13.07.2015 Views

empresas - Brasil Econômico

empresas - Brasil Econômico

empresas - Brasil Econômico

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Outlook | Sexta-feira, 1.10.2010 | 5CRÔNICAHumberto WerneckMemórias de umavestruz literárioModéstia à parte, fui um menino bem esquisitinho. Depois, há quemdiga, piorei. Não é verdade. Não daria conta de superar em bizarria —em chatice, vá lá — o frangote que fui na puberdade. A avalanche dehormônios não explica tudo. Não me lembro de ter conhecido, antes,durante ou depois, um ser que desfiasse o meu vocabulário de então.Talvez o Antônio Houaiss. Não era por acaso que lá no bairro volta emeia alguém me interpelava:— Ei, irmão do Rodrigo, vem falar difícil pra gente!Não cheguei a topar provocações, mas certa vez deixei de queixo caídoum tio que foi xeretar o que havia no meu prato:— O que temos aí?— Lipídios, glicídios e protídeos — pontifiquei.Foi o que bastou para ganhar do tio o apelido de Zé Lipídio.Ouvia entoar a ave galiforme da família dos fasianídeos — ou, se vocêprefere, ouvia o galo cantar — e tratava logo de utilizar o vocábulo recém-aprendido,sem o cuidado de saber o que estava dizendo. Arranqueigargalhadas de meu pai com um “diabo aquático” em vez de “diabo aquatro”. Escaldado, tratei de me tornar freguês do dicionário, que atéentão, como outros garotos, folheava apenas para garimpar palavrões,com especial atenção aos que designassem acidentes geográficos da anatomiahumana. Devo ter visitado todos os que se escondiam nos cincovolumes do Laudelino Freire lá de casa.Ao contrário dos companheiros, porém, mantive o hábito mesmo depoisque pudemos encarar ao vivo o que só conhecíamos de dicionário. Sóque agora os palavrões, digamos, eram outros: na minha insuportávelchatice adolescente, o que eu buscava eram palavras estranhas que, jogadasna roda como granada verbal, tivessem o poder de silenciar a audiênciaignara. Meu amigo Jaime e eu chegamos a inventar umas tantas, nenhumadelas mais impactante que “cripteriótico”, cujo significado, se éque tinha algum, variava conforme a circunstância em que era disparada.Devo ao Laudelino uma coleção de excentricidades vocabulares que tiveo bom senso de jamais utilizar. Mas ainda sei o que são alpondras. Não,não vou traduzir. Vá você catar no dicionário, seu alóbrogo.Quanto a mim, catava em toda parte. Não cheguei a ler os livros deodontologia do meu pai, mas passei perto. Atrás deles na prateleira, descobrium dia, inesquecível dia, os dois tomos de Amor e Paz, manual deorientação sexual escrito por uma dama pia para uso de namorados (volume1) e noivos (volume 2). O primeiro, contendo muita paz e quase nenhumamor, por isso mesmo não chegou a me interessar. Se bem melembro, não havia ali um escasso beijo, nem mesmo o de Judas em Cristo.Já o segundo, prescrito pela autora para quando o entrevero carnal apontasseno horizonte próximo como algo inevitável, era mais estimulante,se me faço entender. Embora passasse a léguas do mais pudico dos kamasutras,sua leitura, aqui e ali, reservava sensações ao leitor onívoro que fuipelos dez anos de idade.Mais exato seria dizer: um avestruz literário, tamanho o apetiteeafaltade critério com que devorava livros. Acabei me enfiando na picada dospensadores católicos da biblioteca paterna — e tome Jacques Maritain,Raïssa Maritain, Thomas Merton, Fulton Sheen, Pierre van der Meer deWalcheren, Léon Bloy (“Sofrer passa, ter sofrido não passa nunca”, saírepetindo sem muito conhecimento de causa). Entre os nacionais, traceiIdade, Sexo e Tempo, de Alceu Amoroso Lima, esperançoso naquilo que asegunda palavra do título prometia sem cumprir.Tinha 12 anos quando ganhamos as obras completas de Machado deAssis numa edição da Jackson que ainda conservo. Atravessei como carunchoos 31 volumes encadernados em verde, aí incluídos, believe ornot, aqueles lá do fim, de crítica literária, lidos já com a língua de fora, sópara poder dizer que tinha dado conta da coleção inteira. Pergunte se meficou alguma coisa daquela primeira incursão machadiana. Achei o máximoo conto “Um cão de lata ao rabo”. E meio devagar, com aquela genteenrolada, o tal de Dom Casmurro.Na minhainsuportável chaticeadolescente, o queeu buscava erampalavras estranhasque, jogadas na rodacomo granadaverbal, tivessemo poder de silenciara audiência ignara.Meu amigo Jaimee eu chegamosa inventar umastantas, nenhumadelas maisimpactante que“cripteriótico”,cujo significado,se é que tinha algum,variava conformea circunstância emque era disparada.Devo ao Laudelinouma coleção deexcentricidadesvocabulares quetive o bom sensode jamais utilizar.Mas ainda sei oque são alpondras.Não, não voutraduzir. Vá vocêcatar no dicionário,seu alóbrogoHumberto Werneck é jornalista e escritor. É autor,entre outros, de O Espalhador de Passarinhos & Outras Crônicas (Dubolsinho),O Pai dos Burros (Arquipélago Editorial) e O Santo Sujo (Cosac Naify).

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!