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STORYTELLER<br />
Naomi Suziki/Unsplash<br />
O cachorro<br />
do cliente<br />
Criamos uma campanha<br />
<strong>de</strong>slumbrante cujo astro<br />
era um labrador preto<br />
LuLa Vieira<br />
Quando você não tem i<strong>de</strong>ia para um comercial,<br />
há uma fórmula imbatível: cria alguma<br />
coisa com velhinhos, crianças ou cachorros.<br />
Funciona mais do que mulher bonita, até<br />
mesmo porque mulher bonita está caindo <strong>de</strong><br />
moda. O risco <strong>de</strong> parecer machista é alto. O<br />
perigo <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rarem você um machista<br />
vulgar é alto. Por isso, criancinhas, velhos e<br />
cachorros ainda são fórmulas perfeitas.<br />
Na história da televisão não se conhecem<br />
reclamações <strong>de</strong> cachorreiros, velhistas ou<br />
criancistas acusando a exploração <strong>de</strong>ssas<br />
personagens em comerciais. Mas, conosco<br />
aconteceu uma vez um fato inacreditável.<br />
Era um cliente sediado numa cida<strong>de</strong> do interior,<br />
cujo <strong>de</strong>partamento <strong>de</strong> marketing ficava<br />
em São Paulo. Uma empresa familiar, administrada<br />
com todo profissionalismo, lí<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />
mercado, cujo dono-presi<strong>de</strong>nte dava autonomia<br />
a seu pessoal, não interferindo no dia a<br />
dia dos negócios. Foi nesse clima que <strong>de</strong>senvolvemos<br />
uma campanha cujo astro era um<br />
cachorrinho. Não parecido com o Salsicha da<br />
Cofap, imorredoura criação do Washington<br />
Olivetto, mas toda a campanha se <strong>de</strong>senrolava<br />
em torno das traquinagens <strong>de</strong> um lindo<br />
labrador.<br />
Pois bem, já disse, criamos uma campanha<br />
<strong>de</strong>slumbrante cujo astro era exatamente um<br />
labrador preto, um bicho adorável, sensível<br />
como uma cantora <strong>de</strong> ópera, leal, amigo e extremamente<br />
simpático. Adorava seres humanos<br />
<strong>de</strong> qualquer ida<strong>de</strong> e se comportava diante<br />
das câmeras como um ator profissional, em<br />
troca <strong>de</strong> um cachê extremamente razoável:<br />
pequenos pedaços <strong>de</strong> carne crua. E, apesar <strong>de</strong><br />
por garantia termos provi<strong>de</strong>nciado um dublê,<br />
o astro principal se comportou com tal maestria<br />
que encantou o elenco humano inteiro,<br />
principalmente o câmera, que jurava que, se<br />
todos os atores se comportassem igual, sua<br />
vida seria um paraíso. A equipe do cliente se<br />
sentiu tão segura que autorizou a montagem<br />
final antes mesmo <strong>de</strong> o presi<strong>de</strong>nte ver o roteiro,<br />
esperando encantar <strong>de</strong> tal forma o chefão<br />
que garantiria a confiança absoluta em futuras<br />
produções. E assim foi feito.<br />
Filmamos tudo e nos preparamos para<br />
uma verda<strong>de</strong>ira apoteose na apresentação<br />
ao tal dono-presi<strong>de</strong>nte. Por problemas <strong>de</strong> horários<br />
<strong>de</strong> voos, chegamos à cida<strong>de</strong>-se<strong>de</strong> da<br />
empresa próximo ao meio-dia. E a mulher<br />
do presi<strong>de</strong>nte fez absoluta questão <strong>de</strong> nos<br />
receber para um almoço antes da apresentação<br />
da campanha. E foi num clima <strong>de</strong> total<br />
confraternização, quase intimida<strong>de</strong>, que o<br />
assunto cachorro surgiu à mesa. Nesse instante,<br />
a primeira-dama comentou: “nem toquem<br />
nesse assunto!” E completou: “Fulano<br />
(o presi<strong>de</strong>nte) foi mordido por um cachorro<br />
quando era bebê e até hoje não po<strong>de</strong> ver um<br />
animal <strong>de</strong>sses. Começa a suar, passa mal, tem<br />
tonturas...”<br />
E, acariciando carinhosamente a mão do<br />
marido, completou: “É a única coisa que<br />
<strong>de</strong>ixa ele fora <strong>de</strong> si, um trauma que nem um<br />
psiquiatra alemão conseguiu melhorar...”<br />
Veio a sobremesa que nós não conseguimos<br />
nem tocar (e era uma framboesa cultivada<br />
na fazenda do cliente) e eu <strong>de</strong>i um vexame<br />
pedindo whisky após o licor. Duas doses,<br />
tomadas sem gelo, para ver se parava <strong>de</strong><br />
tremer. Tive <strong>de</strong> abrir o jogo, pois seria ridículo<br />
<strong>de</strong>mais dizer que tinha ido até a se<strong>de</strong><br />
do cliente só para experimentar a torta <strong>de</strong><br />
framboesa.<br />
Menti diminuindo a participação do cachorro<br />
e prometi voltar três dias <strong>de</strong>pois com<br />
outro filme. Menti <strong>de</strong>scaradamente dizendo<br />
que bastaria uma remontagem e que ele se<br />
preparasse para ver uma campanha espetacular<br />
na próxima semana. E saímos todos, em<br />
<strong>de</strong>sabalada carreira, incluindo a equipe do<br />
cliente, que não conhecia essa intimida<strong>de</strong> paranoica<br />
canina do chefão. Ficamos horas no<br />
aeroporto (havia só dois voos por dia) e os <strong>de</strong>mais<br />
passageiros jamais enten<strong>de</strong>ram quando<br />
um dos membros da equipe queria dar um<br />
chute num pobre cachorrinho abandonado<br />
que vagava pelo aeroporto. Felizmente não<br />
acertou, pois, além do prejuízo, estaria com<br />
dor na consciência até hoje. Minha única vingança:<br />
o filhote do meu cachorro ganhou o<br />
nome do produto do cliente. E viveu feliz para<br />
sempre. A nova campanha tinha como astro<br />
um canário.<br />
Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />
e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />
editor e professor<br />
lulavieira.luvi@gmail.com<br />
26 <strong>27</strong> <strong>de</strong> <strong>janeiro</strong> <strong>de</strong> <strong>2020</strong> - jornal propmark