Marlene Dumas - Fonoteca Municipal de Lisboa
Marlene Dumas - Fonoteca Municipal de Lisboa
Marlene Dumas - Fonoteca Municipal de Lisboa
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
A pintura, a fotografia<br />
e o efeito Tuymans<br />
Embora próxima das motivações <strong>de</strong> outros artistas que<br />
utilizaram a fotografia enquanto material da pintura, como<br />
Luc Tuymans, <strong>Marlene</strong> <strong>Dumas</strong> não dispensa o gestualismo e<br />
a dimensão física do acto <strong>de</strong> pintar.<br />
quotidiano sem produzir imagens anedóticas<br />
ou propaganda.<br />
Pensar as imagens<br />
com a pintura<br />
O gesto porém acarretou críticas, algumas<br />
dirigidas à técnica <strong>de</strong> <strong>Dumas</strong>.<br />
“Há pintores acham que sou uma má<br />
pintora. Dizem que a minha pintura<br />
não tem ‘pintura’ suficiente. Mas para<br />
mim tem sido um <strong>de</strong>safio fazê-la<br />
com meios mínimos. Talvez seja melhor<br />
<strong>de</strong>senhadora que pintora. Aliás,<br />
as minhas melhores pinturas são como<br />
<strong>de</strong>senhos. Estou mais próxima do<br />
Picasso do que do Matisse.”<br />
Outra crítica (injusta) tem a ver com<br />
a selecção das imagens fotográficas<br />
que antece<strong>de</strong> o trabalho sobre a tela.<br />
“Faço-a <strong>de</strong>s<strong>de</strong> jovem, sempre gostei<br />
<strong>de</strong> imagens. É um método e um gosto<br />
que partilhei com o Richard Prince e<br />
a Barbara Kruger e outros artistas da<br />
Pictures Generation. Mas, talvez por<br />
ter ficado na Europa, não <strong>de</strong>senvolvi<br />
a mesma atracção pela publicida<strong>de</strong> e<br />
o <strong>de</strong>sign que eles.”<br />
Data <strong>de</strong>ste período um certo afastamento<br />
<strong>de</strong> <strong>Marlene</strong> <strong>Dumas</strong> <strong>de</strong> práticas<br />
e processos como a apropriação, a colagem<br />
e o uso do texto, que havia experimentado<br />
entre os anos 70 e 80 do<br />
século XX. “Quando fiz as primeiras<br />
pinturas <strong>de</strong> cabeças e rostos, em meados<br />
da década <strong>de</strong> 80, quis logo pôr o<br />
título por baixo da tela [risos]. Não sei<br />
o que teria acontecido se tivesse ido<br />
para Nova Iorque. Se calhar, tinha ficado<br />
parecida com a arte do John Bal<strong>de</strong>ssari<br />
ou da Barbara Kruger”. E isso<br />
seria mau? “Não sei, havia ali um formalismo<br />
<strong>de</strong>masiado frio e rígido,<br />
quando eu queria o calor, a emoção<br />
da pintura dos loucos ou do expressionismo-abstracto.<br />
Mas a reflexão<br />
sobre as imagens sempre me interessou<br />
e continua a interessar-me. Por<br />
exemplo, que tipo <strong>de</strong> imagem é hoje<br />
a do homem mais temido? O rosto do<br />
‘criminoso’? Aquele que tememos? É<br />
o muçulmano, como há sessenta anos<br />
era o negro. Quero fazer uma pintura<br />
tradicional, ‘parecida’ com a do século<br />
XIX, mas também quero pensar a<br />
forma como as imagens influenciam<br />
o nosso pensamento.”<br />
Tornemos à natureza-morta, género<br />
que durante décadas <strong>Dumas</strong> se<br />
recusou a pintar e que em “Contra o<br />
Muro” está representado em “Carida<strong>de</strong>”<br />
(2010), “As Vinhas da Ira”<br />
(2009) e “As Vinhas da Abundância”<br />
(2009). “Quando era estudante, <strong>de</strong>testava-o.<br />
Não significava nada para<br />
mim. Era uma coisa burguesa, ‘kitsch’,<br />
sem valor. Uma composição com<br />
a qual não conseguia lidar. Mais tar<strong>de</strong><br />
apercebi-me que não era minha inimiga.<br />
Lembro-me <strong>de</strong> ver, num catálogo,<br />
uma natureza-morta com três<br />
pedaços <strong>de</strong> salmão [“Tres rodajas <strong>de</strong><br />
salmón”]. Era uma pintura do Goya<br />
(1746 – 1828), muito simples, com todos<br />
os elementos formais do género,<br />
muito comovente. E percebi que era<br />
possível fazer naturezas-mortas com<br />
a mesma força e emoção”.<br />
Uma reconciliação, portanto?<br />
“Quando somos jovens artistas queremos<br />
fazer sempre coisas diferentes,<br />
novas, mas à medida que envelhecemos,<br />
se tivermos sorte, aquilo que procuramos,<br />
por vezes inconscientemente,<br />
surge <strong>de</strong> uma forma inesperada”.<br />
Assim, também se <strong>de</strong>itam abaixo<br />
(velhos) muros.<br />
Em cima,<br />
“Charity “<br />
(Carida<strong>de</strong>), <strong>de</strong><br />
2010, <strong>de</strong><br />
<strong>Marlene</strong><br />
<strong>Dumas</strong>; em<br />
baixo, “Tres<br />
rodajas <strong>de</strong><br />
salmón (1808-<br />
12), <strong>de</strong> Goya,<br />
que inspirou<br />
<strong>Dumas</strong> a<br />
trabalhar o<br />
tema da<br />
naturezamorta<br />
<strong>Marlene</strong> <strong>Dumas</strong> não é a primeira<br />
artista a usar a fotografia como<br />
mo<strong>de</strong>lo ou alimento principal<br />
da pintura. No primeiro caso,<br />
existiram antes Van Gogh ou<br />
Degas, no segundo, Gerhard<br />
Richter. Também não está<br />
sozinha na resposta à apregoada<br />
dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> pintura em<br />
expressar as “verda<strong>de</strong>s” do<br />
seu tempo. Lembre-se (outra<br />
vez) Richter, mas também Luc<br />
Tuymans, Wilhelm Sasnal,<br />
Eberhard Havekost ou Peter<br />
Doig e, no contexto português,<br />
Bruno Pacheco, Diogo Pimentão<br />
e Carlos Correia.<br />
Será no entanto justo afirmar<br />
que, nessa <strong>de</strong>manda, a pintora<br />
encontrou o seu território. Como<br />
alguns dos nomes referidos,<br />
negou e aceitou a pintura, foi<br />
influenciada por Luc Tuymans<br />
e fez da imagem fotográfica<br />
(encontrada ou produzida<br />
originalmente) um campo <strong>de</strong><br />
experimentação que esten<strong>de</strong><br />
as possibilida<strong>de</strong>s formais<br />
e conceptuais da prática<br />
pictórica.<br />
Mas a sua assinatura<br />
dificilmente po<strong>de</strong> ser associada<br />
ao conjunto <strong>de</strong> artistas que<br />
Jordan Kantor agregou no artigo<br />
“O Efeito Tuymans”, publicado<br />
em 2004 na revista americana<br />
Artforum. Faltam à pintura <strong>de</strong><br />
<strong>Dumas</strong> alguns dos aspectos<br />
i<strong>de</strong>ntificados pelo crítico e<br />
ensaísta: as cores pálidas,<br />
o trabalho com as imagens<br />
em movimento da televisão<br />
e do cinema (e não apenas<br />
com os “stills” dos filmes) e,<br />
principalmente, falta á pintura<br />
<strong>de</strong> <strong>Dumas</strong> a indiferença violenta<br />
que caracteriza a obra do artista<br />
belga. Em comum, permanecem<br />
somente certos temas que<br />
remetem para a cultura e<br />
história europeias, embora<br />
sem a presença espectral das<br />
telas <strong>de</strong> Sasnal ou Tuymans. O<br />
que sobressai nesse encontro<br />
da pintora com a fotografia<br />
é antes um gestualismo que<br />
distorce e satura as formas – um<br />
trabalho físico diante da tela<br />
como se fosse uma dança – e<br />
uma atracção pela superfície<br />
plana da imagem fotográfica.<br />
Cores, expressão, sensualida<strong>de</strong>,<br />
empatia e excesso em vez <strong>de</strong><br />
uma impenetrabilida<strong>de</strong> suave e<br />
congelada.<br />
A propósito das relações<br />
entre a fotografia e pintura, a<br />
artista discorre: “Não digo que,<br />
usando a fotografia, a pintura<br />
inventa uma realida<strong>de</strong> superior<br />
à fotografia ou que torna a<br />
fotografia melhor. Eu limito-me<br />
a usar a fotografia, gosto da sua<br />
bidimensionalida<strong>de</strong>, do facto<br />
<strong>de</strong> ser plana. Não me interessa<br />
a tridimensionalida<strong>de</strong>”. E<br />
profetiza: “A pintura vai<br />
continuar como uma forma<br />
artística, como forma <strong>de</strong><br />
expressão visual. Será um pouco<br />
tradicional, quase primitiva,<br />
mas vai ficar entre nós. E vai<br />
continuar porque estamos<br />
cheios <strong>de</strong> ecrãs. Nas televisão,<br />
nos computadores. Estão em<br />
todo o lado”.<br />
Petrus &<br />
Paulus (1998),<br />
<strong>de</strong> Luc<br />
Tuymans<br />
Ípsilon • Sexta-feira 9 Julho 2010 • 11