A hermenêutica do sujeito - OUSE SABER!
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656 A HERMENtUTICA DO SUJEITO<br />
1. a cultura de si oferece ao homem ativo uma regra de limitação<br />
quantitativa (não deixar as tarefas políticas, os cuida<strong>do</strong>s com<br />
o dinheiro, as obrigações diversas invadirem a existência ao ponto<br />
de se ficar exposto a se esquecer de si mesmo);<br />
2. a primazia da relação consigo permite também estabelecer<br />
a independência <strong>do</strong> <strong>sujeito</strong> em todas as outras relações cuja extensão<br />
ela contribuiu para limitar54.<br />
Portanto, o <strong>sujeito</strong> ético jamais coincide perfeitamente<br />
com seu papel. Esta distância toma-se possível primeiramente<br />
porque a soberania a ser exercida sobre si é a única que<br />
se pode e que se deve preservar. Ela até define a única realidade<br />
tangível <strong>do</strong> poder. Aqui, uma inversão relativamente<br />
ao êthos da Grécia clássica. Não se trata de governar a si como<br />
se governa os outros, procuran<strong>do</strong> modelos no coman<strong>do</strong> militar<br />
ou na <strong>do</strong>minação de escravos, mas, quan<strong>do</strong> me cabe governar<br />
os outros, só posso fazê-lo segun<strong>do</strong> o modelo de um<br />
governo primeiro, o único decisivo, essencial e efetivo: o governo<br />
de mim mesmo. Não devemos crer que, pelo cuida<strong>do</strong><br />
de si, Foucault procurava a fórmula luzente e maquiada<br />
de um descomprometimento político. Procurava formular,<br />
ao contrário, sobretu<strong>do</strong> pelo estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> estoicismo imperial,<br />
os princípios de uma articulação entre o ético e o político 55 .<br />
Um último elemento a se guardar da longa citação apresentada<br />
anteriormente: trata-se <strong>do</strong> que Foucault escreve<br />
quanto ao culto que se deve prestar a si mesmo. A austeridade<br />
<strong>do</strong> cuida<strong>do</strong> de si encontra-se, com efeito, amplamente<br />
54. Dossiê "Gouvernement de soi et des autres".<br />
55. Entretanto, devemos com certeza lembrar que em L'Usage des<br />
plaisirs (Paris, Gallimard, 1984), a propósito da Grécia clássica, a dimensão<br />
ética intervinha de uma outra maneira para cercar o político. Tratava-se<br />
então de mostrar, no que concerne ao amor pelos rapazes, de que<br />
mo<strong>do</strong> a <strong>do</strong>minação cessa e se limita, de que mo<strong>do</strong> a força impõe para<br />
si deveres e reconhece ao outro direitos: a ética era corno que a <strong>do</strong>bra<br />
<strong>do</strong> político (Deleuze em seu Foucault [Paris, Minuit, 19861 falará mesmo<br />
a propósito desta <strong>do</strong>bra de forças, da emergência <strong>do</strong> <strong>sujeito</strong>). Disto devemos<br />
reter que Foucault sempre pensa a ética no interior <strong>do</strong> político.<br />
.-....<br />
SITUAÇÃO DO CURSO 657<br />
alimentada pelos temores e tremores que devem apoderar-se<br />
<strong>do</strong> eu perante si mesmo. Encontramos no <strong>do</strong>ssiê 11 Governo de<br />
si e <strong>do</strong>s outros" uma pasta intitulada "religião" na qual Foucault<br />
examina a noção de daímon, presente principalmente<br />
em Marco Aurélio, a ser compreendida como aquela divindade<br />
interior que nos guia e que devemos venerar, respeitar,<br />
aquele fragmento de divindade em nós que constitui um eu<br />
perante o qual devemos prestar contas: "O daímon, ainda<br />
que substancialmente divino, é um <strong>sujeito</strong> no <strong>sujeito</strong>, está em nós<br />
como um outro a quem devemos um culto." Não poderíamos<br />
dar conta destes longos desenvolvimentos em duas frases.<br />
Guardemos aqui que o interesse desta divisão interna, pelo<br />
menos <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> como Foucault a concebe, está no fato de<br />
que ela parece ser dificilmente traduzível nos termos de uma<br />
interiorização <strong>do</strong> olhar <strong>do</strong> outro, como um reflexo cultural<br />
(as lições da psicanálise) nos convidaria espontaneamente<br />
a pensar. A dimensão ética não é, portanto, o efeito de uma<br />
interiorização <strong>do</strong> olhar <strong>do</strong> outro. Melhor seria dizer que o<br />
daímon é como a figura mítica de uma cesura primeira, irredutível:<br />
a <strong>do</strong> eu para consigo. E o Outro encontra lugar no<br />
interior desta relação, porque esta relação já existe. O Outro<br />
é que constitui uma projeção <strong>do</strong> Eu e, se havemos de tremer<br />
verdadeiramente, é perante o Eu mais <strong>do</strong> que perante<br />
o Outro, que não passa <strong>do</strong> emblema daquele.<br />
A explicitação desta" governamentalidade da distância<br />
ética", como a denominamos, faz ver que era precisamente<br />
de política que se tratava. Em geral, declara Foucault, "na<br />
atitude estóica corrente, a cultura de si, longe de ser experimentada<br />
como a grande alternativa à atividade política, era dela um<br />
elemento regula<strong>do</strong>r' (mesmo <strong>do</strong>ssiê). Gostaríamos, porém, para<br />
terminar, de propor um problema diferente: a maneira pela<br />
qual Foucault pensava que esta tematização <strong>do</strong> cuida<strong>do</strong> de<br />
si, das práticas de si e das técnicas de existência podia influenciar<br />
e alimentar as lutas atuais.<br />
A situação das pesquisas de Foucault no final <strong>do</strong>s anos<br />
setenta pode ser enunciada <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> como se segue. O Es-