A hermenêutica do sujeito - OUSE SABER!
A hermenêutica do sujeito - OUSE SABER!
A hermenêutica do sujeito - OUSE SABER!
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
564<br />
A HERMENtUTICA DO SUJEITO<br />
samento sobre o porvir que seja ao mesmo tempo uma memória.<br />
Não pode haver uma memória que seja ao mesmo<br />
tempo um pensamento sobre o porvir. Será sem dúvida uma<br />
das grandes mutações no pensamento ocidental, o dia em<br />
que se puder pensar que a reflexão sobre a memória é ao<br />
mesmo tempo uma atitude em relação ao porvir. E to<strong>do</strong>s os<br />
temas, como, por exemplo, o <strong>do</strong> progresso, ou melhor dizen<strong>do</strong>,<br />
toda uma forma de reflexão sobre a história, toda uma<br />
nova dimensão da consciência histórica no Ocidente, será<br />
tardiamente alcançada, creio, quan<strong>do</strong> se puder pensar que<br />
o olhar para a memória é ao mesmo tempo um olhar para<br />
o porvir 12 Penso que o estabelecimento de uma consciência<br />
histórica, no senti<strong>do</strong> moderno, oscilará, girará em torno disto.<br />
A outra razão que faz com que o pensamento sobre o<br />
porvir seja desqualifica<strong>do</strong> é, por assim dizer, teórica, filosófica,<br />
ontológica. O porvir é o nada: ele não existe, pelo menos<br />
para o homem; conseqüentemente, a seu respeito só se<br />
pode projetar uma imaginação que se assenta no nada. Ou<br />
então o porvir preexiste: se preexiste é porque é predetermina<strong>do</strong>;<br />
e, por isto, nenhum <strong>do</strong>mínio podemos ter sobre ele.<br />
Ora, o que está em jogo na prática de si é precisamente poder<br />
<strong>do</strong>minar o que se é, em face <strong>do</strong> que é ou <strong>do</strong> que se passa.<br />
Ou nada ou predetermina<strong>do</strong>, o porvir nos condena ou à<br />
imaginação ou à impotência. Ora, estas são as duas coisas<br />
contra as quais é construída toda a arte de si mesmo, toda<br />
a arte <strong>do</strong> cuida<strong>do</strong> de si.<br />
Como ilustração, lembro uma passagem de Plutarco<br />
no Peri euthymías que apresenta uma bela descrição, a meu<br />
ver, destas duas atitudes e <strong>do</strong> motivo pelo qual o pensamento<br />
sobre o porvir, ou, se quisermos, a atitude que consiste<br />
em voltar-se para o porvir, seja negativa: "Os insensatos [oi<br />
anóetoi é o termo que os latinos traduzem por stulti 13 , isto é,<br />
aqueles que estão exatamente no oposto da posição filosófica;<br />
M.F.] com descui<strong>do</strong> negligenciam os bens, ainda que<br />
presentes, porque estão constantemente volta<strong>do</strong>s para suas<br />
preocupações com o porvir [ser anóetos, ser stu/tus, é portanto<br />
estar preocupa<strong>do</strong> com o porvir; M.F.], ao passo que as<br />
'-.. :-<br />
AULA DE 24 DE MARÇO DE 1982 565<br />
pessoas sensatas (phrónimoi), graças à lembrança, possuem<br />
os bens que não têm mais como claramente seus." A tradução<br />
não está muito boa. As pessoas sensatas estão, pois,<br />
claramente na posse <strong>do</strong>s bens que não têm mais, e estão na<br />
posse <strong>do</strong>s bens que não têm mais graças à lembrança - "pois<br />
o presente somente se deixa tocar durante um curto lapso<br />
de tempo. Depois ele escapa à percepção, e os insensatos<br />
acreditam que ele não mais nos concerne e não mais nos<br />
pertence"14. Nesta primeira parte <strong>do</strong> texto há alguns elementos<br />
importantes. Vemos a clara oposição entre os anóetoi<br />
e os phrónimoi: anóetoi, homens volta<strong>do</strong>s para o porvir;<br />
phrónimoi, homens que, ao contrário, estão volta<strong>do</strong>s para o<br />
passa<strong>do</strong> e que fazem uso [da lembrança]. Há portanto, em<br />
tomo <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> e <strong>do</strong> porvir, uma clara distinção entre duas<br />
categorias de pessoas. E esta distinção entre as duas categorias<br />
de pessoas passa pela distinção entre anóetoi e phrónimoi,<br />
isto é, pela atitude filosófica em face da atitude da stu/titia,<br />
da dispersão e da não-reflexividade <strong>do</strong> pensamento sobre si<br />
mesmo. Aquele que não se ocupa consigo mesmo é o stu/tus,<br />
O anóetos: não se ocupan<strong>do</strong> consigo mesmo, ocupa-se com o<br />
porvir. Vemos igualmente neste texto que o homem <strong>do</strong> porvir,<br />
e nisto consiste seu caráter negativo, porque volta<strong>do</strong><br />
para o porvir, não dá conta <strong>do</strong> presente. Não dá conta <strong>do</strong><br />
presente, <strong>do</strong> atual, isto é, da única coisa que é efetivamente<br />
real. Por quê? Pois bem, porque volta<strong>do</strong> para o porvir, não<br />
atenta àquilo que se passa no presente e considera que, por<br />
ser imediatamente sorvi<strong>do</strong> no passa<strong>do</strong>, o presente não é verdadeiramente<br />
importante. Por conseguinte, o homem <strong>do</strong><br />
porvir é aquele que, não pensan<strong>do</strong> no passa<strong>do</strong>, não pode<br />
pensar no presente e encontra-se, assim, volta<strong>do</strong> para um<br />
porvir que só é nada e inexistência. Esta é a primeira frase<br />
que eu queria ler. A segunda é a seguinte: "Mas, assim como<br />
o cor<strong>do</strong>eiro, na pintura <strong>do</strong> Hades, deixa o jumento morder<br />
e devorar o junco que está trançan<strong>do</strong>, assim também para a<br />
maior parte das pessoas, insensível e desagradável, o esquecimento<br />
apodera-se de seu passa<strong>do</strong>, devora-o, faz desaparecer<br />
toda ação, to<strong>do</strong> êxito, to<strong>do</strong> ócio agradável, toda vida