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edição de 27 de janeiro de 2020

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STORYTELLER<br />

Naomi Suziki/Unsplash<br />

O cachorro<br />

do cliente<br />

Criamos uma campanha<br />

<strong>de</strong>slumbrante cujo astro<br />

era um labrador preto<br />

LuLa Vieira<br />

Quando você não tem i<strong>de</strong>ia para um comercial,<br />

há uma fórmula imbatível: cria alguma<br />

coisa com velhinhos, crianças ou cachorros.<br />

Funciona mais do que mulher bonita, até<br />

mesmo porque mulher bonita está caindo <strong>de</strong><br />

moda. O risco <strong>de</strong> parecer machista é alto. O<br />

perigo <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rarem você um machista<br />

vulgar é alto. Por isso, criancinhas, velhos e<br />

cachorros ainda são fórmulas perfeitas.<br />

Na história da televisão não se conhecem<br />

reclamações <strong>de</strong> cachorreiros, velhistas ou<br />

criancistas acusando a exploração <strong>de</strong>ssas<br />

personagens em comerciais. Mas, conosco<br />

aconteceu uma vez um fato inacreditável.<br />

Era um cliente sediado numa cida<strong>de</strong> do interior,<br />

cujo <strong>de</strong>partamento <strong>de</strong> marketing ficava<br />

em São Paulo. Uma empresa familiar, administrada<br />

com todo profissionalismo, lí<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />

mercado, cujo dono-presi<strong>de</strong>nte dava autonomia<br />

a seu pessoal, não interferindo no dia a<br />

dia dos negócios. Foi nesse clima que <strong>de</strong>senvolvemos<br />

uma campanha cujo astro era um<br />

cachorrinho. Não parecido com o Salsicha da<br />

Cofap, imorredoura criação do Washington<br />

Olivetto, mas toda a campanha se <strong>de</strong>senrolava<br />

em torno das traquinagens <strong>de</strong> um lindo<br />

labrador.<br />

Pois bem, já disse, criamos uma campanha<br />

<strong>de</strong>slumbrante cujo astro era exatamente um<br />

labrador preto, um bicho adorável, sensível<br />

como uma cantora <strong>de</strong> ópera, leal, amigo e extremamente<br />

simpático. Adorava seres humanos<br />

<strong>de</strong> qualquer ida<strong>de</strong> e se comportava diante<br />

das câmeras como um ator profissional, em<br />

troca <strong>de</strong> um cachê extremamente razoável:<br />

pequenos pedaços <strong>de</strong> carne crua. E, apesar <strong>de</strong><br />

por garantia termos provi<strong>de</strong>nciado um dublê,<br />

o astro principal se comportou com tal maestria<br />

que encantou o elenco humano inteiro,<br />

principalmente o câmera, que jurava que, se<br />

todos os atores se comportassem igual, sua<br />

vida seria um paraíso. A equipe do cliente se<br />

sentiu tão segura que autorizou a montagem<br />

final antes mesmo <strong>de</strong> o presi<strong>de</strong>nte ver o roteiro,<br />

esperando encantar <strong>de</strong> tal forma o chefão<br />

que garantiria a confiança absoluta em futuras<br />

produções. E assim foi feito.<br />

Filmamos tudo e nos preparamos para<br />

uma verda<strong>de</strong>ira apoteose na apresentação<br />

ao tal dono-presi<strong>de</strong>nte. Por problemas <strong>de</strong> horários<br />

<strong>de</strong> voos, chegamos à cida<strong>de</strong>-se<strong>de</strong> da<br />

empresa próximo ao meio-dia. E a mulher<br />

do presi<strong>de</strong>nte fez absoluta questão <strong>de</strong> nos<br />

receber para um almoço antes da apresentação<br />

da campanha. E foi num clima <strong>de</strong> total<br />

confraternização, quase intimida<strong>de</strong>, que o<br />

assunto cachorro surgiu à mesa. Nesse instante,<br />

a primeira-dama comentou: “nem toquem<br />

nesse assunto!” E completou: “Fulano<br />

(o presi<strong>de</strong>nte) foi mordido por um cachorro<br />

quando era bebê e até hoje não po<strong>de</strong> ver um<br />

animal <strong>de</strong>sses. Começa a suar, passa mal, tem<br />

tonturas...”<br />

E, acariciando carinhosamente a mão do<br />

marido, completou: “É a única coisa que<br />

<strong>de</strong>ixa ele fora <strong>de</strong> si, um trauma que nem um<br />

psiquiatra alemão conseguiu melhorar...”<br />

Veio a sobremesa que nós não conseguimos<br />

nem tocar (e era uma framboesa cultivada<br />

na fazenda do cliente) e eu <strong>de</strong>i um vexame<br />

pedindo whisky após o licor. Duas doses,<br />

tomadas sem gelo, para ver se parava <strong>de</strong><br />

tremer. Tive <strong>de</strong> abrir o jogo, pois seria ridículo<br />

<strong>de</strong>mais dizer que tinha ido até a se<strong>de</strong><br />

do cliente só para experimentar a torta <strong>de</strong><br />

framboesa.<br />

Menti diminuindo a participação do cachorro<br />

e prometi voltar três dias <strong>de</strong>pois com<br />

outro filme. Menti <strong>de</strong>scaradamente dizendo<br />

que bastaria uma remontagem e que ele se<br />

preparasse para ver uma campanha espetacular<br />

na próxima semana. E saímos todos, em<br />

<strong>de</strong>sabalada carreira, incluindo a equipe do<br />

cliente, que não conhecia essa intimida<strong>de</strong> paranoica<br />

canina do chefão. Ficamos horas no<br />

aeroporto (havia só dois voos por dia) e os <strong>de</strong>mais<br />

passageiros jamais enten<strong>de</strong>ram quando<br />

um dos membros da equipe queria dar um<br />

chute num pobre cachorrinho abandonado<br />

que vagava pelo aeroporto. Felizmente não<br />

acertou, pois, além do prejuízo, estaria com<br />

dor na consciência até hoje. Minha única vingança:<br />

o filhote do meu cachorro ganhou o<br />

nome do produto do cliente. E viveu feliz para<br />

sempre. A nova campanha tinha como astro<br />

um canário.<br />

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />

e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />

editor e professor<br />

lulavieira.luvi@gmail.com<br />

26 <strong>27</strong> <strong>de</strong> <strong>janeiro</strong> <strong>de</strong> <strong>2020</strong> - jornal propmark

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