Marlene Dumas - Fonoteca Municipal de Lisboa
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“Para mim, o teatro<br />
está entre a infância<br />
e o científico, nas<br />
questões que coloca<br />
ao mundo. Não há<br />
senão hipóteses.<br />
Um espectáculo<br />
transporta uma nova<br />
hipótese sobre<br />
uma questão”<br />
grupo, atrás umas sombras, um fresco.<br />
Podíamos agra<strong>de</strong>cer, dizer “boa<br />
noite”, fazer <strong>de</strong>scer a cortina e ir embora.<br />
Porque procura, também, um<br />
trabalho ao nível da imagem,<br />
mas uma imagem rente à carne,<br />
perto do osso?<br />
Sim, on<strong>de</strong> os actores se expõem. É<br />
um espectáculo fisicamente muito<br />
duro. Mas é preciso que isso passe<br />
pelo cenário, pela maquinaria <strong>de</strong> cena,<br />
pelo actor, que exista em todo o<br />
espectáculo e não apenas num aspecto.<br />
O cenário não me interessa. Fiz<br />
espectáculos on<strong>de</strong> o cenário falhou,<br />
não era o que queria. Há coisas <strong>de</strong> que<br />
gosto e outras <strong>de</strong> que não gosto. Nesta<br />
gosto <strong>de</strong> quase tudo. É como se o<br />
cenário fosse uma máquina <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição.<br />
É preciso que se passe qualquer<br />
coisa física entre a maquinaria<br />
e o actor.<br />
Para que se torne real?<br />
[longa pausa] Para que encontre uma<br />
realida<strong>de</strong>, se é para ser real, não sei.<br />
Não sei o que é o real.<br />
Porque quando falamos <strong>de</strong><br />
artificial, e <strong>de</strong> artificialida<strong>de</strong>,<br />
é sempre ambicionando uma<br />
proximida<strong>de</strong> com o real.<br />
Absolutamente. Gosto imenso do que<br />
dizia Grotowski sobre o artificial. Na<br />
mesma palavra está contido o termo<br />
“arte” e “fictício”. É uma palavra com<br />
diferentes significados. Há o lado do<br />
artifício, que é falso, que está longe<br />
da realida<strong>de</strong>, há “artefacto”, e é partindo<br />
disso que trabalho. A imagem<br />
está ao serviço do texto, talvez. Mas<br />
eu não o diria, ou pelo menos não<br />
<strong>de</strong>sse modo. De qualquer forma, não<br />
acredito num teatro on<strong>de</strong> exista uma<br />
fabricação da imagem, o teatro <strong>de</strong>ve<br />
sustentar-se numa outra coisa. Já o<br />
experimentei, em três ou quatro momentos,<br />
mas são dois campos paralelos.<br />
O que se sente nas suas peças é<br />
que se pe<strong>de</strong> aos espectadores<br />
para procurarem não tanto<br />
compreen<strong>de</strong>r, mas estarem<br />
presentes e dialogar com o que<br />
é proposto. Como se fosse mais<br />
importante ser-se intuitivo antes<br />
<strong>de</strong> se ser racional.<br />
Sim, e isso passa muito pela minha<br />
experiência <strong>de</strong> espectador. Comecei<br />
a ver espectáculos muito novo, e houve<br />
muitos que, mesmo não os compreen<strong>de</strong>ndo,<br />
me <strong>de</strong>ixavam muito<br />
feliz, porque me perguntavam o que<br />
havia ali que eu pu<strong>de</strong>sse investir. Só<br />
mais tar<strong>de</strong> é que surge a elaboração<br />
a partir da intuição.<br />
Há, ao mesmo tempo, um<br />
trabalho sobre a hierarquia dos<br />
elementos cénicos, anulando<br />
uma construção em pirâmi<strong>de</strong>?<br />
Completamente. Mas eu gosto <strong>de</strong> contar<br />
histórias. E gosto que mas contem.<br />
Po<strong>de</strong>mos contá-las <strong>de</strong> diferentes formas,<br />
pelo inverso, linearmente, mas<br />
as histórias são importantes. E essa é<br />
uma noção que foi muito criticada,<br />
por exemplo, em França, porque implicava<br />
contar as histórias entendidas<br />
como valores tradicionais. Eu não<br />
acredito nisso. O efeito teatral po<strong>de</strong><br />
passar por contar as histórias.<br />
Quando falamos <strong>de</strong> texto<br />
falamos <strong>de</strong> um texto enquanto<br />
elemento escrito porque, <strong>de</strong>pois,<br />
há todo o texto que existe no<br />
corpo, na luz...<br />
Sim, quando falo do texto falo no sentido<br />
primário das palavras, a presença<br />
das palavras, a sonorida<strong>de</strong> das palavras.<br />
Adoro as sonorida<strong>de</strong>s, as vozes<br />
diferentes dos actores que contrastam,<br />
que são particulares. Quando<br />
ensaio penso no som e no modo como<br />
<strong>de</strong>senha uma arquitectura espacial.<br />
Depois há o sentido da frase e o sentido<br />
geral. Mas gosto <strong>de</strong> contar histórias<br />
e <strong>de</strong> voltar a elas. Por exemplo,<br />
no próximo ano voltarei a “Rinoceronte”,<br />
<strong>de</strong> Ionesco. Quero contá-la,<br />
mas ao contrário.<br />
Porque a sua relação com o texto<br />
mudou?<br />
Mudou a minha relação com o próprio<br />
espectáculo. A peça conta uma<br />
catástrofe, e quero partir, não da previsão<br />
<strong>de</strong>ssa catástrofe, mas do fim,<br />
quando o homem está sozinho. Quero<br />
trabalhar sobre a i<strong>de</strong>ia da cumplicida<strong>de</strong>,<br />
quando já se sabe o que aconteceu<br />
e qual a nossa responsabilida<strong>de</strong><br />
hoje, quando já conhecemos a catástrofe.<br />
Penso que a conhecemos, não<br />
vale a pena lamentarmo-nos. Os franceses<br />
lamentam-se muito, os portugueses<br />
também. É uma questão que<br />
diz muito a autores da Europa Central,<br />
como Ionesco, <strong>de</strong> pai romeno e<br />
mãe francesa, mas também Horvath<br />
e Kafka.<br />
Pegando nessa i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />
cumplicida<strong>de</strong> e catástrofe:<br />
em “Casimiro e Carolina”,<br />
se reconhecemos que há a<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolher,<br />
não po<strong>de</strong>mos dizer que fomos<br />
surpreendidos pelo que<br />
aconteceu. A sua apresentação<br />
é uma reflexão sobre o modo<br />
como o teatro, ou o dispositivo<br />
teatral, se po<strong>de</strong> dirigir aos<br />
outros e clamar que a inocência<br />
não é uma <strong>de</strong>sculpa?<br />
Sim. A inocência, pelo menos em<br />
francês tem um sentido ligado à infância<br />
e que está ligado à capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> maravilhamento. Interessa-me a<br />
ingenuida<strong>de</strong> no sentido não pejorativo<br />
mas no gran<strong>de</strong> sentido do termo.<br />
Da gran<strong>de</strong> ingenuida<strong>de</strong> do homem<br />
perante as gran<strong>de</strong>s questões: o que é<br />
o céu, o que são as estrelas, porque é<br />
que a terra é redonda? Os cientistas<br />
fazem as mesmas perguntas que as<br />
crianças quando olham o mundo. Para<br />
mim, o teatro está entre a infância<br />
e o científico, nas questões que coloca<br />
ao mundo. Não há senão hipóteses.<br />
E um espectáculo transporta uma nova<br />
hipótese sobre uma questão. Ionesco<br />
e Horvath tinham, para mim,<br />
guardada uma parte da infância. Horvath<br />
ainda tem uma parte da infância<br />
nele, que vai ser <strong>de</strong>struída. Quando<br />
Ionesco escreve que viu o seu pai<br />
transformar-se em monstro, na Roménia<br />
fascista, é <strong>de</strong> alguém que, em<br />
criança, vê a infância ser transformada.<br />
Isso é uma questão muito pessoal<br />
que se relaciona com o olhar que<br />
achamos que as crianças têm, mas<br />
que não é o olhar que elas mesmas<br />
têm sobre o mundo.<br />
“Casimiro e<br />
Carolina”:<br />
Demarcy-<br />
Mota diz que<br />
“é como se o<br />
cenário fosse<br />
uma máquina<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>struição”<br />
Ípsilon • Sexta-feira 9 Julho 2010 • 29