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A hermenêutica do sujeito - OUSE SABER!

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18 A HERMENtUTICA DO SUJEITO<br />

que foram no interior daquela paisagem tão fortemente marcada<br />

pela obrigação de ocupar-se consigo mesmo, vieram a<br />

ser assenta<strong>do</strong>s pelo cristianismo e pelo mun<strong>do</strong> moderno<br />

numa moral <strong>do</strong> não-egoísmo. É este conjunto de para<strong>do</strong>xos,<br />

creio, que constitui uma das razões pelas quais o tema<br />

<strong>do</strong> cuida<strong>do</strong> de si veio sen<strong>do</strong> um tanto deconsidera<strong>do</strong>, acaban<strong>do</strong><br />

por desaparecer da preocupação <strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>res.<br />

Acredito porém haver uma razão bem mais essencial<br />

que estes para<strong>do</strong>xos da história da moral, e que concerne ao<br />

problema da verdade e da história da verdade. A razão mais<br />

séria, parece-me, pela qual este preceito <strong>do</strong> cuida<strong>do</strong> de si foi<br />

esqueci<strong>do</strong>, a razão pela qual o lugar ocupa<strong>do</strong> por este princípio<br />

durante quase um milênio na cultura antiga foi sen<strong>do</strong><br />

apaga<strong>do</strong>, pois bem, eu a chamaria - com uma expressão que<br />

reconheço ser ruim, aparecen<strong>do</strong> aqui a título puramente<br />

convencional- de "momento cartesiano". Parece-me que o<br />

"momento cartesiano", mais uma vez com muitas aspas,<br />

atuou de duas maneiras, seja requalifican<strong>do</strong> filosoficamente<br />

o gnôthi seautón (conhece-te a ti mesmo), seja desqualifican<strong>do</strong>,<br />

em contrapartida, a epiméleia heautou (cuida<strong>do</strong> de si).<br />

Primeiro, o momento cartesiano requalificou filosoficamente<br />

o gnôthi seautón (conhece-te a ti mesmo). Com efeito,<br />

e nisto as coisas são muito simples, o procedimento cartesiano,<br />

que muito explicitamente se lê nas Meditações", instaurou<br />

a evidência na origem, no ponto de partida <strong>do</strong> procedimento<br />

filosófico - a evidência tal como aparece, isto é,<br />

tal como se dá, tal como efetivamente se dá à consciência,<br />

sem qualquer dúvida possível [*]. [É, portanto, ao] conhecimento<br />

de si, ao menos como forma de consciência, que se<br />

refere o procedimento cartesiano. Além disto, colocan<strong>do</strong> a<br />

evidência da existência própria <strong>do</strong> <strong>sujeito</strong> no princípio <strong>do</strong><br />

acesso ao ser, era este conhecimento de si mesmo (não mais<br />

sob a forma da prova da evidência mas sob a forma da indubitabilidade<br />

de minha existência como <strong>sujeito</strong>) que fazia<br />

... Ouve-se apenas: "qualquer que seja o esforço ... ".<br />

AULA DE 6 DE JANEIRO DE 1982 19<br />

<strong>do</strong> Ifconhece-te a ti mesmo" um acesso fundamental à verdade.<br />

Certamente, entre o gnôthi seautón socrático e o procedimento<br />

cartesiano, a distância é imensa. Compreende-se<br />

porém por que, a partir deste procedimento, o princípio <strong>do</strong><br />

gnôthi seautón como funda<strong>do</strong>r <strong>do</strong> procedimento filosófico,<br />

pôde ser aceito, desde o século XVII portanto, em certas<br />

práticas ou procedimentos filosóficos. Mas, se, pois, o procedimento<br />

cartesiano, por razôes bastante simples de compreender,<br />

requalificou o gnôthi seaulón, ao mesmo tempo<br />

muito contribuiu, e sobre isto gostaria de insistir, para desqualificar<br />

o princípio <strong>do</strong> cuida<strong>do</strong> de si, desqualificá-Io e excluí-lo<br />

<strong>do</strong> campo <strong>do</strong> pensamento filosófico moderno.<br />

Tomemos alguma distância. Chamemos de "filosofia",<br />

se quisermos, esta forma de pensamento que se interroga,<br />

não certamente sobre o que é verdadeiro e sobre o que é<br />

falso, mas sobre o que faz com que haja e possa haver verdadeiro<br />

e falso, sobre o que nos torna possível ou não separar<br />

o verdadeiro <strong>do</strong> falso. Chamemos "filosofia" a forma de<br />

pensamento que se interroga sobre o que permite ao <strong>sujeito</strong><br />

ter acesso à verdade, forma de pensamento que tenta determinar<br />

as condições e os limites <strong>do</strong> acesso <strong>do</strong> <strong>sujeito</strong> à<br />

verdade. Pois bem, se a isto chamarmos "filosofia", creio<br />

-- que poderíamos chamar de "espiritualidade" o conjunto de<br />

buscas, práticas e experiências tais COmo as pUrificações, as<br />

asceses, as renúncias, as conversões <strong>do</strong> olhar, as modificações<br />

de existência, etc., que constituem, não para o conhecimento,<br />

mas para o <strong>sujeito</strong>, para o ser mesmo <strong>do</strong> <strong>sujeito</strong>, o<br />

preço a pagar para ter acesso à verdade. Digamos que a espiritualidade,<br />

pelo menos como aparece no Ocidente, tem<br />

três caracteres.<br />

A espiritualidade postula que a verdade jamais é dada<br />

de pleno direito ao <strong>sujeito</strong>. A espiritualidade postula que o <strong>sujeito</strong><br />

enquanto tal não tem direito, não possui capacidade de<br />

ter acesso à verdade. Postula que a verdade jamais é dada<br />

ao <strong>sujeito</strong> por um simples ato de conhecimento, ato que seria<br />

fundamenta<strong>do</strong> e legitima<strong>do</strong> por ser ele o <strong>sujeito</strong> e por ter<br />

tal e qual estrutura de <strong>sujeito</strong>. Postula a necessidade de que

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