CULTURAA Biblioteca do CongressoNo centenário do nascimento de Raul Rego, (1913-2013)homem de letras, jornalista e resistente à ditadura, divulgamos esta sua crónica,sobre a Biblioteca do Congresso em Washington DC, publicada inicialmenteno Jornal do Comércio.POR RAUL REGONunca se fala de livros que a Bibliotecado Congresso não acuda ao pensamento.Os Anglo-Saxões concentraram os doismaiores centros de livros do Mundo – oBritish Museum e a Biblioteca doCongresso. Com toda a fama de materialismoque os cerca, não descuram as coisasdo espírito. Onde quer que apareçalivro raro à venda, lá estão os agentes dessesimensos armazéns de sabedoria concentradaa verificar o estado da raridade ea fazerem a sua oferta. “Não se encontrana Biblioteca do Congresso” é o atestadode raridade que os bibliófilos passam aosvolumes que mais estimam e mostram àsvisitas do seu pequeno mundo. Visitandoo Capitólio e saindo pelas traseiras, aBiblioteca do Congresso fica-nos à direita,a cem metros, mas não a vemos imediatamente.Está num tufo de arvoredo, comotodos os edifícios anexos ao Congresso eao Supremo Tribunal. De arquitectura nadasimples e de não muito bom gosto. Pareceter sido escolhido por novo-rico na inten-RUI OCHOAChama-se Biblioteca do Congresso e como tal começou, tendo sido criada para serviço dos legisladores americanos em 1800.60Paralelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014
CULTURA‘“Não se encontra na Biblioteca do Congresso”é o atestado de raridade que os bibliófilospassam aos volumes que mais estimame mostram às visitas do seu pequeno mundo.’ção de causar espanto ao vizinho; com assuas colunas atarracadas e varandas acanhadas,era um arquitecto de alma pequenaquem o concebeu. A RenascençaFrancesa não deu aqui o seu melhor.Dá-nos, de fora, a impressão de ser umedifício sem luz, a despeito das janelasabertas na frontaria. Frontaria cheia deacanhamentos, nem sequer as duas escadariasque dão acesso à entrada principallhe dão nobreza e à-vontade. Entramos, eé uma floresta de colunas e colunelos,arcos e arcarias, onde se não distingue odedo de gigante que lhes imprima unidadee harmonia. O salão e escadaria deentrada não desdizem da frontaria. Só osmedalhões e mosaicos lhes dão vida e umacerta beleza.A todos os cantos se nos deparam mostruárioscom documentos e volumesdiversos, reclamos a exposições daBiblioteca. Os lanços da escadaria nobresobem, pesadões até ao primeiro andar,em toda a volta corre uma balaustrada euma colunata rica, mas pouco elegante.Os mármores e aplicações de bronzemultiplicam-se, bem como os dourados,mas o espectador permanece frio, indiferente.Nada toca a nossa sensibilidade.Faltou, como em toda a construção, achispa que ilumina e incendeia o espírito.Enquanto esperamos, por termos chegadoantes da hora que nos havia sido marcada,continuamos a ver as mesas-mostruários.Representam por si sós um atractivo e amelhor das propagandas do livro e a suaconservação. Não há luxos nem apresentações.A falta de luxo é, aliás, uma dascaracterísticas que observamos em toda avida americana; procura-se é o útil, o confortável,o cómodo, o prático.Um elevador leva-nos à secção hispânica,onde espera por nós o Dr. FranciscoAguilera que nos acompanhará nestarápida visita à Biblioteca do Congresso.Em sua companhia enfronhámo-nos noscorredores enormes e bem esclarecidosdo edifício, percorremos estantes de literaturae história portuguesas e espanholas;estendemos a mão aqui e sai-nos a primeiraedição do De Rebus Emmnuelis Gestis deD. Jerónimo Osório. Mesmo ao lado, amesma obra em formato menor. É umaedição de Colónia, de 1574, de que poracaso conhecêramos um exemplar e quenunca vimos mencionada em bibliografias,nem dela faz menção Aubrey Bell na biografiado Bispo de Silves. Como se sabe,a primeira in folio e impressa em Lisboaem 1571. Aqui e além, entre os livros,vemos tacos de madeira com a “lombada”escrita. Ocupam o lugar de obras que seencontram nos reservados. Onde quer queestendamos a mão, arrancamos preciosidadesque fariam o orgulho de bibliotecas.Perguntamos pela traça, essa visita incómodade todas as livrarias e bibliotecas.Não há traça aqui. Todo o livro que entraé cuidadosamente desinfectado, antes deir ocupar o lugar que lhe compete na filados seus pares. Não há traça, mas todas asmedidas se tomam como se houvesse efosse preciso evitar a sua propagação. Asestantes são feitas de barriguinhas de aço.São como grelhas sobrepostas umas àsoutras. No solo, a ligação da estante aosobrado também é constituída por umagrelha das mesmas barrinhas de aço, deforma que os terríveis bicharocos não têmcampo para passear livremente e se alimentaremà tripa-forra. Não têm a liberdadede outras bibliotecas.Passamos por uma sala onde o vermelhodomina, nos tapetes e nas decorações.Ao centro um busto do presidente Wilson.É a sua biblioteca legada, bem como todosos seus papéis, à Biblioteca do Congresso.É a de um historiador, de um político ede um jurista. Quase todos os presidentestêm seguido esta norma de legar os papéisoficiais à Biblioteca do Congresso.Esses legados, como se calcula, revestem--se de importância extraordinária para aHistória dos Estados Unidos e para aquelesque a queiram escrever. Mais adianteentramos na secção de livros jurídicos, amaior do mundo. Legislação e jurisprudência,não só dos Estados Unidos masde todos os países, encontram-se aqui nasua máxima força.Não esqueçamos o nome da casa.Chama-se Biblioteca do Congresso ecomo tal começou, tendo sido criada paraserviço dos legisladores americanos em1800. Serve hoje de Biblioteca Nacional,mas permanece fiel ao espírito da fundaçãomuito alargado, embora. Quandoa capital se transferiu de Filadélfia paraWashington previa-se na Lei uma verbapara a compra de livros úteis ao CongressoParalelo n. o 8 | INVERNO 2013/2014 61