INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS
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a história do narrador. Primeiro estágio: o narrador clássico, cuja função é dar ao seu<br />
ouvinte a oportunidade de um intercâmbio de experiência (único valorizado no ensaio);<br />
segundo: o narrador do romance, cuja função passou a ser a de não mais poder falar<br />
de maneira exemplar ao seu leitor; terceiro: o narrador que é jornalista, ou seja, aquele<br />
que só transmite pelo narrar a informação, visto que escreve não para narrar a ação da<br />
própria experiência, mas o que aconteceu com x ou y em tal lugar e a tal hora. Benjamin<br />
desvaloriza (o pós-moderno valoriza) o último narrador. Para Benjamin, a narrativa<br />
não deve estar “interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como uma<br />
informação ou um relatório”. A narrativa é narrativa “porque ela mergulha a coisa na<br />
vida do narrador para depois retirá-la dele”. No meio, fi ca o narrador do romance, que<br />
se quer impessoal e objetivo diante da coisa narrada, mas que, no fundo, se confessa<br />
como Flaubert o fez de maneira paradigmática: “Madame Bovary, c’est moi”.<br />
Retomemos: a coisa narrada é mergulhada na vida do narrador e dali retirada;<br />
a coisa narrada é vista com objetividade pelo narrador, embora este confesse tê-Ia<br />
extraído da sua vivência; a coisa narrada existe como puro em si, ela é informação,<br />
exterior à vida do narrador.<br />
No raciocínio de Benjamin, o principal eixo em torno do qual gira o “embelezamento”<br />
(e não a decadência) da narrativa clássica hoje é a perda gradual e constante da sua<br />
“dimensão utilitária”. O narrador clássico tem “senso prático”, pretende ensinar algo.<br />
Quando o camponês sedentário ou o marinheiro comerciante narram, respectivamente,<br />
tradições da comunidade ou viagens ao estrangeiro, eles estão sendo úteis ao ouvinte.<br />
Diz Benjamin: “Essa utilidade [da narrativa] pode consistir seja num ensinamento moral,<br />
seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida - de qualquer<br />
maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos.” E arremata: “O conselho<br />
tecido na substância viva da experiência tem um nome: sabedoria.” A informação não<br />
transmite essa sabedoria porque a ação narrada por ela não foi tecida na substância<br />
viva da existência do narrador.<br />
Tento uma segunda hipótese de trabalho: o narrador pós-moderno é o que<br />
transmite uma “sabedoria” que é decorrência da observação de uma vivência alheia<br />
a ele, visto que a ação que narra não foi tecida na substância viva da sua existência.<br />
Nesse sentido, ele é o puro fi ccionista, pois tem de dar “autenticidade” a uma ação que,<br />
por não ter o respaldo da vivência, estaria desprovida de autenticidade. Esta advém da<br />
verossimilhança, que é produto da lógica interna do relato. O narrador pós-moderno<br />
sabe que o “real” e o “autêntico” são construções de linguagem.<br />
A perda do caráter utilitário e a subtração do bom conselho e da sabedoria,<br />
características do estágio presente da narrativa, não são vistas por Benjamin como<br />
sinais de um processo de decadência por que passa a arte de narrar hoje, como<br />
sugerimos atrás, o que o retira de imediato da categoria dos historiadores anacrônicos<br />
ou catastrófi cos. Na escrita de Benjamin, a perda e as subtrações acima referidas são<br />
apontadas para que se saliente, por contraste, a “beleza” da narrativa clássica – a<br />
sua perenidade. O jogo básico no raciocínio de Benjamin é a valorização do pleno a<br />
partir da constatação do que nele se esvai. E o incompleto - antes de ser inferior - é<br />
apenas menos belo e mais problemático. As transformações por que passa o narrador<br />
são concomitantes com “toda uma evolução secular das forças produtivas”. Não se<br />
trata, pois, de olhar para trás para repetir o ontem hoje (seríamos talvez historiadores<br />
mais felizes, porque nos restringiríamos ao reino do belo). Trata-se antes de julgar<br />
belo o que foi e ainda o é – no caso, o narrador clássico –, e de dar conta do que<br />
apareceu como problemático ontem – o narrador do romance –, e que aparece ainda<br />
mais problemático hoje – o narrador pós-moderno. Aviso aos benjaminianos: estamos<br />
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