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Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...

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ingenuida<strong>de</strong> o nosso romance t<strong>em</strong> certamente muitas <strong>de</strong> suas falhas. Mas é possível<br />

que ela seja ao mesmo t<strong>em</strong>po a sua maior força.<br />

Essas duas afirmações exig<strong>em</strong> exame d<strong>em</strong>orado a que é impossível proce<strong>de</strong>r<br />

aqui. Ficam por isso, no ar. E enquanto não se faz a discussão ampla, qu<strong>em</strong> for meu<br />

amigo que vá pensando nelas. E no mundo <strong>em</strong> que se passam os nossos romances, nas<br />

almas que viv<strong>em</strong> neles, na <strong>de</strong>spreocupação que revelam autores e personagens,<br />

assoberbados pelos probl<strong>em</strong>as comuns aos <strong>de</strong>putados e às donas <strong>de</strong> casa, <strong>de</strong> qu<strong>em</strong><br />

parece partilhar a visão do mundo. A isso qualquer pessoa <strong>de</strong> bom aviso me<br />

respon<strong>de</strong>rá com Machado <strong>de</strong> Assis. Eu, porém, retrucarei l<strong>em</strong>brando que Machado <strong>de</strong><br />

Assis não é uma resposta, ainda é uma pergunta. Depois, quanta ingenuida<strong>de</strong> mesmo<br />

nessa admirável exceção. E como podia <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser assim, se o meio era esse, se os<br />

dramas não passavam <strong>de</strong> um sentimentalismo el<strong>em</strong>entar, resultando dos pequenos<br />

conflitos do indivíduo com a socieda<strong>de</strong>zinha provinciana <strong>em</strong> formação. O que era essa<br />

socieda<strong>de</strong>, e o que podiam ser aqueles conflitos é fácil imaginar pela parte <strong>de</strong>scritiva e<br />

pitoresca <strong>de</strong> tais romances, b<strong>em</strong> como pelas crônicas <strong>de</strong> França Júnior. O romancista<br />

fixava o que via. E andava muito b<strong>em</strong>. Tal como se fez, o romance brasileiro tinha<br />

ainda bastante lugar para imaginação.<br />

Até que ponto <strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, o indigitado autor <strong>de</strong> “Amar, Verbo<br />

Intransitivo”, se afastou da tradição brasileira, por outro lado até que ponto se po<strong>de</strong><br />

dizer que ele continua essa tradição? É difícil precisar o limite: contudo, po<strong>de</strong>-se notar<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo no gran<strong>de</strong> poeta <strong>de</strong> língua brasileira as duas preocupações combinadas <strong>de</strong><br />

trazer um coeficiente pessoal e mo<strong>de</strong>rno ao nosso romance, esforçando-se por mantêlo<br />

tanto quanto possível <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> sua linha tradicional. E o livro <strong>de</strong>le seria a<br />

resultante i<strong>de</strong>al <strong>de</strong>ssas duas forças se não tivesse havido algum excesso <strong>em</strong> ambas. O<br />

preconceito (ou o hábito) <strong>de</strong> fazer mo<strong>de</strong>rnismo, transparece <strong>em</strong> certas frases, <strong>em</strong><br />

certos <strong>de</strong>talhes, numa certa atitu<strong>de</strong> geral do autor refletida por sua vez <strong>em</strong> alguns<br />

modos <strong>de</strong> dizer e na maneira <strong>de</strong> contar. Essa atitu<strong>de</strong> provém do excessivo domínio<br />

sobre si mesmo que há <strong>em</strong> toda prosa <strong>de</strong> <strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, da d<strong>em</strong>asiada consciência<br />

que ele t<strong>em</strong> das suas possibilida<strong>de</strong>s e intenções. Isso o conduz, talvez por um<br />

movimento inconsciente <strong>de</strong> orgulho, a suprimir o mistério, iluminar os objetos por<br />

todas as faces e fazer pro leitor olhares <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> não vai nessa, como um mágico que<br />

quisesse mostrar o truque, pra todos ver<strong>em</strong> que ele mesmo não está acreditando no<br />

que faz. Em língua <strong>de</strong> branco: uma atitu<strong>de</strong> que consiste <strong>em</strong> bancar o sabido, o antigo,<br />

o da malandrag<strong>em</strong>. Um jeito caçoísta <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar as coisas e a si mesmo, um nãolevar-a-sério<br />

<strong>de</strong> intenção humorística mas efeito duvidoso. E assim chegamos ao<br />

ponto <strong>de</strong> transição no livro entre o mo<strong>de</strong>rno e o tradicional: o humorismo <strong>de</strong> <strong>Mário</strong> <strong>de</strong><br />

Andra<strong>de</strong>. Isto é, um dos seus lados fracos. <strong>Mário</strong> não é engraçado. Qu<strong>em</strong> sabe até se<br />

foi por isso que ele se propôs a começar uma consolidação do humorismo nacional? A<br />

graça brasileira meio s<strong>em</strong> graça, meio inábil, meio bocó. Graça <strong>de</strong> gente simples e<br />

boa, graça à flor da pele que quando aprofunda mais é <strong>de</strong>saforo.<br />

Se isto não é uma regra inflexível, se ao contrário pod<strong>em</strong>os apontar exceções<br />

que vêm <strong>de</strong> Gregório <strong>de</strong> Mattos ao morro da Mangueira, é pelo menos o geral e foi a<br />

essa espécie <strong>de</strong> graça que se aplicou <strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>. Deixando <strong>de</strong> parte a<br />

inutilida<strong>de</strong> que me parece haver <strong>em</strong> toda a tentativa voluntária <strong>de</strong> tradicionalização<br />

seja do que for, creio que isso concorreu para o segundo excesso <strong>de</strong> que eu falava há<br />

pouco. <strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, observador sagaz e enternecido da vida, penso que lhe<br />

sacrificou um pouco da força lírica que é a sua melhor qualida<strong>de</strong> e que tão gran<strong>de</strong><br />

assim só ele é que t<strong>em</strong>, ninguém mais.<br />

Mas <strong>em</strong> “Amar, Verbo Intransitivo” a tradição é ainda a vida da família<br />

brasileira, atualizada e focalizada por alguém que exerce seu direito <strong>de</strong> escolha e não<br />

xxvii

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