14 | Outlook | Sexta-feira, 1.10.2010ELEITOSFOTO REVISTA KOSMOS99%loserEdição luxuosa reúne osinstantes mais miseráveisda vida de Lima Barreto.Ironia ou vingança?TEXTO RONALDO BRESSANEMetia o pau em qualquergoverno ou autoridade,detestava futebol e nãoconseguia pegar mulher.Nasceu “sem dinheiro,mulato e livre”. Mãe morta,pai louco, emprego medíocre, opiniõesfortes demais. Escrevia muito, mas ninguémlia. Não trocava de camisa por meses.Não trocava nada por uma birita — ebebeu até cair. Afonso Henriques de LimaBarreto tinha um fogo dentro que só apagavacom água que passarinho não bebe. Alonga agonia do pai de Policarpo Quaresmafoi descrita em suas últimas narrativas,Diário do Hospício e O Cemitério dos Vivos.Ambos os livros (já reunidos pela Planetaem 2005) ganham agora publicaçãocujo elegante projeto gráfico chega ao requintede usar duas diferentes qualidadesde papel no miolo. Crivada de fotos e notas,prefaciada por Alfredo Bosi, com organizaçãodeste e de Murilo Marcondes deMoura, a edição luxuosa tem um quê deironia (Cosac Naify). O transplante de, digamos,“classe social” já havia acontecidocom o maior seguidor do carioca LimaBarreto, o paulistano João Antônio, quetambém teve suas obras completas publicadascom esmero pela mesma editora.Não que se deva condenar os autores,ambos grandes, a publicações toscas —mas é sempre curioso observar este fenômenoque fetichiza a penúria financeira ea obscuridade do artista em vida paracontemplá-lo na morte com um ricomausoléu. A edição colige ainda crônicasde Machado de Assis, Raul Pompéia, OlavoBilac e do próprio Barreto sobre o temada alienação mental.Enfim: “A literatura ou me mata ou medá o que peço dela”, lamenta-se LimaBarreto no início de suas notas do Diário,ao descrever a triste cena em que é forçadoa tomar banho nu à frente de todos. Detidono Hospício Nacional de Alienados apósser flagrado em surto alcoólico delirante, o“intelectual relativiza seu vexame comparando-ocom afrontas suportadas porseu ídolos”, no dizer do professor Bosi: relatandoseus perrengues somente 15diasapós a entrada no manicômio, Barreto encontranos mestres Dostoiévski e Cervantes,que também passaram pelo suplício daprisão, conforto para a desgraça e motiva-Escrito na primeirapessoa, sob amáscara de VicenteMascarenhas,um alcoólatracom altas aspiraçõesliterárias,o Cemitérioexibe sequênciasantológicasção para a escrita. O texto desenvolve-sedurante a internação de Barreto, entre dezembrode 1919 e fevereiro de 1920 — em79 tiras de papel manchado escritas em lápise caneta. Desde sempre o texto cristalinoilumina a crença de Barreto de quenão está louco: encontra-se ali por contado alcoolismo, da depressão e das tristescondições financeiras e familiares — órfãoaos sete anos, desde os vinte é obrigado alidar com os transtornos mentais do pai.Se as primeiras 60 páginas do Diário sãoum blog extraordinariamente lúcido e detalhado— Lima Barreto tem uma das escritasmais diretas e objetivas da literaturabrasileira —, as seguintes 23 são tweets esparsose descarnados, ideias soltas, anedotas,descrições e achados que o autor iráaprofundar no romance inacabado O Cemitériodos Vivos.O choque entreas duas narrativasproduz um caso insólito.No primeirolivro, Lima Barretoentrega uma confissãosincera e comoventea respeitode sua passagempelo hospício; já nosegundo o escritoraprofunda ficcionalmentea experiência— o que,longe de fantasiar ovivido, retira-lhe aautocomplacênciae torna a narrativaainda mais poderosa.Escrito naprimeira pessoa,sob a máscara deVicente Mascarenhas,um alcoólatracom altas aspiraçõesliterárias, oCemitério exibesequências antológicas,como a cenaem que descreve oengaiolamentopúblico de um doidode rua: “É indescritívelo que sesofre ali, assentadonaquela espécie de solitária, pouco maislarga que um homem, cercado de ferro portodos os lados, com uma vigia gradeada(...). A carriola, pesadona, arfa que nemuma nau antiga, no calçamento; sobe,desce, tomba pra aqui, toma para ali; o pobre-diabolá dentro, tudo liso, não temonde se agarrar e bate com o corpo em todosos sentidos, de encontro às paredes deferro (...)”. O que seria o 17º livro de Barretoficou inacabado. O autor morreu de infartoaos 41, em 1922 — mesmo ano da SemanaModernista, movimento que tomousua prosa febril como inspiração. Nestas100 páginas, raras vezes um escritor desceuaos infernos de sua autoconsciênciacom tamanha sede de viver. Ter seu testemunhocomo farrapo humano editado tãofinamente não deixa de dar ao leitor umsutil sabor da vingança de Lima Barreto.FOTO ACERVO DO IPHANEle foi forçado a tomar banho nu na frente de todos no Hospício de Alienados
Outlook | Sexta-feira, 1.10.2010 | 15Extraordinário,pop e prosaicoNovos em folhaCom KarmaPop, o fotorrepórter gonzo ArthurVeríssimo desmascara a loucura sagrada da ÍndiaFOTO ARTHUR VERÍSSIMOREALISMO FANTÁSTICO“O leitor tem nas mãos algunsdos melhores contos de JulioCortázar, ou seja, algunsdos melhores contos daliteratura hispano-americanado século 20”, escreve DaviArrigucci Jr. na orelha deAs Armas Secretas (Civilização<strong>Brasil</strong>eira). Já estecortazariano resenhistaconsidera o livro do argentinouma coletânea de algumasdas melhores narrativas já escritas em qualquerépoca, em qualquer língua. Duas em especialsão brilhantes. Em “As babas do diabo”, umtradutor sai por aí com sua câmera para fotografarum dia bonito — e acaba, sem querer, registrandoum assassinato. O conto inspirou o clássico Blow--Up, de Antonioni. Outro filme, Bird, de ClintEastwood, está contaminado pela longa narrativa“O perseguidor”, em que o autor, invulgar amantede jazz, conta a vida do saxofonista Charlie Parker,um dos criadores do bebop, pela perspectivade um crítico musical que ao mesmo tempo oadmira e o inveja.Cena do mais escalafobético dos eventos hindus, o festival Kumbha MelaArthur tem um sobrenome adequado— Veríssimo já sugere alinguagem superlativa. Não é àtoa que seu grande interesse é amais paradoxal e hiperbólica dasnações, a Índia, país visitado 17vezes por este globetrotter de 49 anos. O foco éo mais escalafobético dos eventos hindus: oKumbha Mela, festival realizado a cada 12 anosem uma das quatro cidades sagradas indianas(existe algo que não seja sagrado lá?) que reúnemultidões de até, pasme, 80 milhões de pessoas.Veríssimo, cuja atuação gonzo o faz entrarde cabeçaFOTO DIVULGAÇÃOna experiênciajornalística,mostra emKarmaPop(Master Books)um lado surpreendentementepreciso.Embora sejaconhecido pe-Veríssimo abraçando a notíciaA maioria das imagens são retratosde saddhus — os homens santosque curtem uma pobreza extrema,inflingindo-se suplícios tipo vivercom o braço pra cima por 20 anoslas atuaçõesensandecidasem frente àscâmeras ou portrás de um textoatulhado deexpressões estrambóticaseestapafúrdias,tudo na primeirapessoa, nas imagens de KarmaPop estecarioca-paulistano desaparece. A maioriadas imagens são retratos de saddhus — os homenssantos que curtem uma pobreza extrema,inflingindo-se suplícios tipo viver com obraço pra cima por 20 anos, aturar uma facaenterrada no punho, enrolar o pênis numa espada,untar o corpo todo com cinzas ou usartanguinhas ridículas. Apesar de todo o inusitado,os personagens são enquadrados comsobriedade e respeito (a maioria das imagenspresentes em reportagens da revista Trip).Valendo-se de sua proverbial cara-de-pau,Veríssimo extrai desse estranho zoo humanoum inventário de celebridades do bizarro;curioso nestas aparições é sua humanidade,quando o repórter desmascara, por trás dosagrado, sua condição humorística. ComoVeríssimo olha para este mundo com óculosinfantis, torna o extraordinário tão pop e prosaicoquanto uma lata de Coca-Cola. Seriaconfortável se contaminar pela magia dossantos indianos. Nestes retratos cômicos, porém,Veríssimo demonstra sua infame vaidade— operação que torna ainda mais extravagenteuma viagem pela Índia. R.B.REALISMO JORNALÍSTICOO também argentino RodolfoWalsh é mais conhecido porum clássico do new journalism— antes mesmo de existireste termo: Operação Massacre(Cia das Letras), que recuperaum episódio obscuro ocorridosob a ditadura de 1955.Mas é em Essa Mulher (Ed. 34)que Walsh, barbaramenteassassinado pela ditadurade 1977, exibe seu grandetalento literário. São narrativas objetivas eimpactantes, cujo conflito reside sempre entre opolítico e o ético — como o conto-título, umapequena peça dramática cujo personagem principalé um esqueleto no armário militar. Completao volume um exaltado depoimento de Walsha Ricardo Piglia.REALISMO MITOLÓGICOPara fechar, mais um argentino,outro clássico, agora em novaedição: História da Eternidade,de Jorge Luis Borges (Cia dasLetras) é o livro em que o autorabandona os bandidosestereotipados de HistóriaUniversal da Infâmia paraabraçar — nestes textos queaproximam ensaio de ficção,propondo uma nova maneirade narrar —, o tempo daeternidade, recontando fábulas das Mil e UmaNoites, as metáforas islandesas e os jogos eruditosque propõem as infinitas bibliotecas como únicarealidade possível.
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