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A hermenêutica do sujeito - OUSE SABER!

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538 A HERMENEul1CA DO SUJEITO<br />

que faz parte da ordem racional <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, nem assim deixa<br />

de me fazer mal - é que <strong>do</strong>ravante o fato de que o nãomal<br />

(para Epicteto, sem dúvida, não se trata ontologicamente<br />

de um mal, conforme a <strong>do</strong>utrina clássica) me faça mal e<br />

seja ao mesmo tempo uma <strong>do</strong>r, um sofrimento, afetan<strong>do</strong>me<br />

na medida em que, ou ao menos enquanto, eu não tenha<br />

total <strong>do</strong>mínio de mim, pois bem, mesmo isto será um<br />

bem em Sua relação [para] comigo. Portanto, a transfiguração<br />

ou a anulação <strong>do</strong> mal não se faz apenas e somente na<br />

forma <strong>do</strong> posicionamento racional <strong>do</strong> olhar sobre o mun<strong>do</strong>.<br />

A transfiguração em ·bem faz-se no interior mesmo <strong>do</strong> sofrimento<br />

provoca<strong>do</strong>, na medida em que este sofrimento é<br />

efetivamente uma prova, em que é reconheci<strong>do</strong>, vivi<strong>do</strong>, pratica<strong>do</strong><br />

pelo <strong>sujeito</strong> como prova. No caso <strong>do</strong> estoicismo clássico<br />

pode-se dizer que é ao pensamento <strong>do</strong> to<strong>do</strong> que compete<br />

anular a experiência pessoal <strong>do</strong> sofrimento. No caso de<br />

Epicteto; e no interior deste mesmo postula<strong>do</strong> teórico por<br />

ele sustenta<strong>do</strong>, há um outro tipo de mutação, proveniente da<br />

atitude de prova, que duplica, sobrecarrega toda experiência<br />

pessoal de sofrimento, de <strong>do</strong>r e de infortúnio, com um<br />

valor que é diretamente positivo para nós. Esta valorização<br />

não anula o sofrimento, ao contrário, vincula-se a ele, dele se<br />

serve. É na medida em que algo nos faz mal que o mal não<br />

é um mal. Há nisto um aspecto fundamental e, creio, bastante<br />

novo em relação ao que se pode considerar como o<br />

quadro teórico geral <strong>do</strong> estoicismo.<br />

A este propósito - a propósito desta idéia da vida como<br />

prova forma<strong>do</strong>ra, desta idéia de que o infortúnio é um bem<br />

na medida mesmo em que é um infortúnio, em que é reconheci<strong>do</strong><br />

como infortúnio pela atitude de prova -, gostaria de<br />

fazer algumas observações. Em certo senti<strong>do</strong>, sem dúvida,<br />

se poderia dizer: mas isto não é tão novo assim, e ainda que<br />

pareça representar, e efetivamente represente, em relação à<br />

<strong>do</strong>gmática estóica, uma certa mutação ou uma certa mudança<br />

de tônica, esta idéia de que a vida é um longo teci<strong>do</strong><br />

de infortúnios pelos quais os homens são prova<strong>do</strong>s é de<br />

fato uma velha idéia grega. Afinal, não foi ela que sustentou<br />

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"li<br />

.-....<br />

......<br />

AULA DE 17 DE MARÇO DE 1982 539<br />

toda a tragédia grega clássica, to<strong>do</strong>s os grandes mitos clássicos?<br />

Prometeu e sua prova, Héracles e suas provas 12 , Édipo<br />

e a prova ao mesmo tempo da verdade e <strong>do</strong> crime, etc. A<br />

meu ver, porém, o que caracteriza a prova na tragédia grega<br />

clássica, o que a sustenta em to<strong>do</strong> caso, é o tema <strong>do</strong> afrontamento,<br />

da disputa, <strong>do</strong> jogo entre a inveja <strong>do</strong>s deuses e o<br />

excesso <strong>do</strong>s homens. Em outras palavras, é quan<strong>do</strong> os deuses<br />

e os homens se afrontam que efetivamente a prova aparece<br />

como sen<strong>do</strong> a soma <strong>do</strong>s infortúnios que os deuses enviam<br />

aos homens para saber se os homens poderão resistir<br />

a eles, como resistirão e se serão os homens ou os deuses<br />

que prevalecerão. A prova na tragédia grega é uma espécie<br />

de braço-de-ferro entre homens e deuses. A história de Pro­<br />

. meteu é o exemplo mais claro disto"- Há uma relação agonística<br />

entre os deuses e os homens, relação ao termo da qual<br />

o homem, embora fulmina<strong>do</strong> pelo infortúnio, sai engrandeci<strong>do</strong>,<br />

mas com a grandeza da reconciliação com os deuses,<br />

que é a grandeza da paz reencontrada. Quanto a isto, nada<br />

mais claro que Édipo em Colona, ou, se quisermos, a comparação<br />

entre Édipo-Rei e Édipo em Colona H Definitivamente<br />

fulmina<strong>do</strong> pelo infortúnio, ten<strong>do</strong> efetivamente suporta<strong>do</strong><br />

todas as provas com que os deuses o perseguiram, em função<br />

de uma antiga vingança que pesava não tanto sobre ele<br />

quanto sobre sua família, Édipo em Colona chega enfim,<br />

extenua<strong>do</strong> pelas provas, ao lugar que será o de sua morte. E<br />

chega poden<strong>do</strong> dizer, no final da batalha em que foi venci<strong>do</strong>,<br />

mas da qual ainda assim sai engrandeci<strong>do</strong>: De tu<strong>do</strong> isto<br />

eu era inocente. Ninguém pode me censurar. Quem não teria<br />

mata<strong>do</strong> um velho insolente como fiz, não saben<strong>do</strong> que<br />

era o próprio pai? Quem não teria desposa<strong>do</strong> uma mulher,<br />

não saben<strong>do</strong> que era sua mãe? De tu<strong>do</strong> isto eu era inocente,<br />

e os deuses me perseguiram com uma vingança que não<br />

podia ser e que não era uma punição. Mas agora que estamos<br />

aqui, extenua<strong>do</strong>s pelas provas, chego, chego para trazer<br />

à terra em que vou morrer uma potência, potência nova,<br />

potêncja protetora que me foi dada precisamente pelos deuses.<br />

E, se efetivamente me perdi, [por causa] de um crime<br />

I

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