28.10.2014 Views

as_virgens_suicidas__jeffrey_eugenides

as_virgens_suicidas__jeffrey_eugenides

as_virgens_suicidas__jeffrey_eugenides

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

parecia ganir dentro da garagem, e quando a porta automática subia, o veículo emergia<br />

hesitante e um pouco bambo, como um bicho perneta. Através do para-brisa enxergávamos o<br />

sr. Lisbon ao volante, com o cabelo ainda molhado e o rosto às vezes salpicado de espuma de<br />

barbear, m<strong>as</strong> ele não reagia quando o escapamento batia no meio-o, como sempre<br />

acontecia, levantando faísc<strong>as</strong>. Às seis da tarde ele voltava para c<strong>as</strong>a. Quando se aproximava da<br />

garagem, a porta estremecia para engolfar o carro, e aí não o víamos mais até a manhã<br />

seguinte, quando o tinido do escapamento anunciava sua partida.<br />

O único contato mais extenso com <strong>as</strong> menin<strong>as</strong> ocorreu no m de agosto, quando Mary<br />

apareceu sem marcar hora no consultório dentário do dr. Becker. Conversamos com ele<br />

muitos anos mais tarde, com dezen<strong>as</strong> de moldes ortodônticos de gesso nos lançando sorrisos<br />

tortos do alto de armários envidraçados. Cada conjunto de dentes trazia o nome da infeliz<br />

criança que tinha sido forçada a tolerar a m<strong>as</strong>sa dentro da boca, e aquele panorama nos<br />

recordava d<strong>as</strong> tortur<strong>as</strong> medievais de noss<strong>as</strong> própri<strong>as</strong> históri<strong>as</strong> odontológic<strong>as</strong>. O dr. Becker<br />

falou por algum tempo antes de começarmos a prestar atenção, pois voltamos a sentir o<br />

dentista martelando grampos metálicos em nossos molares, ou usando borrachinh<strong>as</strong> para<br />

prender nossos dentes de cima aos dentes de baixo. Noss<strong>as</strong> língu<strong>as</strong> saíram à cata dos bolsões<br />

de tecido cicatrizado deixados por aparelhos que puxaram noss<strong>as</strong> arcad<strong>as</strong> para trás, e mesmo<br />

quinze anos depois os sulcos ainda pareciam adocicados pelo sangue. M<strong>as</strong> o dr. Becker estava<br />

falando. “Lembro de Mary porque ela veio sem os pais. Foi a primeira vez que uma criança<br />

fez isso. Quando perguntei o que queria, ela colocou dois dedos dentro da boca e levantou o<br />

lábio superior. Aí perguntou: ‘Quanto?’. Estava com medo que os pais não tivessem como<br />

pagar.”<br />

O dr. Becker se recusou a fazer um orçamento para Mary Lisbon. “Traga sua mãe aqui e a<br />

gente conversa”, respondeu. De fato, o processo teria sido bem complicado, já que Mary,<br />

como <strong>as</strong> irmãs, parecia ter um par de caninos a mais. Decepcionada, ela se recostou na<br />

cadeira do dentista, colocando os pés para cima, enquanto um tubo prateado derramava água<br />

dentro de um copo com canudo. “Precisei deixar a menina sentada na cadeira”, contou o dr.<br />

Becker. “Cinco crianç<strong>as</strong> estavam esperando. Depois minha enfermeira contou que ouviu ela<br />

chorar.”<br />

As menin<strong>as</strong> não apareceram mais em grupo até o dia da volta às aul<strong>as</strong>. No dia 7 de<br />

setembro, em que o frio arruinou tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> esperanç<strong>as</strong> de um veranico de outono, Mary,<br />

Bonnie, Lux e Therese vieram para a escola como se nada tivesse acontecido. Ainda que<br />

tenham p<strong>as</strong>sado qu<strong>as</strong>e todo o tempo grudad<strong>as</strong>, mais uma vez conseguimos enxergar nov<strong>as</strong><br />

diferenç<strong>as</strong> entre el<strong>as</strong>, e sentimos que se continuássemos prestando tanta atenção era capaz<br />

que começássemos a entender o que estavam sentindo e quem eram. Como a sra. Lisbon não<br />

tinha levado <strong>as</strong> menin<strong>as</strong> para comprar uniformes novos, estavam usando os mesmos do ano<br />

anterior. As vestiment<strong>as</strong> empertigad<strong>as</strong> estavam just<strong>as</strong> demais (apesar de tudo, <strong>as</strong> menin<strong>as</strong><br />

continuaram crescendo) e el<strong>as</strong> pareciam desconfortáveis. Mary tinha enfeitado o traje com

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!