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Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...

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estarmente. Me queima feito uma caçoada, uma alegoria, uma assombração<br />

insatisfeita” 202 . Uma fantasia não realizada, um <strong>de</strong>sejo insatisfeito que os incitava a<br />

confessar ao mundo “o que nunca existira entre nós dois”. A ingenuida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Fre<strong>de</strong>rico, sua infância, ou, como qualificava o narrador, “a castida<strong>de</strong> serena do<br />

amigo”, fora quebrada quando Fre<strong>de</strong>rico <strong>de</strong>scobre nas mãos <strong>de</strong> Juca o livro História<br />

da prostituição na antiguida<strong>de</strong>. O <strong>em</strong>préstimo do livro foi feito com muito t<strong>em</strong>or pela<br />

revelação do que ali se fazia saber, vale dizer, a existência da sexualida<strong>de</strong>, que<br />

maculava a pureza daquela amiza<strong>de</strong>. Juca, dali para a frente, ficaria dividido entre o<br />

medo e o <strong>de</strong>sejo, o querer e o não querer, sentir-se-ia puro e impuro. “Nessa noite é<br />

que todas essas idéias <strong>de</strong> exceção, instintos espaventados, <strong>de</strong>sejos curiosos, perigos<br />

<strong>de</strong>sumanos me picavam com uma clareza tão dura que varriam qualquer gosto” 203 .<br />

Além <strong>de</strong> lutar contra os próprios <strong>de</strong>sejos, os dois rapazes tiveram que brigar contra os<br />

“bocas <strong>de</strong> serpente” que reparavam naquela “amiza<strong>de</strong> assim tão agressiva”. Eram os<br />

colegas da escola que encarnavam a moral social, a con<strong>de</strong>nação do julgamento do<br />

Outro. E quando num gesto impensado, <strong>em</strong> meio a uma discussão boba, Juca estala<br />

um beijo no nariz do amigo, que respon<strong>de</strong> com outro beijo, logo se assustam com “a<br />

sensação <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nados que explodiu”, e então “nos separamos conscientes”.<br />

Paralelamente àquela amiza<strong>de</strong>, aparecia Rose nos horizontes <strong>de</strong> Juca, com<br />

qu<strong>em</strong> inicia sua vida sexual. “Si pouco menos <strong>de</strong> um ano antes, conhecêramos juntos<br />

pra que nos servia a mulher, só agora, aos <strong>de</strong>zesseis anos, é que a vida sexual se<br />

impusera entre os meus hábitos” 204 . Os seus <strong>de</strong>scobrimentos <strong>de</strong> amor, Juca conta a<br />

Fre<strong>de</strong>rico com minúcias, só “pra machucar”.<br />

Juca cria uma armadilha para absolvê-los, aliviá-los da culpa: induz o amigo a<br />

rasgar, com ele, o livro sobre a prostituição, prova cabal da impureza que rondava<br />

suas “infâncias”: “E as ruas foram sujadas pelos <strong>de</strong>stroços irreconstituíveis da<br />

‘História da prostituição na antiguida<strong>de</strong>’”. Talvez o que Juca não soubesse (ou tentava<br />

criar artifícios para esquecer), é que os restos espalhados no ato <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição do livro<br />

<strong>de</strong>ixam rastros que não se apagam, cingindo nos corpos ou nas l<strong>em</strong>branças a marca do<br />

202 Id<strong>em</strong>, p. 129. <strong>Mário</strong>, no conto intitulado “M<strong>em</strong>ória e assombração” ( Os filhos da Candinha),<br />

estabelece uma relação entre a fragilida<strong>de</strong> da m<strong>em</strong>ória e a força <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>, o exagero da<br />

assombração. Parece mais uma tradução andradina, muito própria, para um termo freudiano: fantasia.<br />

Numa <strong>de</strong>finição muito interessante, diz que as assombrações são “sonhos <strong>de</strong> acordado revestidos <strong>de</strong><br />

palavras”, o que nos leva a pensar na articulação entre imaginário e simbólico, na fantasia, <strong>em</strong> termos<br />

lacanianos. E, avançando o sentido <strong>de</strong> sua tradução, aclara que não se trata <strong>de</strong> mera repetição, pois<br />

“estas assombrações, por completo diferentes <strong>de</strong> tudo quanto passou, a gente chama <strong>de</strong> passado”.<br />

203 Id<strong>em</strong>, p. 111.<br />

204 Id<strong>em</strong>, p. 119.<br />

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