4 | Outlook | Sexta-feira, 1.10.2010IDEIAS FORTESLira NetoPor que uma biografiade Getúlio Vargas?Sempre me inquietou o fato de Getúlio nunca ter sido alvo de uma biografia jornalísticaexaustiva, moderna, cuidadosa no trato com as fontes primárias, atenta àprofusão de estudos acadêmicos a respeito do período e, em especial, sem o impressionismoda maioria dos relatos biográficos já publicados sobre o personagem.O historiador norte-americano Robert Levine, na abertura de seu Pai dos Pobres?,demonstrava o mesmo incômodo, ao constatar que não há “uma biografiacompleta e atualizada de Vargas”.O também brasilianista Thomas Skidmore, autor de <strong>Brasil</strong>: de Getúlio a Castello,já chegou a escrever que a tarefa de biografar Getúlio exigiria “quase toda a vida deum eventual biógrafo”.Na semana passada, quando Ancelmo Gois revelou no O Globo que estou trabalhandojustamente em uma biografia de Getúlio a ser publicada pela Companhia dasLetras, um amigo jornalista me ligou para desejar boa sorte e para lastimar a perdade minha presença por uns bons tempos.“Você amarrou uma bola de ferro em seu tornozelo”, brincou. “Seus dias desossego terminaram. Getúlio vai lhe tomar cada minuto do dia, sugar-lhe cadagota de sangue, exigir-lhe cada fiapo de energia”, avisou-me o colega, tambémautor de biografias.Ao mesmo tempo, agradeceu-me pelo peso que eu lhe tirara das costas. “Eu já cogiteiescrever uma biografia de Getúlio”, confidenciou-me. “A notícia de que vocêsaiu na frente me libertou, para sempre, de tal fardo”, comemorou.Getúlio é, sem dúvida, o personagem mais controvertido da política brasileira.Ninguém passou mais tempo no poder do que ele. Ninguém despertou tanta paixãoe tanto ódio. No exercício da presidência, ninguém foi mais enigmático, impenetrável,contraditório, ambivalente.Mais de meio século após sua morte, seu fantasma e as representações coletivasem torno de sua figura ainda nos rondam, provocando contestações, desafiandoexegetas, contrapondo analistas.Antes de receber a faixa presidencial em 1994, Fernando Henrique Cardoso defendeuque era a hora do <strong>Brasil</strong> virar uma página histórica: “Resta um pedaço donosso passado político que ainda atravanca o presente e retarda o avanço da sociedade.Refiro-me ao legado da Era Vargas”.Pois em controvérsia recentíssima, às vésperas de mais uma eleição presidencial— o jornalista e cientista político André Singer, de um lado; e o também cientistapolítico Sérgio Fausto e a professora Maria Sylvia Carvalho Franco de outro —, discute-sena Folha de S.Paulo se o suposto legado de Getúlio ao chamado “lulo-petismo”é a marca de um espólio legítimo ou a perversão de uma herança maldita.Em se tratando de Getúlio, muitas perguntas permanecem sem resposta. Já foramutilizadas toneladas de papel e tinta para se tentar “decifrá-lo”. Biógrafos oficiais,como Paul Frischauer, André Carrazzoni, Leal de Souza e Barros Vidal encarregaram-sede traçar-lhe uma hagiografia tão caudalosa quanto laudatória.No flanco oposto, êmulos como Affonso Henriques e seu cáustico Ascensão eQueda de Getúlio Vargas apostaram na total desconstrução do biografado. Nesseembate, apologistas e detratores forçosamente se anulam, pela parcialidade dos sinaiscontrários.Bem mais equilibrados, Foster Dulles, Paulo Brandi e Hélio Silva, com virtudese lacunas, preocuparam-se em registrar a trajetória política de Getúlio, mas passaramao largo da percuciência no detalhe, da dimensão estética da narrativa eda investigação quase arqueológica da esfera privada, matérias-primas de umabiografia jornalística.Sem idêntico distanciamento, o jornalista José Augusto Ribeiro, renunciando demodo deliberado à isenção, escreveu um perfil apaixonado de Getúlio em A Era Vargas.Fernando Jorge, igualmente jornalista, também de modo assumido, sobrepôs ocontexto ao personagem em Getúlio Vargas e o Seu Tempo. Por fim, de modo provocador,Juremir Machado optou pela forma de romance para contar a história de Getúlio,mesclando ficção e história, explicitando as reservas teóricas e metodológicasdo autor ao gênero biográfico.Diante de tudo isso, caberia a pergunta: ainda há o que escrever sobre Getúlio?Uma biografia dele ainda se faz pertinente e necessária? Sem pestanejar, a respostaé sim.Há sempre documentos a descobrir e, principalmente, novas questões a fazer,ângulos diferentes a explorar. Não existem biografias definitivas. Nenhum livroconsegue dar conta da complexidade de uma vida e de um indivíduo. Especialmentese esse indivíduo foi tão múltiplo e polêmico quanto Getúlio Dornelles Vargas.Ele é, sem dúvida,o personagem maisimportante — e omais controvertido— da políticabrasileira de todosos tempos. Ninguémdespertou tantapaixão e tantoódio quanto ele.Uma biografia aindase faz pertinentee necessária?Sem pestanejar,a resposta é sim.Há sempredocumentosa descobrire, principalmente,novas questõesa fazer, ângulosdiferentesa explorar. Nãoexistem biografiasdefinitivasLiraNeto,jornalistaeescritor,éautordePadreCícero:Poder,FéeGuerranoSertão(CompanhiadasLetras),Maysa:SóNumaMultidãodeAmores(Globo)eOInimigodoRei:UmaBiografiadeJosédeAlencar(Globo).
Outlook | Sexta-feira, 1.10.2010 | 5CRÔNICAHumberto WerneckMemórias de umavestruz literárioModéstia à parte, fui um menino bem esquisitinho. Depois, há quemdiga, piorei. Não é verdade. Não daria conta de superar em bizarria —em chatice, vá lá — o frangote que fui na puberdade. A avalanche dehormônios não explica tudo. Não me lembro de ter conhecido, antes,durante ou depois, um ser que desfiasse o meu vocabulário de então.Talvez o Antônio Houaiss. Não era por acaso que lá no bairro volta emeia alguém me interpelava:— Ei, irmão do Rodrigo, vem falar difícil pra gente!Não cheguei a topar provocações, mas certa vez deixei de queixo caídoum tio que foi xeretar o que havia no meu prato:— O que temos aí?— Lipídios, glicídios e protídeos — pontifiquei.Foi o que bastou para ganhar do tio o apelido de Zé Lipídio.Ouvia entoar a ave galiforme da família dos fasianídeos — ou, se vocêprefere, ouvia o galo cantar — e tratava logo de utilizar o vocábulo recém-aprendido,sem o cuidado de saber o que estava dizendo. Arranqueigargalhadas de meu pai com um “diabo aquático” em vez de “diabo aquatro”. Escaldado, tratei de me tornar freguês do dicionário, que atéentão, como outros garotos, folheava apenas para garimpar palavrões,com especial atenção aos que designassem acidentes geográficos da anatomiahumana. Devo ter visitado todos os que se escondiam nos cincovolumes do Laudelino Freire lá de casa.Ao contrário dos companheiros, porém, mantive o hábito mesmo depoisque pudemos encarar ao vivo o que só conhecíamos de dicionário. Sóque agora os palavrões, digamos, eram outros: na minha insuportávelchatice adolescente, o que eu buscava eram palavras estranhas que, jogadasna roda como granada verbal, tivessem o poder de silenciar a audiênciaignara. Meu amigo Jaime e eu chegamos a inventar umas tantas, nenhumadelas mais impactante que “cripteriótico”, cujo significado, se éque tinha algum, variava conforme a circunstância em que era disparada.Devo ao Laudelino uma coleção de excentricidades vocabulares que tiveo bom senso de jamais utilizar. Mas ainda sei o que são alpondras. Não,não vou traduzir. Vá você catar no dicionário, seu alóbrogo.Quanto a mim, catava em toda parte. Não cheguei a ler os livros deodontologia do meu pai, mas passei perto. Atrás deles na prateleira, descobrium dia, inesquecível dia, os dois tomos de Amor e Paz, manual deorientação sexual escrito por uma dama pia para uso de namorados (volume1) e noivos (volume 2). O primeiro, contendo muita paz e quase nenhumamor, por isso mesmo não chegou a me interessar. Se bem melembro, não havia ali um escasso beijo, nem mesmo o de Judas em Cristo.Já o segundo, prescrito pela autora para quando o entrevero carnal apontasseno horizonte próximo como algo inevitável, era mais estimulante,se me faço entender. Embora passasse a léguas do mais pudico dos kamasutras,sua leitura, aqui e ali, reservava sensações ao leitor onívoro que fuipelos dez anos de idade.Mais exato seria dizer: um avestruz literário, tamanho o apetiteeafaltade critério com que devorava livros. Acabei me enfiando na picada dospensadores católicos da biblioteca paterna — e tome Jacques Maritain,Raïssa Maritain, Thomas Merton, Fulton Sheen, Pierre van der Meer deWalcheren, Léon Bloy (“Sofrer passa, ter sofrido não passa nunca”, saírepetindo sem muito conhecimento de causa). Entre os nacionais, traceiIdade, Sexo e Tempo, de Alceu Amoroso Lima, esperançoso naquilo que asegunda palavra do título prometia sem cumprir.Tinha 12 anos quando ganhamos as obras completas de Machado deAssis numa edição da Jackson que ainda conservo. Atravessei como carunchoos 31 volumes encadernados em verde, aí incluídos, believe ornot, aqueles lá do fim, de crítica literária, lidos já com a língua de fora, sópara poder dizer que tinha dado conta da coleção inteira. Pergunte se meficou alguma coisa daquela primeira incursão machadiana. Achei o máximoo conto “Um cão de lata ao rabo”. E meio devagar, com aquela genteenrolada, o tal de Dom Casmurro.Na minhainsuportável chaticeadolescente, o queeu buscava erampalavras estranhasque, jogadas na rodacomo granadaverbal, tivessemo poder de silenciara audiência ignara.Meu amigo Jaimee eu chegamosa inventar umastantas, nenhumadelas maisimpactante que“cripteriótico”,cujo significado,se é que tinha algum,variava conformea circunstância emque era disparada.Devo ao Laudelinouma coleção deexcentricidadesvocabulares quetive o bom sensode jamais utilizar.Mas ainda sei oque são alpondras.Não, não voutraduzir. Vá vocêcatar no dicionário,seu alóbrogoHumberto Werneck é jornalista e escritor. É autor,entre outros, de O Espalhador de Passarinhos & Outras Crônicas (Dubolsinho),O Pai dos Burros (Arquipélago Editorial) e O Santo Sujo (Cosac Naify).
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