17.04.2013 Views

PDF - Leitura Gulbenkian - Fundação Calouste Gulbenkian

PDF - Leitura Gulbenkian - Fundação Calouste Gulbenkian

PDF - Leitura Gulbenkian - Fundação Calouste Gulbenkian

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

uma noite passada no Sahara marroquino, quando eu e um amigo meu, que<br />

é um companheiro de viagem exemplar, nos tivemos de recolher de uma<br />

tempestade de areia, num abrigo de ocasião – uma espécie de acampamento<br />

berbere permanente, onde os viajantes de passagem são servidos<br />

do que houver na panela, dormem em tendas colectivas e, se tiverem sorte,<br />

até podem tomar um duche frio. Como, nesse fim de dia, a tempestade<br />

crescia descontrolada, tivemos de passar sem o duche, comemos rapidamente<br />

uma tagine de borrego – pobre de carne, mas maravilhosa de sabor – e<br />

recolhemos a uma tenda com uns doze colchões dispostos na areia e onde<br />

éramos os únicos hóspedes. Avisadamente, esse meu amigo foi-se deitar<br />

num dos colchões do fundo, longe da abertura da tenda, por onde a areia<br />

já começava a entrar em golfadas sucessivas. Uma tempestade de areia é<br />

um espectáculo cósmico que me fascina e me aterroriza, ao mesmo tempo.<br />

E, nessa ocasião, des-prezando os sensatos conselhos do meu companheiro<br />

de viagem, tendo triunfado o fascínio sobre o terror, fui-me deitar<br />

exactamente junto à entrada da tenda, no primeiro colchão. Durante cerca<br />

de uma hora, até ser vencido pelo sono e pelo cansaço, fiquei ali, petrificado<br />

de espanto, a ouvir aquele ruído ensurdecedor, a assistir àquela tremenda<br />

batalha entre o céu, a noite e o vento, e obviamente submerso debaixo de<br />

nuvens de areia. Por incrível que possa parecer, adormeci assim, embalado<br />

por aquele caos apocalíptico e acordei, como seria de esperar, coberto de<br />

areia, entranhado de areia em tudo o que era centímetro quadrado de roupa,<br />

de orifício ou de pele. Mas foi inesquecível; foi uma das melhores noites<br />

da minha vida. Tão inesquecível e tão importante que ainda hoje, às vezes,<br />

quando deitado no conforto do meu colchão ortopédico, a cabeça em almofadas<br />

de penas e um silêncio adequado, apesar de tudo não consigo<br />

adormecer, acontece-me pensar que estou nessa tenda no deserto de Marrocos,<br />

debaixo da tempestade de areia e, então, adormeço em paz: assim<br />

concluí que a insónia é um luxo urbano-depressivo.<br />

Viajar é também um acto de liberdade. Porque viajar é conhecer e todo o<br />

conhecimento é uma condição de liberdade. Viajar é descobrir o outro – os<br />

seus costumes, as suas tradições, o seu país, a sua paisagem, os seus<br />

sonhos e as suas ilusões. Viajar é ver as coisas em perspectiva – nós e os<br />

outros, o nosso mundo e o dos outros. É compreender, apreender, aceitar<br />

as diferenças. Por isso, a viagem é o maior antídoto, também, contra a ignorância<br />

e contra a auto-suficiência, de onde nascem todos os fanatismos<br />

e todas as intolerâncias.<br />

Eu cubro a cabeça numa sinagoga, descalço-me numa mesquita, não<br />

porque tenha passado a acreditar em Deuses ou Religiões alheias e que me<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

29

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!