13.03.2015 Views

Marlene Dumas - Fonoteca Municipal de Lisboa

Marlene Dumas - Fonoteca Municipal de Lisboa

Marlene Dumas - Fonoteca Municipal de Lisboa

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Miles Cleret <strong>de</strong>u bom<br />

ao Panamá e à Colô<br />

Nunca ninguém tinha posto tão ao claro a gran<strong>de</strong>za da música africana e da América Latina.<br />

SoundWay, Miles Cleret mostrou que os negros estavam muito à frente. Foi ele que nos reedu<br />

Um tipo<br />

precoce, Miles<br />

Cleret tornouse<br />

DJ aos 14<br />

anos e<br />

investiga<br />

música<br />

africana<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os 17<br />

Música<br />

“Em Inglaterra,<br />

a ‘world music’ era<br />

o cúmulo do ‘uncool’.<br />

Eu mostrei-lhes<br />

que não era assim,<br />

que era música com a<br />

qual se podiam<br />

i<strong>de</strong>ntificar”<br />

Ao leme da sua editora SoundWay,<br />

Miles Cleret <strong>de</strong>itou cá para fora alguma<br />

da mais extraordinária música<br />

alguma vez feita: cumbias, salsas,<br />

calypsos, highlife, disco, géneros obscuros<br />

mesmo nos seus países <strong>de</strong> origem,<br />

como o Gana, a Nigéria, a Colômbia<br />

e o Panamá. O príncipe da<br />

“world music” não purista esteve entre<br />

nós.<br />

Seis da tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> sábado passado e<br />

ali para os lados da esplanada do Centro<br />

<strong>de</strong> Arte Mo<strong>de</strong>rna da Fundação<br />

Gulbenkian, em <strong>Lisboa</strong>, tudo ia bem:<br />

os passantes apessoavam-se do pequeno<br />

espaço e <strong>de</strong>ixavam-se embalar<br />

pela estranha música que um tipo<br />

com ar pachola ia escolhendo meticulosamente.<br />

Era um cenário familiar — no sentido<br />

em que famílias (pai, mãe, filhos,<br />

avós também) passavam, ouviam,<br />

gostavam e por ali ficavam mais um<br />

pouco. Ao todo, não <strong>de</strong>vem ter estado<br />

mais <strong>de</strong> 30 pessoas <strong>de</strong> cada vez, mas<br />

do que vimos não houve ninguém que<br />

passasse e ficasse indiferente.<br />

Tudo graças ao apurado ouvido do<br />

sujeito que cuidava da selecção dos<br />

vinis, um moço alto, <strong>de</strong> cabelo a ameaçar<br />

chegar aos ombros (com pontas<br />

rebel<strong>de</strong>s “ma non troppo”), vestido<br />

<strong>de</strong> boné e uma camisa preta que nos<br />

dias seguintes trocaria por padrões<br />

havaianos.<br />

O nome <strong>de</strong>le é Miles Cleret e não é<br />

um DJ qualquer a quem a Fundação<br />

Gulbenkian pediu que entretesse os<br />

passantes <strong>de</strong> sábado à tar<strong>de</strong>. Ele é o<br />

fundador e i<strong>de</strong>ólogo da SoundWay,<br />

possivelmente a melhor editora do<br />

mundo no negócio <strong>de</strong> reedições <strong>de</strong><br />

música africana e da América Latina<br />

— ou seja, aquilo a que hoje, com medo,<br />

chamamos música preta.<br />

Miles dobrava-se para as suas malas<br />

e <strong>de</strong> lá saltava um vinil raro, isto vez<br />

após vez após vez, levando as gentes<br />

não a um estado <strong>de</strong> euforia (não há<br />

euforias à tar<strong>de</strong>), mas sim <strong>de</strong> libertação<br />

do corpo sem recurso a drogas<br />

ou excesso <strong>de</strong> álcool. Bastou, para tal,<br />

recorrer a cumbias, salsas, psica<strong>de</strong>lismos,<br />

funks e que mais. Nigérias,<br />

Ganas, Colômbias, Panamás.<br />

Um mundo admirável que, já antes<br />

da SoundWay aparecer, <strong>de</strong>sconfiávamos<br />

existir, mas só graças à editora<br />

<strong>de</strong> Miles pu<strong>de</strong>mos fruir na sua inteireza.<br />

E não coisa pequena: foi Cleret<br />

que tornou homens Victor Olaya, Oscar<br />

Sulley ou Joe Mensah em heróis.<br />

Foi ele quem mais fez pela total reescrita<br />

do cânone musical da segunda<br />

meta<strong>de</strong> do século XX, com as suas<br />

constantes compilações temáticas,<br />

resgatando “singles” esquecidos ou<br />

nunca editados, na sua maior parte<br />

gravados nas décadas <strong>de</strong> 1960 e 1970.<br />

Foi ele que nos mostrou que os negros<br />

estavam muito à frente. Foi ele que<br />

nos reeducou na arte da dança.<br />

O primeiro gran<strong>de</strong> sucesso da SoundWay<br />

surgiu logo<br />

ao primeiro ro CD (antes<br />

só tinha havido “singles”): “Ghana<br />

Soundz”, editado em 2002, mostrava<br />

ao mundo as maravilhas <strong>de</strong> um género<br />

chamado ado “highlife”, feito <strong>de</strong> guitarras<br />

rendilhadas e ritmos em constante<br />

tropeção. Não era uma obraprima<br />

absoluta como “Guitar and The<br />

Gun”, a melhor compilação <strong>de</strong> pre <strong>de</strong>dicada ao “highlife” do Gana,<br />

mas estava perto. E não teria existido<br />

se não fosse a obsessão <strong>de</strong> Cleret.<br />

sem-<br />

Em 200101 Miles estava no Gana, “na<br />

casa <strong>de</strong> um amigo” e o amigo “punha<br />

disco após disco <strong>de</strong> música do Gana”<br />

e os discos eram “ todos espantosos”.<br />

Logo ali, contou-nos Miles, ficou “com<br />

vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> editar aquele material”.<br />

Seguiu-se e o óbvio: “Falei com várias<br />

editoras mas elas não quiseram editar<br />

aquelas canções”. Como é que fazem<br />

aqueles que foram educados na tura punk? DIY, não é? Exacto: “Por<br />

isso, resolvi editar eu próprio”.<br />

cul-<br />

E assim nasceu a SoundWay, apenas<br />

e só para que o mundo, uma pequena<br />

parte do mundo pu<strong>de</strong>sse ouvir<br />

aquelas canções.<br />

Perfil <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>dor<br />

Mas mesmo mo isto foi, <strong>de</strong> certa forma,<br />

um acaso. Foi o Gana, como podia ter<br />

sido outro país qualquer. Acontece<br />

que há uma década Cleret “viajava<br />

muito”. Queria “conhecer África” e,<br />

sem saber a que país ir primeiro, op-<br />

tou pelo Gana por uma razão simples:<br />

“Todas as pessoas que eu conhecia<br />

do Gana eram extremamente simpáticas”.<br />

Mal recebeu as negas das editoras,<br />

Cleret, assombrado pela beleza <strong>de</strong><br />

tudo o que ouvira, sou ao Gana <strong>de</strong>cidido<br />

a compilar material<br />

regres-<br />

para editar. Isto,<br />

note-se, não<br />

era a vida <strong>de</strong>le,<br />

mas há<br />

muito que<br />

ele sabia<br />

que mais cedo ou mais tar<strong>de</strong> seria a<br />

sua vida. Durante anos tinha aguentado<br />

com “trabalhos <strong>de</strong> merda só para<br />

po<strong>de</strong>r viajar e comprar discos”. Na<br />

altura em que <strong>de</strong>scobriu o Gana “trabalhava<br />

à comissão, em vendas”. “O<br />

meu pai trabalhava em publicida<strong>de</strong>,<br />

por isso acho que tenho um lado <strong>de</strong><br />

ven<strong>de</strong>dor, que é essencial num negócio<br />

<strong>de</strong>stes”, conta, sem pudores nem<br />

manias (Miles é um tipo absolutamente<br />

à-vonta<strong>de</strong>).<br />

Dessa segunda vez, esteve no Gana<br />

um mês — foi só aí que percebeu “a<br />

quantida<strong>de</strong> enorme <strong>de</strong> música extraordinária<br />

ria que nunca nca tinha saído <strong>de</strong><br />

lá”. Tinha os dias<br />

mais que ocupados:<br />

os:<br />

havia que “fazer listas <strong>de</strong> pessoas soas<br />

com<br />

quem <strong>de</strong>via falar, bater a portas,<br />

ouvir gravações <strong>de</strong> discos<br />

que nunca tinha ouvido”.<br />

Tudo para reunir<br />

suficiente material<br />

para uma compila-<br />

ção.<br />

“Começava a<br />

minha saga às sete<br />

da manhã e acaba<br />

doze ou catorze ho-<br />

ras <strong>de</strong>pois”, conta.<br />

“Em certos dias não<br />

encontrava nada,<br />

enquanto noutros<br />

dava <strong>de</strong> caras<br />

com<br />

um tipo<br />

que<br />

tinha 50<br />

discos. Ia<br />

juntando as pe-<br />

ças e construinn<br />

do uma narrativa<br />

do que foi<br />

aquela música.”<br />

Um mês <strong>de</strong>pois,<br />

“Ghana<br />

Soundz” estava<br />

pronto. Em oito<br />

anos ven<strong>de</strong>u 15 mil<br />

exemplares — ele só<br />

queria que ven<strong>de</strong>sse<br />

quatro mil, <strong>de</strong> modo a<br />

pagar as <strong>de</strong>spesas, “com<br />

as viagens incluídas”.<br />

Do Gana foi para a Nigéria,<br />

a seguir Colômbia e<br />

Panamá. A lista <strong>de</strong> discos<br />

da SoundWay foi-se tornando<br />

gradualmente<br />

mais preciosa:<br />

em 2004<br />

lançou “Afro-Baby: The Revolution of<br />

the Afro-Sound In Nigeria 1970-1979”.<br />

No mesmo ano editou o segundo volume<br />

<strong>de</strong> “Ghana Soundz” e o extraordinário<br />

“The Kings of Benin Urban<br />

Groove 1972-1980”, uma compilação<br />

do melhor da Orchestre Poly-Rhytmo,<br />

que ainda recentemente tocou em<br />

Portugal.<br />

Mas a gran<strong>de</strong> novida<strong>de</strong> veio em<br />

2006, quando lançou “Panama!”, uma<br />

colectânea dos milhentos géneros bastardos<br />

que fizeram furor nas caves do<br />

país durante as décadas <strong>de</strong> 1960 e<br />

1970. Nunca ninguém tinha posto tão<br />

ao claro a gran<strong>de</strong>za da música da Amé-<br />

rica<br />

do<br />

Sul (ex-<br />

26 • Sexta-feira 9 Julho 2010 • Ípsilon

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!