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Edição Especial do Centenário - Associação Brasileira de Imprensa

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Lisboa, 1975, quatro horas da manhã. O telefone<br />

toca na mesinha <strong>de</strong> cabeceira <strong>do</strong> Hotel Tivoli.<br />

Com a experiência <strong>de</strong> outros telefonemas<br />

àquela hora, sei quem é. Aten<strong>do</strong> e não me surpreen<strong>do</strong><br />

com a voz inconfundível, uma <strong>de</strong> suas<br />

marcas registradas:<br />

– Como vai a coisa?<br />

A<strong>do</strong>lpho não acredita em fuso horário, no Rio<br />

são onze horas da noite, por que seria madrugada<br />

na Europa?<br />

– Vai in<strong>do</strong>, A<strong>do</strong>lpho.<br />

Uma forma <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r sem respon<strong>de</strong>r, apenas<br />

iniciar o diálogo. Ele me pergunta sobre a crise<br />

política em Portugal, <strong>do</strong>u informações como ele<br />

gosta: bem resumidas e objetivas.<br />

– Está muito frio? Aí venta muito nessa época<br />

<strong>do</strong> ano.<br />

Acrescento que além <strong>do</strong> frio e <strong>do</strong> vento tem<br />

chovi<strong>do</strong> uma barbarida<strong>de</strong>, ou, como preferem os<br />

portugueses, <strong>de</strong> uma forma bestial.<br />

Desligo e tento <strong>do</strong>rmir. Cinco minutos <strong>de</strong>pois<br />

o telefone toca novamente.<br />

– Você está bem calça<strong>do</strong>?<br />

Digo que são quatro horas da manhã, preciso<br />

<strong>do</strong>rmir, tenho compromisso ce<strong>do</strong>. Mas ele insiste,<br />

quer saber se estou andan<strong>do</strong> pelas ruas alagadas<br />

com os tênis que geralmente uso. Garanto<br />

que não, por acaso estou usan<strong>do</strong> aquele rossetti<br />

yacht que ele trouxe para mim <strong>de</strong> Milão.<br />

– Uma porcaria! – diz A<strong>do</strong>lpho. E anuncia que<br />

eu vou ficar resfria<strong>do</strong>, que eu não sei cuidar <strong>de</strong><br />

minha saú<strong>de</strong>, sou teimoso e malcria<strong>do</strong>. Exalta-se.<br />

– Amanhã não tem compromisso porra nenhuma!<br />

Você vai na Rua da Prata, tem uma sapataria, fale<br />

com o gerente, diz que é meu amigo, ele tem umas<br />

botas muito boas, não passam água, pe<strong>de</strong> <strong>de</strong>sconto,<br />

<strong>de</strong>z... não, trinta por cento, ele é ladrão mas<br />

tem os melhores sapatos da Europa. Perto <strong>de</strong>les<br />

os sapatos italianos são uma merda.<br />

Jornal da ABI<br />

A<strong>do</strong>lpho<br />

Convida<strong>do</strong> a fazer um <strong>de</strong>poimento sobre A<strong>do</strong>lpho Bloch<br />

para esta <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> <strong>do</strong> <strong>Centenário</strong> da ABI, Cony man<strong>do</strong>u<br />

poucas horas <strong>de</strong>pois este relato que mostra a alma <strong>do</strong> cria<strong>do</strong>r<br />

da Manchete, Fatos & Fotos, Desfile, Pais & Filhos, TV Manchete<br />

e outros empreendimentos jornalísticos marcantes <strong>do</strong> século 20.<br />

POR CARLOS HEITOR CONY<br />

Cony em frente a uma das obras <strong>de</strong> arte que embelezavam<br />

a entrada <strong>do</strong> prédio da Editora Bloch, na Rua <strong>do</strong> Russel.<br />

<strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> <strong>do</strong> <strong>Centenário</strong><br />

Volume<br />

2<br />

FOLHA IMAGEM/PATRICIA SANTOS<br />

Concor<strong>do</strong> que os sapatos italianos (que ele<br />

gosta <strong>de</strong> usar e presentear) são uma droga, mas<br />

eu quero <strong>do</strong>rmir. Ele <strong>de</strong>sliga.<br />

Desta vez, nem cinco minutos se passam. O<br />

telefone toca mais uma vez.<br />

– Olha, é melhor comprar <strong>do</strong>is, a bota e um<br />

sapato social, po<strong>de</strong> gastar que eu pago <strong>de</strong>pois.<br />

Mas pe<strong>de</strong> <strong>de</strong>sconto. Quarenta por cento. Diz que<br />

é para mim.<br />

Tá bem, A<strong>do</strong>lpho, tá bem, fique sossega<strong>do</strong>,<br />

agora me <strong>de</strong>ixe <strong>do</strong>rmir. Ajeito-me nos lençóis,<br />

penso em tirar o fone <strong>do</strong> gancho, mas sei que ele<br />

ainda vai telefonar. Não dá outra.<br />

– Você levou as meias <strong>de</strong> lã? – Recomenda uma<br />

camisaria no Rocio, é barateira, além das meias,<br />

tem as melhores camisas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, “iguais às<br />

que o Adriano Moreira usa”.<br />

A<strong>do</strong>lpho acha o Adriano Moreira elegante - e<br />

o professor é elegante mesmo. Vamos <strong>de</strong>sligar,<br />

mas <strong>de</strong> repente, ele reclama:<br />

— Você não me disse como vai a coisa!<br />

Vai bem, A<strong>do</strong>lpho, quer dizer, vai mal, pior<br />

<strong>do</strong> que os sapatos vagabun<strong>do</strong>s e das meias molhadas<br />

é que a coisa ficou meio sem graça sem<br />

você. Vai ser difícil levar esta barra. Sempre se<br />

dará um jeito.<br />

O que não terá jeito é não ouvir mais a sua voz<br />

grossa, enfrentar seus fusos horários <strong>de</strong>sencontra<strong>do</strong>s,<br />

sem mais sofrer essa mania que você tem<br />

<strong>de</strong> saber como vai a coisa. A coisa irá, <strong>de</strong> alguma<br />

forma, pois não se po<strong>de</strong> esquecer um homem que,<br />

a oito mil quilômetros <strong>de</strong> distância, um oceano<br />

no meio, quer saber se estou agasalha<strong>do</strong>, proteger<br />

meus passos, guiar minha sauda<strong>de</strong>.<br />

Jornalista e escritor, membro da Aca<strong>de</strong>mia <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> Letras, na qual<br />

suce<strong>de</strong>u a Herberto Sales na ca<strong>de</strong>ira número 3, Carlos Heitor Cony<br />

trabalhou com A<strong>do</strong>lpho Bloch em diferentes publicações e na TV<br />

Manchete, on<strong>de</strong> dirigiu o núcleo <strong>de</strong> dramaturgia e promoveu<br />

montagens antológicas, como a telenovela Kananga <strong>do</strong> Japão.<br />

TATIANA CONSTANT/AE<br />

O GRÁFICO QUE TRANSFORMOU IMAGENS EM MANCHETES<br />

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