A hermenêutica do sujeito - OUSE SABER!
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A HERMENWTlCA DO SUJEITO<br />
seus limites a função que exerce? É, diz Sêneca, lembrar-se<br />
- e disto, afirma ele, tu, Lucílio não esqueças jamais - de<br />
que tu não exerces o imperium (a soberania política em sua<br />
totalidade), mas uma simples procuralio'. Portanto, a existência<br />
aqui destes <strong>do</strong>is termos técnicos é, a meu ver, muito<br />
significativa. Lucílio exerce bem o poder graças à reflexão<br />
estudiosa que acompanha o exercício de suas funções. E exerce-o<br />
bem na medida em que não se vê como um outro Príncipe'<br />
como o substituto <strong>do</strong> Príncipe, nem mesmo corno o<br />
representante global <strong>do</strong> poder total <strong>do</strong> Príncipe. Exerce seu<br />
poder como um ofício, defini<strong>do</strong> pelo cargo que lhe foi conferi<strong>do</strong>.<br />
Trata-se de uma simples procuratio e, diz ele, a razão<br />
pela qual tu assim consegues, graças ao otium e ao estu<strong>do</strong>,<br />
exercer tuas funções nos limites de uma procuratio e não sob<br />
a presunção de uma soberania imperial, é que, afinal, estás<br />
contente contigo mesmo, sabes satisfazer-te contigo ("tibi<br />
tecum optime convenit")10.<br />
Vemos, então, em que e como o otium estudioso pode·<br />
desempenhar o papel de delimitação da função que ele exerce.<br />
Com efeito, enquanto arte de si mesmo cujo objetivo consiste<br />
em levar o indivíduo a estabelecer consigo uma relação<br />
adequada e suficiente, ootium estudioso faz com que o indivíduo<br />
não venha a situar o seu próprio eu, sua própria subjetividade<br />
no delírio presunçoso de um poder que extrapola<br />
suas funções reais. Toda a soberania que ele exerce, situa-a<br />
em si mesmo, no interior de si mesmo, ou mais exatamente,<br />
em uma relação de si para consigo. A partir daí então, a<br />
partir desta lúcida e total soberania que exerce sobre si<br />
mesmo, poderá definir e delimitar o exercício de seu cargo<br />
somente às funções que lhe são atribuídas. Assim é, portanto,<br />
o bom funcionário romano - penso que podemos empregar<br />
este termo. Ele pode exercer seu poder como bom<br />
funcionãrio a partir justamente desta relação de si para consigo<br />
obtida pela sua própria cultura. Pois bem, diz ele, referin<strong>do</strong>-se.<br />
a Lucílio, isto tu fazes. Mas certamente há bem<br />
poucos homens capazes de fazê-lo. A maior parte deles,<br />
afirma, ou é movida pelo amor por si mesmo ou pelo des-<br />
.,<br />
,<br />
AULA DE 10 DE MARÇO DE 1982 457<br />
gosto por si. É o desgosto ou, ao contrário, o amor excessivo<br />
por si mesmo que levará alguns a se preocuparem com coisas<br />
que na realidade não valem a pena; estes são movi<strong>do</strong>s,<br />
diz ele, pela sollicitu<strong>do</strong>, a solicitude, o cuida<strong>do</strong> com coisas<br />
exteriores a si; ou então - em conseqüência <strong>do</strong> amor por si<br />
- são atraí<strong>do</strong>s pelo deleite, por to<strong>do</strong>s os prazeres com os<br />
quais se busca agradar a si mesmo. Em um caso como no<br />
outro, quer no desgosto por si mesmo e, conseqüentemente,<br />
no perpétuo cuida<strong>do</strong> relativamente aos acontecimentos que<br />
possam ocorrer, quer ao contrário no amor por si €, conseqüentemente,<br />
no apego aos deleites, de to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>, diz ele,<br />
estas pessoas nunca estão sós consigo mesmas ll . Nunca estão<br />
sós consigo mesmas no senti<strong>do</strong> de jamais terem consigo<br />
mesmas aquela relação plena, adequada e suficiente que<br />
faz com que não se sintam dependentes de nada, nem <strong>do</strong>s<br />
infortúnios ameaça<strong>do</strong>res, nem <strong>do</strong>s prazeres que podem encontrar<br />
ou obter ao seu re<strong>do</strong>r. É nesta insuficiência de jamais<br />
se estar só consigo mesmo, é quan<strong>do</strong> se tem desgosto<br />
ou demasia<strong>do</strong> apego a si, é nesta incapacidade de se estar<br />
só, que então acorrem o personagem <strong>do</strong> lisonjea<strong>do</strong>r e os<br />
perigos da lisonja. Nesta não-solidão, nesta incapacidade<br />
de estabelecer consigo uma relação plena, adequada, suficiente,<br />
o Outro intervém, preenchen<strong>do</strong> de algum mo<strong>do</strong> esta<br />
lacuna, substituin<strong>do</strong>, ou melhor, suprin<strong>do</strong> esta inadequação<br />
por um discurso; discurso que, justamente, não será o discurso<br />
de verdade pelo qual podemos estabelecer, cercar e<br />
encerrar nela própria a soberania que se exerce sobre si. O<br />
lisonjea<strong>do</strong>r introduzirá um discurso que é um discurso estranho,<br />
que depende justamente <strong>do</strong> outro, dele, o lisonjea<strong>do</strong>r.<br />
E este será um discurso mentiroso. Assim, pela insuficiência<br />
em que se encontra na sua relação consigo mesmo,<br />
quem é lisonjea<strong>do</strong> se acha sob a dependência <strong>do</strong> lisonjea<strong>do</strong>r,<br />
lisonjea<strong>do</strong>r que é um outro, que pode então desaparecer,<br />
transformar sua lisonja em maldade, em cilada, etc. Dependente<br />
deste outro, ele é também dependente da falsidade<br />
<strong>do</strong>s discursos sustenta<strong>do</strong>s pelo lisonjea<strong>do</strong>r. Assim, a subjetividade,<br />
como diríamos, a relação de si para consigo carac-