A hermenêutica do sujeito - OUSE SABER!
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A HERMENWTlCA DO SUJEITO<br />
Uma coisa porém é certa: após Platão e até o perío<strong>do</strong><br />
de que agora trato, não é neste ponto da vida, nesta fase<br />
conturbada e crítica <strong>do</strong> fim da a<strong>do</strong>lescência, que se afirmará<br />
a necessidade <strong>do</strong> cuida<strong>do</strong> de si. Doravante, o cuida<strong>do</strong> de si<br />
não é mais um imperativo liga<strong>do</strong> simplesmente à crise pedagógica<br />
daquele momento entre a a<strong>do</strong>lescência e a idade<br />
adulta. O cuida<strong>do</strong> de si é uma obrigação permanente que deve<br />
durar a vida toda. E não foi necessário esperar os séculos I<br />
e 11 para assim afirmá-lo. Se tomarmos, em Epicuro, to<strong>do</strong> o<br />
começo da Carta a Meneceu, leremos: "Quan<strong>do</strong> se é jovem,<br />
não se deve hesitar em filosofar e, quan<strong>do</strong> se é velho, não<br />
se deve deixar de filosofar. Nunca é demasia<strong>do</strong> ce<strong>do</strong> nem demasia<strong>do</strong><br />
tarde para ter cuida<strong>do</strong>s com a própria alma. Quem<br />
disser que não é ainda ou não é mais tempo de filosofar assemelha-se<br />
a quem diz que não é ainda ou não é mais tempo<br />
de alcançar a felicidade. Logo, deve-se filosofar quan<strong>do</strong><br />
se é jovem e quan<strong>do</strong> se é velho, no segun<strong>do</strong> caso [quan<strong>do</strong> se<br />
é.velho, portanto; M.F.] para rejuvenescer no contato com o<br />
bem, para a lembrança <strong>do</strong>s dias passa<strong>do</strong>s, e no primeiro<br />
caso [quan<strong>do</strong> se é jovem; M.F.] a fim de ser, embora jovem,<br />
tão firme quanto um i<strong>do</strong>so diante <strong>do</strong> futuro!'." Como vemos,<br />
este texto é realmente muito denso, comportan<strong>do</strong> uma série<br />
de elementos que seria preciso examinar mais de perto.<br />
Gostaria apenas de destacar alguns deles. Vemos, é claro, a<br />
assimilação entre "filosofar" e "ter cuida<strong>do</strong>s com a própria<br />
alma"; vemos que o objetivo proposto à atividade de filosofar,<br />
de ter cuida<strong>do</strong>s com a própria alma, é o alcance da felicidade;<br />
que esta atividade de ter cuida<strong>do</strong>s com a própria alma<br />
deve ser praticada em to<strong>do</strong>s os momentos da vida, quan<strong>do</strong><br />
se é jovem e quan<strong>do</strong> se é velho. Entretanto, com duas funções<br />
diferentes: quan<strong>do</strong> se é jovem trata-se de preparar-se<br />
_ é a famosa paraskheué de que lhes falarei mais tarde, tão<br />
importante nos epicuristas quanto nos estóicos 20<br />
- para a<br />
vida, annar-se, equipar-se para a existência; e no caso da velhice,<br />
filosofar é rejuvenescer, isto é, voltar no tempo ou, pelo<br />
menos, desprender-se dele, e isto graças a uma atividade de<br />
"<br />
AULA DE 20 DE JANEIRO DE 1982 109<br />
memorização que, para os epicuristas, é a rememoração <strong>do</strong>s<br />
momentos passa<strong>do</strong>s. Tu<strong>do</strong> isto nos coloca, de fato, no cerne<br />
desta atividade, da prática <strong>do</strong> cuida<strong>do</strong> de si; mas voltarei<br />
depois aos diferentes elementos deste texto. Assim, para<br />
Epicuro, como vemos, deve-se filosofar to<strong>do</strong> o tempo,<br />
deve-se incessantemente ocupar-se consigo.<br />
Se tomarmos agora os textos estóicos, encontraremos<br />
a mesma coisa. Dentre centenas, citarei apenas o de Musonius<br />
Rufus, segun<strong>do</strong> o qual é cuidan<strong>do</strong>-se sem parar (aei<br />
therapeúontes) que se pode salvar-se'I Ocupar-se consigo,<br />
portanto, é ocupação de toda uma vida, de toda a vida. De<br />
fato, se observarmos no perío<strong>do</strong> de que lhes falo a maneira<br />
como se praticou o cuida<strong>do</strong> de si, perceberemos que é realmente<br />
uma atividade de toda a vida. Podemos mesmo dizer<br />
que se trata de uma atividade <strong>do</strong> adulto e que o centro de<br />
gravidade, o eixo temporal privilegia<strong>do</strong> no cuida<strong>do</strong> de si, longe<br />
de estar no perío<strong>do</strong> da a<strong>do</strong>lescência, está, ao contrário,<br />
no meio da idade adulta; talvez até, como veremos, mais no<br />
final da idade adulta <strong>do</strong> que no final da a<strong>do</strong>lescência. De<br />
qualquer mo<strong>do</strong>, não estamos mais naquela paisagem de jovens<br />
ambiciosos e ávi<strong>do</strong>s que, na Atenas <strong>do</strong>s séculos V-Iv,<br />
buscavam exercer o poder; lidamos agora com um pequeno<br />
mun<strong>do</strong>, ou um grande mun<strong>do</strong> de homens jovens, ou homens<br />
em plena maturidade, homens que hoje consideraríamos<br />
velhos, que se iniciam, encorajam -se uns aos outros,<br />
empenham-se, quer sozinhos quer coletivamente, na prática<br />
de si.<br />
Vejamos alguns exemplos. Nas práticas de tipo individual,<br />
tomemos as relações entre Sêneca e Serenus, quan<strong>do</strong><br />
Serenus consultan<strong>do</strong> Sêneca no começo <strong>do</strong> De tranquillitate<br />
escreve - supostamente ele ou talvez ele mesmo - uma carta<br />
a Sêneca na qual relata seu esta<strong>do</strong> de alma e pede a Sêneca<br />
que lhe dê conselhos, emita um diagnóstico e faça para<br />
com ele, de certa maneira, o papel de médico da alma". Ora,<br />
este Serenus, a quem fora igualmente dedica<strong>do</strong> o De constantia<br />
e, provavelmente, tanto quanto sabemos, o De otio",