Marlene Dumas - Fonoteca Municipal de Lisboa
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Livros<br />
“O Original <strong>de</strong> Laura”, publicado<br />
agora em português, é o texto<br />
que Nabokov redigiu nos<br />
últimos dois ou três anos da sua<br />
vida<br />
Ficção<br />
O rascunho<br />
Nabokov or<strong>de</strong>nou à sua<br />
viúva que <strong>de</strong>struísse o<br />
manuscrito <strong>de</strong> “O Original<br />
<strong>de</strong> Laura”. Em vez disso, ela<br />
guardou-o num banco suíço.<br />
Gustavo Rubim<br />
O Original <strong>de</strong> Laura<br />
Vladimir Nabokov<br />
Tradução Telma Costa<br />
Teorema<br />
mmmmn<br />
O que há <strong>de</strong> mais<br />
precioso neste livro<br />
é a parte<br />
fotográfica.<br />
Construído segundo<br />
o mo<strong>de</strong>lo da edição<br />
original norteamericana<br />
(Novembro <strong>de</strong><br />
2009), o volume reproduz à<br />
dimensão <strong>de</strong> meia página as fichas<br />
<strong>de</strong> cartão on<strong>de</strong> Nabokov foi<br />
escrevendo um texto que projectava<br />
intitular “O Original <strong>de</strong> Laura”. Na<br />
meta<strong>de</strong> inferior das páginas vem a<br />
tradução exclusivamente do<br />
rascunho fotografado em cima,<br />
frente ou verso <strong>de</strong> uma ficha, a<br />
maior parte das vezes fazendo parte<br />
ou <strong>de</strong> um capítulo numerado ou <strong>de</strong><br />
uma série com título (“Wild”,<br />
“Dedos dos Pés”, “Aurora”, por<br />
exemplo).<br />
Trata-se, claro está, <strong>de</strong> uma<br />
solução <strong>de</strong> compromisso. Editar um<br />
rascunho, que o autor<br />
expressamente or<strong>de</strong>nou que fosse<br />
<strong>de</strong>struído caso não ficasse acabado à<br />
hora da sua morte, obriga a estas<br />
habilida<strong>de</strong>s. O habilidoso, neste<br />
caso, foi o filho <strong>de</strong> Vladimir (que<br />
morreu em 1977): Dmitri Nabokov,<br />
<strong>de</strong> quem se po<strong>de</strong>rá dizer tudo<br />
menos que não seja servidor<br />
<strong>de</strong>votado da obra <strong>de</strong> seu pai. A<br />
polémica à volta da publicação <strong>de</strong><br />
“O Original <strong>de</strong> Laura” apenas o<br />
confirma.<br />
Mas qual é então o interesse<br />
<strong>de</strong>stas fichas fac-similadas que<br />
Vladimir Nabokov foi redigindo nos<br />
últimos dois ou três anos da sua<br />
vida?<br />
Seguramente não o <strong>de</strong> revelar<br />
uma obra inédita ou, como inculca a<br />
badana, “o gran<strong>de</strong> livro final” do<br />
autor <strong>de</strong> “Lolita”. Não é também<br />
claro que as 138 fichas<br />
correspondam a um “romance em<br />
fragmentos”, frágil classificação <strong>de</strong><br />
género que vem na capa da edição<br />
Knopf e acertadamente <strong>de</strong>saparece<br />
nas traduções francesa e<br />
portuguesa. Afirmar pedantemente,<br />
como fez Martin Amis num artigo<br />
para o “Guardian”, que o texto é “<strong>de</strong><br />
imediato reconhecível como um<br />
conto mais longo que luta para se<br />
transformar numa novela” é só outra<br />
maneira <strong>de</strong> fugir às evidências, ou<br />
seja, àquilo que nas fichas aparece e<br />
que na literatura é o mais difícil <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>screver: a própria escrita.<br />
O melhor sinal <strong>de</strong>ssa evidência da<br />
escrita é uma folha quadriculada,<br />
aqui posta na portada do livro e no<br />
fim da série <strong>de</strong> fichas pautadas. Lêse<br />
nela uma série vertical <strong>de</strong> sete<br />
verbos ingleses que Telma Costa, a<br />
tradutora, converte nos seguintes<br />
verbos em português: “apagar,<br />
erradicar, suprimir, anular, <strong>de</strong>lir,<br />
limpar, obliterar” (o primeiro é<br />
“efface”). Não passa <strong>de</strong> uma lista <strong>de</strong><br />
sinónimos e no entanto olha-se para<br />
ela como se equivalesse <strong>de</strong> algum<br />
modo à or<strong>de</strong>m que Nabokov <strong>de</strong>u à<br />
sua viúva, Vera: <strong>de</strong>struir o<br />
manuscrito (em vez disso, ela<br />
guardou-o num banco suíço).<br />
Porque é o género <strong>de</strong> verbos (e <strong>de</strong><br />
atos) que se aplica muito bem ao que<br />
se escreve. Mas também porque o<br />
esqueleto <strong>de</strong> história que o rascunho<br />
constrói tem a ver com a escrita <strong>de</strong><br />
um livro chamado “Laura”, que<br />
ten<strong>de</strong> a apagar-se ou a anular-se<br />
perante o original da protagonista,<br />
ou seja, uma mulher chamada<br />
“Flora”.<br />
Esta mulher, no entanto, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as<br />
primeiras linhas em que aparece,<br />
tem tendência para se converter em<br />
livro. Descrita numa cena <strong>de</strong> sexo,<br />
diz o narrador: “Só i<strong>de</strong>ntificando-a<br />
com um não-escrito, meio escrito,<br />
reescrito livro difícil se po<strong>de</strong> enfim<br />
aspirar a conseguir o que as<br />
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
<strong>de</strong>scrições contemporâneas do coito<br />
tão raramente transmitem (...)”.<br />
Mais adiante, sabemos que Flora na<br />
pré-adolescência ficava muitas vezes<br />
sozinha em casa com um<br />
“charmeur” chamado Hubert H.<br />
Hubert e aí a conversão literária <strong>de</strong><br />
Flora em Lolita torna-se inevitável<br />
apesar <strong>de</strong> todas as diferenças que<br />
separam Humbert Humbert, herói e<br />
narrador do romance <strong>de</strong> 1955, <strong>de</strong>ste<br />
“macho velho, meigo mas<br />
malcheiroso e ‘afoito’”. O nome<br />
produz os seus efeitos e o original <strong>de</strong><br />
“Laura” per<strong>de</strong>-se noutro livro (que<br />
é, em gran<strong>de</strong> parte, uma história <strong>de</strong><br />
origens perdidas).<br />
Do que o rascunho dá documento<br />
vivo é <strong>de</strong>ssa característica alusiva e<br />
entremeada da prosa <strong>de</strong> Nabokov no<br />
processo <strong>de</strong> se compor. O que resta<br />
do capítulo quatro narra a morte da<br />
mãe <strong>de</strong> Flora, que no início é Mrs.<br />
Lanskaya e no meio, <strong>de</strong>z linhas <strong>de</strong><br />
ficha abaixo, já é “‘Landskaya’ —<br />
‘land’ e ‘sky’, terra e céu e o eco<br />
melancólico do seu nome<br />
dançante.”<br />
Se há coisa que “O Original <strong>de</strong><br />
Laura” não é <strong>de</strong> certeza é o mero<br />
esboço <strong>de</strong> uma história mais ou<br />
menos sugestiva, que se <strong>de</strong>va avaliar<br />
pela soli<strong>de</strong>z do enredo ou pela<br />
verosimilhança psicológica das<br />
personagens, ainda que só<br />
adivinhadas. Como sempre acontece<br />
quando um texto dá acesso à escrita,<br />
é da literatura que se trata nestas<br />
linhas em que um livro está no<br />
centro dos acontecimentos. São<br />
linhas que falam do modo como na<br />
escrita se <strong>de</strong>sfaz aquilo que ela<br />
mesma inventa: “O ‘Eu’ do livro é<br />
um homem <strong>de</strong> letras neurótico e<br />
hesitante, que <strong>de</strong>strói a sua amante<br />
no acto <strong>de</strong> a retratar.”<br />
Esse mesmo “eu” emprega-se<br />
<strong>de</strong>pois num processo <strong>de</strong> autoeliminação<br />
que consiste em apagar<br />
mentalmente, <strong>de</strong> baixo para cima, a<br />
linha vertical do pronome pessoal<br />
inglês “I”. Recomenda-se a atenta<br />
leitura <strong>de</strong>ssas páginas apenas<br />
rascunhadas àqueles que ten<strong>de</strong>m,<br />
<strong>de</strong> modo quase maníaco, a não ler<br />
nos textos senão o que julgam já<br />
saber sobre quem os escreveu.<br />
O casal<br />
Publicado em 1987, “Morrem<br />
Mais <strong>de</strong> Mágoa” é a autópsia<br />
<strong>de</strong>sse apurado exemplar que<br />
é o homem refinadamente<br />
educado no século XX.<br />
Helena Vasconcelos<br />
Morrem Mais <strong>de</strong> Mágoa<br />
Saul Bellow<br />
Tradução Lucília Filipe<br />
Quetzal<br />
mmmmm<br />
Se Darwin tivesse lido Saul Bellow<br />
CHRISTOPHER FELVER/CORBIS<br />
Bellow, malabarista da palavra, conta<br />
histórias com um mínimo <strong>de</strong> acção<br />
e o máximo <strong>de</strong> referências filosóficas<br />
e literárias<br />
ficaria<br />
provavelmente<br />
intrigado com a<br />
forma como o autor<br />
<strong>de</strong> “Morrem Mais <strong>de</strong><br />
Mágoa”, romance<br />
<strong>de</strong> 1987, se <strong>de</strong>dica a<br />
autopsiar, mais uma<br />
vez, esse apurado<br />
exemplar que é o homem<br />
refinadamente educado do século<br />
XX. Des<strong>de</strong> os longínquos anos 40,<br />
quando publicou “Dangling Man”,<br />
que o gran<strong>de</strong> escritor canadiano —<br />
naturalizado americano — foi<br />
analisando as crises <strong>de</strong> meia-ida<strong>de</strong><br />
em homens ju<strong>de</strong>us cultos e<br />
sofisticados, a braços com paixões<br />
contraditórias, casamentos<br />
frustrados, divórcios complexos e<br />
avanços alarmantes (mas<br />
ansiosamente <strong>de</strong>sejados) <strong>de</strong><br />
mulheres impetuosas e sensuais. Ao<br />
revelar a fragilida<strong>de</strong> e os tormentos<br />
por que passam intelectuais<br />
aparentemente sólidos que, à<br />
partida, se apresentam como<br />
exemplos <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong><br />
evolução civilizacional vitorioso e<br />
bem sucedido, Bellow retrata a<br />
frustração do “homem mo<strong>de</strong>rno”<br />
confrontado com situações que já<br />
não sabe controlar porque lhe<br />
falham o instinto e a cautela<br />
ancestrais.<br />
Em “Morrem Mais <strong>de</strong> Mágoa” (o<br />
título elegíaco contradiz o tom<br />
cómico e picaresco da narrativa),<br />
Bellow junta dois professores que,<br />
<strong>de</strong> uma forma muito particular,<br />
formam um par estreitamente unido<br />
como mais tar<strong>de</strong>, em 2000,<br />
acontecerá com Abe e Chick, os<br />
doutos académicos do seu último<br />
romance, “Ravelstein”. Aqui, a forte<br />
relação, não isenta <strong>de</strong> atritos, entre<br />
Kenneth Trachtenberg, o narrador<br />
<strong>de</strong> 35 anos, assistente <strong>de</strong> Literatura<br />
Russa numa remota Universida<strong>de</strong> do<br />
Midwest, e o seu tio pelo lado<br />
materno, Benn Cra<strong>de</strong>r, um<br />
académico e botânico famoso que<br />
46 • Sexta-feira 9 Julho 2010 • Ípsilon