Culture&Territories#3

CeiED | CULTURE & TERRITORY
Independentemente dos contextos e das conjunturas, o impacto da reurbanização
na vida das pessoas, recorrentemente, faz surgir o que Turner designa como uma
“comunidade de aflição” (Turner, 1968), ou seja, a formação, diante de um evento
perturbador, de uma “comunidade de aflitos” 6 . A aguda reflexividade que o evento
renovação urbana impõe aos habitantes das cidades e as respostas e reivindicações
que estes reclamam junto do poder público revelam, de modo eloquente, que as
identidades sociais e os sentimentos morais são, pois, intrinsecamente constituídos
também por uma dimensão espacial. E embora os moradores das cidades possam
auto identificar-se como tal, observa-se que, em diversas grandes cidades do mundo,
o “bairro” onde se vive é a unidade territorial onde muitos indivíduos encontram as
suas fontes identitárias primordiais - materiais e simbólicas -, sendo esse território,
em muitos casos, percebido com uma espécie de “terra natal”.
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A CRUZADA DE SÃO SEBASTIÃO, NO RIO DE JANEIRO E O GRAND
PROJECT URBAIN, EM LILLE – TESTEMUNHOS DE IDEOLOGIA E
PRÁTICA DA INTERVENÇÃO (SOBRE O) URBANO
No Rio de Janeiro, o conjunto habitacional Cruzada São Sebastião cumpre,
no sentimento de seus mais antigos moradores, esse papel de “terra natal”. As
gerações mais velhas, sobretudo mães e avós, ou seja, a linhagem matrilinear,
acolhem frequentemente filhos, sobrinhos e netos que “moram” em outras
localidades, mas que “vivem ali” 7 . Construído em 1955 pela associação católica
homônima, fundada por Dom Hélder Câmara 8 , esses prédios são hoje o único
testemunho dessa política implementada no Rio de Janeiro que visou a construção
de apartamentos de realojamento no mesmo lugar em que se destruía favelas
pré-existentes, evitando, com isso, que os seus habitantes fossem levados para as
periferias distantes e sem infra-estruturas, tal como viria a acontecer na década
seguinte. A única favela, no entanto, inteiramente destruída pelo plano de implantação
da Cruzada foi a Praia do Pinto, situada no bairro do Leblon, entre o mar e a
6
No Brasil, o livro Quando a rua vira casa, de Mello, Vogel & Molica ([1981] 2017), primeira etnografia de um processo de renovação
urbana publicado no país, evidenciou o drama social (“social drama”, Turner, 1968) dos habitantes do Catumbi, antigo bairro de
acolhimento de imigrantes portugueses, espanhóis, italianos e de ciganos calón, no Rio de Janeiro. Este foi palco da formação dessa
"comunidade de aflição" no momento em que a Prefeitura decidiu suprimir a “rua” (diversas ruas do lugar) em benefício da
construção de edifícios reunidos em “quadras” residenciais voltadas para uma área central de uso exclusivo dos novos moradores.
Os autores trataram de distinguir a idéia de ‘evento’ daquela de ‘acontecimento’, sendo a primeira relativa a algo que se abate sobre
algo ou alguém, enquanto que a segunda se refere ao evento mediado pela língua, ou seja, o evento tornado ‘acontecimento’ e,
por isso, tornado elemento das narrativas produzidas pelos mais variados atores. Simões e Mello (2011) observaram a renovação
urbana em Lille-Sud a partir da elaboração sobre ‘evento’ e ‘acontecimento’ feita por esses autores.
7
O "domicílio eleitoral", ou seja, o lugar onde o cidadão vota, é mantido por muitos filhos ou netos de moradores da Cruzada
quando esses casam e se mudam para outras localidades da metrópole, por exemplo. Nos dias de eleição, as cozinhas da Cruzada
permanecem em constante atividade devido à visita de inúmeros membros das famílias ali residentes, dando ao lugar um aspecto
festivo bastante peculiar (Simões, 2010).
8
Dom Hélder Câmara foi arcebispo auxiliar do Rio de Janeiro, nos anos 1950, e um dos fundadores da Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB). Durante a realização do XXXVII Congresso Eucarístico Internacional, no Rio de Janeiro, em 1955 (o qual
também organizou), fundou a associação Cruzada São Sebastião de modo a promover a construção de prédios de apartamentos
para moradores de favelas, ao lado do antigo sítio. Figura de proa da ala progressista da Igreja, Dom Hélder levou o cardeal
Montini, futuro Papa Paulo VI, até a favela da Praia do Pinto, no Rio de Janeiro, pouco antes da fundação da Cruzada São Sebastião.