Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
STORYTELLER<br />
Alexandra Gorn/Unsplash<br />
Nós e o vírus<br />
A humanida<strong>de</strong> inteira está<br />
com o mesmo medo<br />
LuLa Vieira<br />
Temos sempre a tendência <strong>de</strong> achar que<br />
estamos vivendo momentos inéditos na<br />
história da humanida<strong>de</strong>. Geralmente não<br />
é verda<strong>de</strong>. Por que razão, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> milênios,<br />
teríamos agora o privilégio <strong>de</strong> participar<br />
<strong>de</strong> acontecimentos únicos? Conhecem<br />
a expressão “nada <strong>de</strong> novo sob o sol?”<br />
É perfeita para quem, por <strong>de</strong>sinformação,<br />
consi<strong>de</strong>ra que po<strong>de</strong> haver ainda novida<strong>de</strong>s<br />
nesse mundo <strong>de</strong> meu Deus. Ao longo <strong>de</strong> sua<br />
existência na Terra, esse animal, cuja família<br />
pertencemos, já viu <strong>de</strong> tudo. Já viveu todo<br />
tipo <strong>de</strong> experiência. Aparentemente não<br />
há mais nada que ainda possa nos surpreen<strong>de</strong>r.<br />
O quê?, dirá o espantado leitor.<br />
Já apareceu nestes anos <strong>de</strong> nossa vida<br />
humana algum ministro como a Damares?<br />
Eu retruco: sim! Nero, Jânio, alguns papas<br />
da antiguida<strong>de</strong> e Collor, por exemplo.<br />
Loucuras diferentes uma das outras, mas<br />
loucuras. Ver Jesus na goiabeira não é novida<strong>de</strong>.<br />
Há centenas <strong>de</strong> relatos <strong>de</strong> pessoas<br />
que viram <strong>de</strong> tudo vindo do céu. Meteoros,<br />
chuva ácida, marcianos e santos <strong>de</strong> quase<br />
todas as religiões. Na TV mesmo, todo dia<br />
tem gente em ligação direta com a eternida<strong>de</strong>.<br />
Passeie pelos canais e você verá<br />
crentes falando direto com o céu. Tem até<br />
alguns que cobram <strong>de</strong>pósitos bancários em<br />
nome da obra d’Ele. A conta é terrena, <strong>de</strong><br />
um banco terreno.<br />
Mas como o que importa é o gesto, o<br />
Divino anota em seu ca<strong>de</strong>rno o crédito em<br />
dias <strong>de</strong> ventura, <strong>de</strong> leite, mel e ambrosia.<br />
Coros <strong>de</strong> anjos e paz. Longe do cal<strong>de</strong>irão<br />
que cozinha através dos séculos os argentários<br />
que, na vida terrena, não abriram a<br />
bruaca para manter os mensageiros do Senhor.<br />
Entre minhas obrigações, uma das<br />
que mais gosto é escrever esta coluna aqui,<br />
no PROPMARK. Ainda que possa soar pretensioso,<br />
acho que a coluna tem uma utilida<strong>de</strong>:<br />
fazer rir. Olhando meus arquivos,<br />
<strong>de</strong>scubro que há décadas faço piada e conto<br />
casos engraçados, na maioria absoluta das<br />
vezes sobre temas ligados à nossa profissão.<br />
Uma página para fazer rir. Ou sorrir.<br />
Fico muito orgulhoso em encontrar o lado<br />
engraçado dos acontecimentos e narrá-los,<br />
o mais próximo que minha memória consegue<br />
recordar. Em alguns casos, exagero<br />
e dou uma rebuscadazinha para tornar a<br />
história mais picaresca, quando não, mais<br />
crível. Porque têm algumas passagens que<br />
nem eu acredito que tenham acontecido,<br />
como aquele caso da barata no banheiro<br />
das moças. Agora o leitor pergunta: “on<strong>de</strong><br />
esse imbecil quer chegar?”. Calma lá, estamos<br />
indo.<br />
Essa introdução é para dividir com a leitora<br />
ou o leitor uma constatação que me<br />
<strong>de</strong>ixa boquiaberto: nunca houve dias assim<br />
como estes que estamos vivendo. Não<br />
há nos anais registro <strong>de</strong> um acontecimento<br />
que botou praticamente a população do<br />
mundo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa. Mesmo na peste negra,<br />
durante as guerras, sempre houve países<br />
inteiros à margem do que ocorria. Nas<br />
guerras, mesmo as batizadas <strong>de</strong> mundiais,<br />
povos inteiros continuaram suas vidinhas,<br />
alheios ao que ocorria. Mas agora não. A tal<br />
al<strong>de</strong>ia global, como batizou McLuhan, reagiu<br />
<strong>de</strong> uma única forma.<br />
Que se tenha registro, a humanida<strong>de</strong> inteira<br />
está com o mesmo medo. Tirando o<br />
Bolsonaro, toda humanida<strong>de</strong> ficou alarmada<br />
e se trancou em casa. Ou – pelo menos<br />
– a maioria dos terráqueos o fez. E todos<br />
os jornais, todas as emissoras <strong>de</strong> rádio<br />
e televisão do mundo inteiro, registram ruas<br />
vazias, cida<strong>de</strong>s paradas, aviões no solo,<br />
navios nos portos, limites fechados. Um<br />
único assunto aparece nas re<strong>de</strong>s sociais.<br />
Sobre um ser microscópio ardiloso e mortal,<br />
um vírus até bonitinho, meio parecido<br />
com os <strong>de</strong>senhos dos planetas feitos por<br />
Saint Exupery no Pequeno Príncipe. Pois<br />
esse bichinho, que po<strong>de</strong> matar, se fixou no<br />
pensamento <strong>de</strong> muitos milhões <strong>de</strong> pessoas<br />
que estão abestalhadas diante <strong>de</strong> uma<br />
ameaça global.<br />
Quem tinha medo da hecatombe universal,<br />
causada por bombas, <strong>de</strong>scobre agora<br />
que a Terra tem, sim, um inimigo. Mas só o<br />
vemos com aparelhos sofisticados. Quando<br />
menos se espera, ele pimba! Ele surge para<br />
matar. E eu não gostaria que meu querido<br />
leitor, minha doce leitura, reaja diante <strong>de</strong><br />
meu texto com raiva, achando que não estou<br />
respeitando a dor <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> pessoas,<br />
mundo a fora. Piada numa hora <strong>de</strong>ssa?<br />
Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />
e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />
editor e professor<br />
lulavieira.luvi@gmail.com<br />
22 6 <strong>de</strong> <strong>abril</strong> <strong>de</strong> <strong>2020</strong> - jornal propmark