br />
com personagens, mais do que<br />
uma carreira. Tal como o disco<br />
“Comme Une Femme” (2002), on<strong>de</strong><br />
as letras falam <strong>de</strong> uma mulher que<br />
se pergunta quem é, e <strong>de</strong>ixa que se<br />
confunda actriz, personagem e mu-<br />
lher.<br />
Ao longo do seu percurso, tem<br />
interpretado personagens<br />
fortes, mesmo se fictícias. Como<br />
foi entrar nos universos, reais,<br />
<strong>de</strong> Marguerite Yourcenar e<br />
Contantinos Cavafy, também<br />
eles figuras com personalida<strong>de</strong>s<br />
marcantes?<br />
São, efectivamente, personagens for-<br />
tes e é necessário encontrar um modo<br />
<strong>de</strong> as trabalhar a partir das palavras<br />
escritas do autor. De qualquer forma,<br />
e no caso específico <strong>de</strong> “Yourcenar/<br />
Cavafy”, não se trata <strong>de</strong> interpretar<br />
uma personagem, mas, através da<br />
récita dos seus textos, fazê-la viver e<br />
evoluir a partir do que escreveu<br />
e ir<br />
mais além.<br />
Vendo os filmes que interpretou,<br />
é característica uma distância<br />
entre a personagem e a actriz.<br />
Especulou-se que essa seria uma<br />
característica biográfica sua.<br />
Mas o que acontece quando o<br />
que se lhe pe<strong>de</strong> é para se colocar<br />
ao serviço <strong>de</strong> uma figura<br />
real, ela própria com uma<br />
biografia, e num exercício<br />
que exige ao actor um<br />
<strong>de</strong>spojamento da sua<br />
própria vida?<br />
Para mim, o que é interes-<br />
sante é o modo como o<br />
faço.<br />
E faço-o interpretando os<br />
dois papéis ao mesmo<br />
tempo, o da actriz e<br />
o da<br />
personagem. Quando<br />
interpreto, invisto em<br />
mim m e na persona-<br />
gem e isso emana<br />
da força das<br />
pala-<br />
vras <strong>de</strong> Yource-<br />
nar. São essas<br />
palavras que<br />
alimentam<br />
essa i<strong>de</strong>ia e<br />
constro-<br />
em<br />
um<br />
universo<br />
on<strong>de</strong> o<br />
possa fa-<br />
zer.<br />
Um<br />
universo<br />
que se<br />
sustenta<br />
numa<br />
pesquisa, ou<br />
uma procura<br />
constante, certo?<br />
Sim, a poesia é uma<br />
pes-<br />
quisa emocional absoluta,<br />
a literatura também. São<br />
via-<br />
30 • Sexta-feira 9 Julho 2010 • Ípsilon