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última página<br />
Frank Vessia/Unsplash<br />
a alegria<br />
<strong>de</strong> criar<br />
Stalimir Vieira<br />
Num fim <strong>de</strong> tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1980,<br />
entrei pela primeira vez no recinto do<br />
quinto andar da DPZ. Até então não havia<br />
passado da salinha <strong>de</strong> reunião, que ficava<br />
logo à saída do elevador, on<strong>de</strong> o Washington<br />
e o Nelo Pimentel haviam me entrevistado<br />
uma semana antes. O salão estava vazio.<br />
Pelas janelas que se estendiam <strong>de</strong> uma<br />
ponta a outra do andar, <strong>de</strong>scortinava a cida<strong>de</strong><br />
mítica, sob um céu cor <strong>de</strong> chumbo. Nisso,<br />
entra um sujeito baixinho a quem conhecia<br />
<strong>de</strong> foto, um dos três seres encantados da<br />
propaganda, venerados <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a minha Porto<br />
Alegre, on<strong>de</strong> <strong>de</strong>i meus primeiros passos na<br />
profissão.<br />
que não temi a convivência com personagens<br />
que povoavam a mídia especializada, aguçando<br />
a imaginação <strong>de</strong> jovens aspirantes a<br />
criativos: como viveriam? Do que se alimentariam?<br />
O que leriam? Não! Eu não temia, mas<br />
ansiava por ocupar logo o posto, assumindo<br />
que era ali o meu lugar, por natureza.<br />
Era um criativo, afinal – quase 40 anos<br />
passados, noto até certa falta <strong>de</strong> humilda<strong>de</strong><br />
– e parecia evi<strong>de</strong>nte que um afluente criativo<br />
corresse para o mar da criativida<strong>de</strong>. Talvez<br />
por alimentar essa convicção, comecei a<br />
trabalhar na DPZ como se ali sempre estivesse.<br />
Sem presunção, mas com a segurança<br />
<strong>de</strong> que falava a mesma língua, embora consciente<br />
<strong>de</strong> que me faltava um tanto do vocabulário.<br />
Eu tinha espiado <strong>de</strong> canto <strong>de</strong><br />
olho, contido pela timi<strong>de</strong>z e escutei<br />
às costas: você mora em São<br />
Paulo? Assim mesmo, sem um<br />
boa tar<strong>de</strong> nem um como vai. Surpreendido<br />
pela pergunta inusitada,<br />
mas intimista, respondi com<br />
a sincerida<strong>de</strong> dos meus 20 e poucos<br />
anos: não. Foi a <strong>de</strong>ixa para<br />
ele exercer plenamente o papel<br />
<strong>de</strong> dar a boa nova: mas vai morar. Minutos<br />
<strong>de</strong>pois, contratado para trabalhar no templo<br />
mais sagrado da criação publicitária, atravessei<br />
a Avenida Cida<strong>de</strong> Jardim, carregando<br />
a mala com que tinha vindo do aeroporto.<br />
E <strong>de</strong>sabou a tempesta<strong>de</strong>. Os pingos sucessivos<br />
e violentos tamborilavam sobre a minha<br />
cabeça e lavavam o meu rosto. Não era chuva.<br />
Era champanha. São Paulo comemorava<br />
comigo a maior conquista que um criativo<br />
po<strong>de</strong>ria alcançar. Não sei como, acabei chegando,<br />
encharcado, no quarto que alugara no<br />
Paraíso. Passei a noite em claro, excitado pela<br />
estreia que se daria na manhã seguinte. Hoje,<br />
revendo aquele momento, me surpreendo<br />
em perceber que não fui tomado pelo pânico,<br />
“o que valia<br />
era a atitu<strong>de</strong><br />
criativa, era<br />
não reprimir<br />
mesmo aquilo<br />
que parecesse<br />
absurdo”<br />
O mais importante, porém,<br />
nos i<strong>de</strong>ntificava: a alegria <strong>de</strong><br />
criar. A tensão que se dava não<br />
era no sentido <strong>de</strong> “será que eu<br />
consigo?”, mas “qual <strong>de</strong>ssas opções<br />
será a que ren<strong>de</strong> mais?”<br />
Porque as i<strong>de</strong>ias vinham aos borbotões,<br />
estimuladas pelo meio<br />
propício, inspirador, pela saudável<br />
exigência <strong>de</strong> sermos indiscutivelmente<br />
os melhores. Tudo conspirava<br />
para, na pior das hipóteses, pecarmos por<br />
excesso.<br />
E eu pequei muito por excesso – chego a<br />
ficar vexado por algumas propostas criativas<br />
<strong>de</strong> que me recordo, mas elas sempre eram<br />
aprovadas por <strong>de</strong>cisores movidos à transgressão,<br />
mesmo que à frente <strong>de</strong>ssem com<br />
os burros n’água. Mas o que importava? Naquela<br />
fase da minha vida profissional, o que<br />
valia era a atitu<strong>de</strong> criativa, era não reprimir<br />
mesmo aquilo que parecesse absurdo, era<br />
jamais sonegar as i<strong>de</strong>ias, aliás, o único crime<br />
imperdoável daquele que recebera o privilégio<br />
<strong>de</strong> estar ali. Enfim, não era difícil ser<br />
criativo e ser feliz.<br />
Stalimir Vieira é diretor da Base Marketing<br />
stalimircom@gmail.com<br />
46 <strong>27</strong> <strong>de</strong> <strong>janeiro</strong> <strong>de</strong> <strong>2020</strong> - jornal propmark