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edição de 27 de janeiro de 2020

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última página<br />

Frank Vessia/Unsplash<br />

a alegria<br />

<strong>de</strong> criar<br />

Stalimir Vieira<br />

Num fim <strong>de</strong> tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1980,<br />

entrei pela primeira vez no recinto do<br />

quinto andar da DPZ. Até então não havia<br />

passado da salinha <strong>de</strong> reunião, que ficava<br />

logo à saída do elevador, on<strong>de</strong> o Washington<br />

e o Nelo Pimentel haviam me entrevistado<br />

uma semana antes. O salão estava vazio.<br />

Pelas janelas que se estendiam <strong>de</strong> uma<br />

ponta a outra do andar, <strong>de</strong>scortinava a cida<strong>de</strong><br />

mítica, sob um céu cor <strong>de</strong> chumbo. Nisso,<br />

entra um sujeito baixinho a quem conhecia<br />

<strong>de</strong> foto, um dos três seres encantados da<br />

propaganda, venerados <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a minha Porto<br />

Alegre, on<strong>de</strong> <strong>de</strong>i meus primeiros passos na<br />

profissão.<br />

que não temi a convivência com personagens<br />

que povoavam a mídia especializada, aguçando<br />

a imaginação <strong>de</strong> jovens aspirantes a<br />

criativos: como viveriam? Do que se alimentariam?<br />

O que leriam? Não! Eu não temia, mas<br />

ansiava por ocupar logo o posto, assumindo<br />

que era ali o meu lugar, por natureza.<br />

Era um criativo, afinal – quase 40 anos<br />

passados, noto até certa falta <strong>de</strong> humilda<strong>de</strong><br />

– e parecia evi<strong>de</strong>nte que um afluente criativo<br />

corresse para o mar da criativida<strong>de</strong>. Talvez<br />

por alimentar essa convicção, comecei a<br />

trabalhar na DPZ como se ali sempre estivesse.<br />

Sem presunção, mas com a segurança<br />

<strong>de</strong> que falava a mesma língua, embora consciente<br />

<strong>de</strong> que me faltava um tanto do vocabulário.<br />

Eu tinha espiado <strong>de</strong> canto <strong>de</strong><br />

olho, contido pela timi<strong>de</strong>z e escutei<br />

às costas: você mora em São<br />

Paulo? Assim mesmo, sem um<br />

boa tar<strong>de</strong> nem um como vai. Surpreendido<br />

pela pergunta inusitada,<br />

mas intimista, respondi com<br />

a sincerida<strong>de</strong> dos meus 20 e poucos<br />

anos: não. Foi a <strong>de</strong>ixa para<br />

ele exercer plenamente o papel<br />

<strong>de</strong> dar a boa nova: mas vai morar. Minutos<br />

<strong>de</strong>pois, contratado para trabalhar no templo<br />

mais sagrado da criação publicitária, atravessei<br />

a Avenida Cida<strong>de</strong> Jardim, carregando<br />

a mala com que tinha vindo do aeroporto.<br />

E <strong>de</strong>sabou a tempesta<strong>de</strong>. Os pingos sucessivos<br />

e violentos tamborilavam sobre a minha<br />

cabeça e lavavam o meu rosto. Não era chuva.<br />

Era champanha. São Paulo comemorava<br />

comigo a maior conquista que um criativo<br />

po<strong>de</strong>ria alcançar. Não sei como, acabei chegando,<br />

encharcado, no quarto que alugara no<br />

Paraíso. Passei a noite em claro, excitado pela<br />

estreia que se daria na manhã seguinte. Hoje,<br />

revendo aquele momento, me surpreendo<br />

em perceber que não fui tomado pelo pânico,<br />

“o que valia<br />

era a atitu<strong>de</strong><br />

criativa, era<br />

não reprimir<br />

mesmo aquilo<br />

que parecesse<br />

absurdo”<br />

O mais importante, porém,<br />

nos i<strong>de</strong>ntificava: a alegria <strong>de</strong><br />

criar. A tensão que se dava não<br />

era no sentido <strong>de</strong> “será que eu<br />

consigo?”, mas “qual <strong>de</strong>ssas opções<br />

será a que ren<strong>de</strong> mais?”<br />

Porque as i<strong>de</strong>ias vinham aos borbotões,<br />

estimuladas pelo meio<br />

propício, inspirador, pela saudável<br />

exigência <strong>de</strong> sermos indiscutivelmente<br />

os melhores. Tudo conspirava<br />

para, na pior das hipóteses, pecarmos por<br />

excesso.<br />

E eu pequei muito por excesso – chego a<br />

ficar vexado por algumas propostas criativas<br />

<strong>de</strong> que me recordo, mas elas sempre eram<br />

aprovadas por <strong>de</strong>cisores movidos à transgressão,<br />

mesmo que à frente <strong>de</strong>ssem com<br />

os burros n’água. Mas o que importava? Naquela<br />

fase da minha vida profissional, o que<br />

valia era a atitu<strong>de</strong> criativa, era não reprimir<br />

mesmo aquilo que parecesse absurdo, era<br />

jamais sonegar as i<strong>de</strong>ias, aliás, o único crime<br />

imperdoável daquele que recebera o privilégio<br />

<strong>de</strong> estar ali. Enfim, não era difícil ser<br />

criativo e ser feliz.<br />

Stalimir Vieira é diretor da Base Marketing<br />

stalimircom@gmail.com<br />

46 <strong>27</strong> <strong>de</strong> <strong>janeiro</strong> <strong>de</strong> <strong>2020</strong> - jornal propmark

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