Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...
Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...
Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
- Sossega, meu rapaz. Sou eu.<br />
- Não, o outro!<br />
- Estamos sós. V<strong>em</strong> comigo!<br />
Atraía-o para o espelho. Alberto com lindas forças venceu o médico.<br />
- Não quero!<br />
- Sossega Alberto!<br />
- Alberto?...qu<strong>em</strong> é Alberto!<br />
- És tu.<br />
- Eu! ... Não! <strong>de</strong>ve ser o outro... o moço! 351<br />
A partir daí se <strong>de</strong>senrola o drama <strong>de</strong> Alberto, que se acredita José, ou melhor,<br />
<strong>de</strong> José que se vê no corpo <strong>de</strong> Alberto. Alberto ou José? É a dúvida lançada pelo autor<br />
do conto, que parece mais uma vez ter-se inspirado <strong>em</strong> Ribot e seu livro sobre as<br />
mudanças <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong>: Pathologie frénétique <strong>de</strong>s chang<strong>em</strong>ents <strong>de</strong> personalité.<br />
Nas notas <strong>de</strong> rodapé <strong>de</strong>ste conto, aparece uma série <strong>de</strong> referências a teóricos da<br />
psicologia e da psicopatologia, além <strong>de</strong> Ribot, Bergson, Le Bon, James, Ebbinghaus,<br />
Woodworth e Lombroso. Falham todas as tentativas do “impru<strong>de</strong>nte e glorioso<br />
cientista” <strong>de</strong> fazer com que o operário italiano José aceite ser o aviador Alberto. A<br />
experiência “científica” termina, e com ela a vida <strong>de</strong> Alberto/José, a partir da última<br />
tentativa do Dr. Chiz <strong>de</strong> confirmar o sucesso da cirurgia, baseado na crença <strong>de</strong> uma<br />
m<strong>em</strong>ória muscular: “... Tão linda a operação! mas o cérebro é que sente... que<br />
manda... mas o corpo... aviador... avião... m<strong>em</strong>ória muscular... é milhor... sim, é<br />
milhor. Acaba-se duma vez”. 352 Alberto é conduzido pelo cirurgião a dirigir um avião,<br />
e enfim “os dois ‘ilustres representantes da ciência e do esporte paulistano’ foram se<br />
espedaçar muito longe nos campos vazios”.<br />
<strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> utiliza-se da metáfora do cérebro como se<strong>de</strong> da<br />
personalida<strong>de</strong>, da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do sujeito. O corpo é o <strong>de</strong> Alberto, mas a personalida<strong>de</strong> é<br />
<strong>de</strong> José. No entanto, as ativida<strong>de</strong>s automáticas, como pegar as meias, as botinas, o<br />
pijama roxo, eram as <strong>de</strong> Alberto, o que não o priva <strong>de</strong> equivocar-se, <strong>de</strong> “se tromper <strong>de</strong><br />
lisière” (como diz a personag<strong>em</strong> Mad<strong>em</strong>oiselle <strong>de</strong> “Atrás da catedral <strong>de</strong> Ruão”). Dura<br />
sorte <strong>de</strong> um ser híbrido, heterogêneo. Para complicar as coisas, a biografia <strong>de</strong> José<br />
incluía a culpa pela morte <strong>de</strong> dois filhos, <strong>em</strong> cumplicida<strong>de</strong> com a esposa. Confusão:<br />
351 M. <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, “História com data”, op. cit., p. 135.<br />
352 Id<strong>em</strong>, p.151. A crítica cortante aos abusos da ciência e da prática médicas, que <strong>de</strong>spontam neste<br />
conto, também a encontramos <strong>em</strong> vários contos e crônicas <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, <strong>de</strong>ntre eles “O<br />
alienista”.<br />
146