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serenidade quase ascéticas. Parece compreensível, isto. A ideia de se poder, a<br />
qualquer momento e com inteira legitimidade moral ainda que apenas a seus<br />
próprios olhos, fazer voar em estilhaços quanto possa incomodar<br />
excessivamente, essa ideia, parece reunir infinitas virtualidades serenantes…<br />
Talvez seja o mesmo que acontece aos humoristas. Ou talvez os fatigue o facto<br />
dos outros pensarem que eles estão sempre a brincar. Ou talvez os sature a<br />
expectativa permanente de uma boa piada de borla. Mas é seguro isto. Os<br />
humoristas são macambúzios como os bombistas de Hertzen. Os bombistas do<br />
Aquilino eram estouvados entusiastas, mas se chegaram a ser bombistas, não o<br />
terão sido por muito tempo…<br />
Mas o sarcasmo, o sarcasmo é palavra (tornada ambígua) a traduzir apenas a<br />
mordacidade (etimologicamente, significa mordedura, justamente, a palavra<br />
sarcoma vem daqui, também), o perigo da palavra sarcasmo é que justamente<br />
traz a equivocidade… e não só no uso. Em todo o caso, a palavra mordedura<br />
jamais mordeu alguém. E tranquilizados por este indesmentível facto, podemos<br />
prosseguir.<br />
Essa crueldade imputada à ironia radicaria nas feridas causadas ao amorpróprio.<br />
É em defesa do amor-próprio, aliás, que se tem levantado a menos que<br />
medíocre jurisprudência local. É a “honra interna”, como diria aquele professor<br />
de Coimbra. A “auto-estima”, como dizem os clínicos. E, frequentemente, a<br />
hetero-estima. Mas o Direito não pode levantar-se em defesa de meras quebras<br />
da humildade. O Direito jamais se levantaria em defesa de ficções, boa parte<br />
das vezes crudelíssimas. É pois natural que tais práticas tenham vindo a imporse<br />
sem o Direito e contra Direito.<br />
E a humildade tornou-se termo perigosamente equívoco. A prática do<br />
silenciamento trata a palavra como quebra da humildade, por exemplo. A<br />
humildade reduz-se hoje ao entendimento que dela existe na baixa classe<br />
média. É a conformação submissa. A humildade corrompe-se no servilismo,<br />
como a prudência no medo. Nem uma, nem outra tiveram alguma vez tão<br />
sinistros significados. Como toda a gente sabe… Mas estamos há não sei já<br />
quantas páginas forçados a repetir o que toda a gente sabe e portanto<br />
repetiremos também mais isto. Humildade vem de “húmus”. Como homem. E<br />
o que a humildade traduz é a exigência de autenticidade. Sê tu próprio.<br />
Reconhece-te. Ou até, como no oráculo délfico, “conhece-te a ti mesmo”. A<br />
montanha é terra como a planície e seria absurdo chamar-lhe altiva ou<br />
imodesta. Seria, sim… Mas para a loucura da prática decisória local, não é. Este<br />
é o problema. E este problema é o processo de Aquilino. E a censura do livro de<br />
Saramago. E tudo o mais. Este problema são os brutos ou as bestas de Eça e a<br />
sua evidente brutalidade. Causa demonstrada de muitos terrores, todos<br />
subsistentes e aliás em agravamento. Para o pretensiosismo – sempre<br />
crudelíssimo - ao qual a Tradição tanto chama orgulho como estupidez, este<br />
não tem remédio fácil, nem para a Omnipotência Divina que dirige a sua<br />
pedagogia aos autênticos, férteis como o húmus (Salm. 25, 9; Ecl. 4,13).<br />
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