PDF - Leitura Gulbenkian - Fundação Calouste Gulbenkian
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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />
102<br />
tendimento superior das coisas permaneceu sempre nele mas toda a sua<br />
existência foi marcada pela errância e pela solidão, pela procura de um lar<br />
que nunca teve, e nunca conseguiu ou não quis construir; oriundo de uma<br />
sociedade que extremava as classes sociais, marcou-o sempre o estigma<br />
das suas origens e, mesmo quando reconhecido e admirado entre os ricos<br />
e poderosos do Mundo do seu tempo, apesar de uma satisfação evidente,<br />
certo desconforto permanecia nesse espírito hipersensível e orgulhoso.<br />
O conto foi, para Andersen, não só forma de exorcizar as origens, elevando-<br />
-se acima da sua condição, como também de se elevar acima dos poderosos<br />
pela imortalidade do seu génio. De acordo com Isabelle Jan, duas<br />
palavras resumem simultaneamente o seu génio e o seu destino: ele foi o<br />
narrador e foi o viajante 27 . Na obra anderseniana, a oralidade precede e sobrepõe-se<br />
à escrita, e em toda ela perpassa a interrogação sobre a natureza<br />
do conto e o papel do contador que não se limita a subjazer à narrativa,<br />
antes está lá presente sob várias formas. Para além disso, o narrador parte,<br />
com frequência, à procura do conto, porque ele se esconde em todo o lado<br />
e é preciso saber escutar e tocar as coisas pois aí reside a inspiração; não<br />
basta ver de longe, é necessário aproximar-se e entrar uma vez que tudo<br />
tem uma história de vida para contar.<br />
Os temas dos seus contos 28 desenvolvem-se à volta do núcleo constituído<br />
pelo narrador, pelas personagens - humanas, animais ou objectos - e pelas<br />
paisagens - externas ou internas - numa atmosfera de quase permanente<br />
realismo, em que o sonho, por norma, não invade a vida real. Vamos encontrar,<br />
de 1835 a 1872, temas populares - expurgados e redimensionados<br />
- mas, sobretudo, temas originais, com o cunho, ora humorístico, ora grave<br />
de vários desdobramentos de um Andersen quase omnipresente, envergando,<br />
muitas vezes, as vestes das personagens, vivendo por transferência<br />
ou simpatia, até mesmo envelhecendo e recordando, num eterno retorno,<br />
fazendo sempre ouvir a sua voz, particularmente nos contos “O Sapo”<br />
(1866) e “O Patinho Feio” (1843).<br />
“As Flores da Idinha” (1835) esboçam, desde cedo, uma performance de<br />
Andersen enquanto jovem; o contraponto entre o pensamento animista<br />
da infância, representado pela simbiose entre Idinha e o estudante, que<br />
acreditam na “vida” das flores, e a razão dos adultos (o professor de Botâni-<br />
27 A propósito de Andersen e dos seus contos destaca-se, pela originalidade de perspectivas, o capítulo<br />
“Andersen ou la Réalité”, de Isabelle Jean, in La Littérature Enfantine, Paris, Les Éditions Ouvrières,<br />
5ème édition, 1985, pp. 57-67.<br />
28 As citações dos contos que, a partir de agora, se transcrevem foram retiradas das traduções portu-<br />
guesas anteriormente indicadas