You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
STORYTELLER<br />
Geert Pieters/Unsplash<br />
Rir <strong>de</strong> quê?<br />
Achei um anúncio <strong>de</strong> piano. Aquele<br />
imenso móvel que fazia sons martelando<br />
umas cordas e parece anacrônico<br />
LuLa Vieira<br />
Eu nunca tive tanta dificulda<strong>de</strong> para fazer<br />
esta coluna como nestes dias <strong>de</strong><br />
pan<strong>de</strong>mia – uma rima que po<strong>de</strong>ria ser rica<br />
não fossem estes tempos. Explico. Sempre<br />
há espaço para rir, mesmo nos momentos<br />
mais terríveis. Ou, quando o bom senso<br />
recomenda, não se toca no assunto. Não se<br />
po<strong>de</strong> achar um lado engraçado num atentado<br />
às Torres <strong>de</strong> Nova York. Nem em boa<br />
parte das notícias políticas no Brasil. Muito<br />
menos nessa pan<strong>de</strong>mia on<strong>de</strong> a primeira<br />
morte foi a do bom senso. Por uma razão<br />
<strong>de</strong>sconhecida, o vírus entrou para a política<br />
e as pessoas brigam a respeito <strong>de</strong> remédios,<br />
procedimentos e contagem <strong>de</strong> mortos.<br />
Todo mundo tem uma teoria. Seja qual<br />
for o <strong>de</strong>spautério, há enorme possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> ter um avalista <strong>de</strong> peso. Se não tiver, inventa-se.<br />
O que tenho lido <strong>de</strong> professor em<br />
Harvard falando os maiores absurdos não<br />
está nos anais. Tudo falso. Usei o exemplo<br />
<strong>de</strong> Harvard porque é um dos currículos<br />
mentirosos mais usados. Quando se quer<br />
justificar qualquer porralouquice basta<br />
colocá-la no papel e atribuir a um doutor<br />
qualquer. Inventa-se a tese e o autor <strong>de</strong>la.<br />
E parece que, quanto mais maluca a i<strong>de</strong>ia,<br />
mais ganha corpo o time <strong>de</strong> signatários.<br />
O que tem <strong>de</strong> cientista apresentando as<br />
mais insensatas soluções não está no gibi.<br />
Nem, claro, nas revistas científicas. De<br />
minha parte, não esperem nada. Estou me<br />
pautando pelo mais sagrado e sofisticado<br />
princípio científico. A profunda tese do<br />
“vai que”. Como “vai que” o mais sensato<br />
procedimento seja o afastamento social,<br />
cá estou homiziado em casa, na companhia<br />
<strong>de</strong> minha mulher que, coitada, teve<br />
a madrasta sorte <strong>de</strong> ter-me como parceiro<br />
<strong>de</strong> isolamento. Eu, que já achava que ela é<br />
uma heroína por me aturar, agora a elevo à<br />
categoria <strong>de</strong> santa por fazê-lo todo o tempo,<br />
dia após dia, hora após hora. Felizmente<br />
a casa é gran<strong>de</strong> o suficiente para que cada<br />
um tenha sua área <strong>de</strong> trabalho com profilática<br />
distância. Falei <strong>de</strong> meu escritório? Pois<br />
aqui trabalho. Escrevo um tanto e remexo<br />
estantes, encontrando velhos artigos, velhos<br />
anúncios e velhas fotografias. Minha<br />
vida registrada em papel fotográfico, nas<br />
laudas, em recortes e CDs com filmes comerciais<br />
e gravações <strong>de</strong> rádio. Décadas <strong>de</strong><br />
profissão ven<strong>de</strong>ndo as coisas que traziam<br />
conforto, status, alegrias e facilida<strong>de</strong>s que<br />
hoje parecem jurássicas. E não falo do século<br />
passado, mas <strong>de</strong> anteontem, <strong>de</strong> ontem<br />
e, em alguns casos, hoje <strong>de</strong> manhã.<br />
Achei um anúncio <strong>de</strong> piano. Piano! Aquele<br />
imenso móvel que fazia sons martelando<br />
umas cordas e parece anacrônico não só<br />
pela potência acústica como pelo tamanho.<br />
A gran<strong>de</strong> maioria dos apartamentos hoje<br />
tem as mesmas dimensões <strong>de</strong> um piano<br />
<strong>de</strong> cauda. No entanto, houve época em que<br />
muitas famílias tinham na sala esse instrumento.<br />
O Rio, capital da República, chegou<br />
a ser um dos maiores mercados <strong>de</strong> pianos<br />
do mundo. A expressão “carregador <strong>de</strong> piano”<br />
para exemplificar um trabalho insano<br />
era comum. Estamos conferindo na prática<br />
a teoria <strong>de</strong> que as pessoas se adaptam às<br />
mais diferentes condições <strong>de</strong> vida. Pense<br />
num esquimó, num árabe no <strong>de</strong>serto, num<br />
morador <strong>de</strong> palafitas, num presidiário e você<br />
estará pensando em mulheres e homens<br />
sobrevivendo em condições completamente<br />
diferentes do que a nossa. E tocando a<br />
vida. Alguns até gostando.<br />
No Rio <strong>de</strong> Janeiro, informações sobre<br />
tiroteios interditando avenidas são trocadas<br />
por celular, tratadas como naturais. A<br />
expressão “está havendo tiroteio” causa<br />
o mesmo espanto do que seria a reação ao<br />
aviso <strong>de</strong> que está chovendo. Também achei<br />
num envelope colunas minhas <strong>de</strong> algumas<br />
décadas atrás. Décadas! Ou seja, venho contando<br />
casos há mais <strong>de</strong> 30 anos aqui neste<br />
espaço. E, tal como na velha piada, “é a primeira<br />
vez que acontece comigo”. Verda<strong>de</strong>.<br />
Nestas várias décadas, <strong>de</strong> uma forma ou <strong>de</strong><br />
outra, eu achava um jeito <strong>de</strong> fazer meu leitor<br />
achar graça. Desta vez estou incapaz <strong>de</strong><br />
encontrar um assunto que renda pelo menos<br />
um sorriso. Só me resta copiar <strong>de</strong> uma<br />
coluna <strong>de</strong> 1999 um trechinho. Tratava-se <strong>de</strong><br />
casos “saia curta” on<strong>de</strong> as pessoas falam o<br />
que não <strong>de</strong>vem. Era a história da secretária<br />
<strong>de</strong> um diretor respon<strong>de</strong>ndo ao telefone se o<br />
chefe <strong>de</strong>la iria <strong>de</strong>morar. Sua resposta foi <strong>de</strong>finitiva<br />
: “pra caralho!”<br />
Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />
e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />
editor e professor<br />
lulavieira.luvi@gmail.com<br />
22 3 <strong>de</strong> <strong>agosto</strong> <strong>de</strong> <strong>2020</strong> - jornal propmark