A hermenêutica do sujeito - OUSE SABER!
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A HERMENtUTlCA DO SUJEITO<br />
alma enquanto se serve da linguagem, <strong>do</strong>s instrumentos e<br />
<strong>do</strong> corpo. Chegamos pois à alma. Vemos porém que esta alma<br />
à qual chegamos por este estranho raciocínio em tomo <strong>do</strong><br />
"servir-se de" (voltarei, logo adiante, a esta questão da significação<br />
<strong>do</strong> "servir-se de") nada tem a ver, por exemplo,<br />
com a alma prisioneira <strong>do</strong> corpo e que seria preciso libertar,<br />
como no Fé<strong>do</strong>n 30 ; nada tem a ver com a alma como atrelamento<br />
de cavalos ala<strong>do</strong>s que seria preciso conduzir na boa<br />
direção, como no Fedro"l; também não é a alma arquiteturada<br />
segun<strong>do</strong> uma hierarquia de instâncias que seria preciso<br />
harmonizar, como na República 32 É a alma unicamente enquanto<br />
<strong>sujeito</strong> da ação, a alma enquanto se serve [<strong>do</strong>] corpo,<br />
<strong>do</strong>s órgãos [<strong>do</strong>] corpo, de seus instrumentos, etc. E a expressão<br />
francesa "se servir" * que aqui utilizo é, de fato, a tradução<br />
de um verbo muito importante em grego, de numerosas<br />
significações. Trata-se de khrêsthai, com o substantivo<br />
khrêsis. Estas duas palavras são igualmente clifíceis e seu destino<br />
histórico foi muito longo e importante. Khrêsthai (khráomaio<br />
eu me sirvo) designa, na realidade, vários tipos de relações<br />
que se pode ter com alguma coisa ou consigo mesmo.<br />
Com certeza, khráomai quer dizer: eu me sirvo, eu utilizo<br />
(utilizo um instrumento, um utensílio), etc. Mas, igualmente,<br />
khráomai pode designar um comportamento, uma atitude.<br />
Por exemplo, na expressão hybristikôs khrêsthai, o senti<strong>do</strong> é:<br />
comportar-se com violência (como dizemos "usar de violência"<br />
e "usar", de mo<strong>do</strong> algum tem o senti<strong>do</strong> de uma utilização,<br />
mas de comportar-se com violência). Portanto, khráomai<br />
é igualmente uma atitude. Khrêsthai designa também<br />
certo tipo de relações com o outro. Quan<strong>do</strong> se diz, por exemplo,<br />
theoís khrêsthai (servir-se <strong>do</strong>s deuses) isto não quer dizer<br />
que se utilizam os deuses para um fim qualquer. Quer<br />
dizer que se tem com os deuses as relações que se deve ter,<br />
que regularmente se tem, isto é, honrar, prestar culto, fazer<br />
com eles o que se deve fazer. A expressão híppo khrêsthai (ser-<br />
.. Em português, "servir-se". (N. <strong>do</strong>s T.)<br />
(1.<br />
11.<br />
".<br />
.1. ,.<br />
AULA DE 13 DE JANEIRO DE 1982 71<br />
vir-se de um cavalo) não quer dizer que tomamos um cavalo<br />
para fazer com ele o que quisermos. Significa que o controlamos<br />
como convém e que nos servimos dele segun<strong>do</strong> as regras<br />
da atrelagem ou da cavalaria, etc. Khráomai, khrêsthai<br />
designam também uma certa atitude para consigo mesmo.<br />
Na expressão epithymíais khrêsthai, o senti<strong>do</strong> não é "servirse<br />
das próprias paixões para alguma coisa qualquer", mas,<br />
muito simplesmente, H aban<strong>do</strong>nar-se às próprias paixões".<br />
Orgê khrêsthai não é "servir-se da cólera", mas "aban<strong>do</strong>narse<br />
à cólera", "comportar-se com cólera" .. Portanto, como vemos,<br />
quan<strong>do</strong> Platão (ou Sócrates) se serve da noção de<br />
khrêsthailkhrêsis para chegar a demarcar o que é este heautón<br />
(e o que é por ele referi<strong>do</strong>) na expressão "ocupar-se<br />
consigo mesmo", quer designar, na realidade, não certa relação<br />
instrumental da alma com to<strong>do</strong> o resto ou com o corpo,<br />
mas, princípalmente, a posição, de certo mo<strong>do</strong> singular,<br />
transcendente, <strong>do</strong> <strong>sujeito</strong> em relação ao que o rodeia, aos<br />
objetos de que dispõe, como também aos outros com os<br />
quais se relaciona, ao seu próprio corpo €, enfim, a ele mesmo.<br />
Pode-se dizer que, quan<strong>do</strong> Plantão se serviu da noção<br />
de khrêsis para buscar qual é o eu com que nos devemos<br />
ocupar, não foi, absolutamente, a alma-substância que ele<br />
descobriu, foi a alma-<strong>sujeito</strong>. E a noção de khrêsis precisamente<br />
será reencontrada ao longo de toda a história <strong>do</strong> cuida<strong>do</strong><br />
de si e de suas formas*. Será particularmente importante<br />
nos estóicos. Estará no centro, creio, de toda a teoria<br />
e prática <strong>do</strong> cuida<strong>do</strong> de si em Epicteto": ocupar-se consigo<br />
mesmo será ocupar-se consigo enquanto se é "<strong>sujeito</strong> de",<br />
em certas situações, tais como <strong>sujeito</strong> de ação instrumental,<br />
<strong>sujeito</strong> de .relações com o outro, <strong>sujeito</strong> de comportamentos<br />
e de atitudes em geral, <strong>sujeito</strong> também da relação consigo<br />
mesmo. É sen<strong>do</strong> <strong>sujeito</strong>, este <strong>sujeito</strong> que se serve, que tem<br />
esta atitude, este tipo de relações, que se deve estar atento a<br />
si mesmo. Trata-se pois de ocupar-se consigo mesmo en-<br />
li- O manuscrito explicita aqui que ela "se encontra em Aristóteles" .<br />
I