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edição de 3 de agosto de 2020

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STORYTELLER<br />

Geert Pieters/Unsplash<br />

Rir <strong>de</strong> quê?<br />

Achei um anúncio <strong>de</strong> piano. Aquele<br />

imenso móvel que fazia sons martelando<br />

umas cordas e parece anacrônico<br />

LuLa Vieira<br />

Eu nunca tive tanta dificulda<strong>de</strong> para fazer<br />

esta coluna como nestes dias <strong>de</strong><br />

pan<strong>de</strong>mia – uma rima que po<strong>de</strong>ria ser rica<br />

não fossem estes tempos. Explico. Sempre<br />

há espaço para rir, mesmo nos momentos<br />

mais terríveis. Ou, quando o bom senso<br />

recomenda, não se toca no assunto. Não se<br />

po<strong>de</strong> achar um lado engraçado num atentado<br />

às Torres <strong>de</strong> Nova York. Nem em boa<br />

parte das notícias políticas no Brasil. Muito<br />

menos nessa pan<strong>de</strong>mia on<strong>de</strong> a primeira<br />

morte foi a do bom senso. Por uma razão<br />

<strong>de</strong>sconhecida, o vírus entrou para a política<br />

e as pessoas brigam a respeito <strong>de</strong> remédios,<br />

procedimentos e contagem <strong>de</strong> mortos.<br />

Todo mundo tem uma teoria. Seja qual<br />

for o <strong>de</strong>spautério, há enorme possibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> ter um avalista <strong>de</strong> peso. Se não tiver, inventa-se.<br />

O que tenho lido <strong>de</strong> professor em<br />

Harvard falando os maiores absurdos não<br />

está nos anais. Tudo falso. Usei o exemplo<br />

<strong>de</strong> Harvard porque é um dos currículos<br />

mentirosos mais usados. Quando se quer<br />

justificar qualquer porralouquice basta<br />

colocá-la no papel e atribuir a um doutor<br />

qualquer. Inventa-se a tese e o autor <strong>de</strong>la.<br />

E parece que, quanto mais maluca a i<strong>de</strong>ia,<br />

mais ganha corpo o time <strong>de</strong> signatários.<br />

O que tem <strong>de</strong> cientista apresentando as<br />

mais insensatas soluções não está no gibi.<br />

Nem, claro, nas revistas científicas. De<br />

minha parte, não esperem nada. Estou me<br />

pautando pelo mais sagrado e sofisticado<br />

princípio científico. A profunda tese do<br />

“vai que”. Como “vai que” o mais sensato<br />

procedimento seja o afastamento social,<br />

cá estou homiziado em casa, na companhia<br />

<strong>de</strong> minha mulher que, coitada, teve<br />

a madrasta sorte <strong>de</strong> ter-me como parceiro<br />

<strong>de</strong> isolamento. Eu, que já achava que ela é<br />

uma heroína por me aturar, agora a elevo à<br />

categoria <strong>de</strong> santa por fazê-lo todo o tempo,<br />

dia após dia, hora após hora. Felizmente<br />

a casa é gran<strong>de</strong> o suficiente para que cada<br />

um tenha sua área <strong>de</strong> trabalho com profilática<br />

distância. Falei <strong>de</strong> meu escritório? Pois<br />

aqui trabalho. Escrevo um tanto e remexo<br />

estantes, encontrando velhos artigos, velhos<br />

anúncios e velhas fotografias. Minha<br />

vida registrada em papel fotográfico, nas<br />

laudas, em recortes e CDs com filmes comerciais<br />

e gravações <strong>de</strong> rádio. Décadas <strong>de</strong><br />

profissão ven<strong>de</strong>ndo as coisas que traziam<br />

conforto, status, alegrias e facilida<strong>de</strong>s que<br />

hoje parecem jurássicas. E não falo do século<br />

passado, mas <strong>de</strong> anteontem, <strong>de</strong> ontem<br />

e, em alguns casos, hoje <strong>de</strong> manhã.<br />

Achei um anúncio <strong>de</strong> piano. Piano! Aquele<br />

imenso móvel que fazia sons martelando<br />

umas cordas e parece anacrônico não só<br />

pela potência acústica como pelo tamanho.<br />

A gran<strong>de</strong> maioria dos apartamentos hoje<br />

tem as mesmas dimensões <strong>de</strong> um piano<br />

<strong>de</strong> cauda. No entanto, houve época em que<br />

muitas famílias tinham na sala esse instrumento.<br />

O Rio, capital da República, chegou<br />

a ser um dos maiores mercados <strong>de</strong> pianos<br />

do mundo. A expressão “carregador <strong>de</strong> piano”<br />

para exemplificar um trabalho insano<br />

era comum. Estamos conferindo na prática<br />

a teoria <strong>de</strong> que as pessoas se adaptam às<br />

mais diferentes condições <strong>de</strong> vida. Pense<br />

num esquimó, num árabe no <strong>de</strong>serto, num<br />

morador <strong>de</strong> palafitas, num presidiário e você<br />

estará pensando em mulheres e homens<br />

sobrevivendo em condições completamente<br />

diferentes do que a nossa. E tocando a<br />

vida. Alguns até gostando.<br />

No Rio <strong>de</strong> Janeiro, informações sobre<br />

tiroteios interditando avenidas são trocadas<br />

por celular, tratadas como naturais. A<br />

expressão “está havendo tiroteio” causa<br />

o mesmo espanto do que seria a reação ao<br />

aviso <strong>de</strong> que está chovendo. Também achei<br />

num envelope colunas minhas <strong>de</strong> algumas<br />

décadas atrás. Décadas! Ou seja, venho contando<br />

casos há mais <strong>de</strong> 30 anos aqui neste<br />

espaço. E, tal como na velha piada, “é a primeira<br />

vez que acontece comigo”. Verda<strong>de</strong>.<br />

Nestas várias décadas, <strong>de</strong> uma forma ou <strong>de</strong><br />

outra, eu achava um jeito <strong>de</strong> fazer meu leitor<br />

achar graça. Desta vez estou incapaz <strong>de</strong><br />

encontrar um assunto que renda pelo menos<br />

um sorriso. Só me resta copiar <strong>de</strong> uma<br />

coluna <strong>de</strong> 1999 um trechinho. Tratava-se <strong>de</strong><br />

casos “saia curta” on<strong>de</strong> as pessoas falam o<br />

que não <strong>de</strong>vem. Era a história da secretária<br />

<strong>de</strong> um diretor respon<strong>de</strong>ndo ao telefone se o<br />

chefe <strong>de</strong>la iria <strong>de</strong>morar. Sua resposta foi <strong>de</strong>finitiva<br />

: “pra caralho!”<br />

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />

e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />

editor e professor<br />

lulavieira.luvi@gmail.com<br />

22 3 <strong>de</strong> <strong>agosto</strong> <strong>de</strong> <strong>2020</strong> - jornal propmark

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