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A hermenêutica do sujeito - OUSE SABER!

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146 A HERMENfUTICA DO SUJEITO<br />

<strong>do</strong> status recebi<strong>do</strong> e não questiona<strong>do</strong>, que ele devia ocupar-se<br />

consigo [mesmo]. Na maioria <strong>do</strong>s grupos de que lhes falo,<br />

em princípio, não se valida, não se reconhece, não se aceita<br />

a distinção entre rico e pobre, entre quem teve berço de ouro<br />

e o de família obscura, quem exerce um poder político e<br />

quem vive desapercebi<strong>do</strong>. Exceção feita talvez aos pitagóricos,<br />

a cujo propósito colocam-se algumas questões 30 , parece<br />

que, de to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>, para a maioria <strong>do</strong>s grupos, até mesmo .<br />

a oposição livre/escravo, ao menos teoricamente, não foi<br />

aceita. Os textos <strong>do</strong>s epicuristas e <strong>do</strong>s estóicos sobre o assunto<br />

são numerosos e iterativos: afinal, um escravo pode ser<br />

mais livre que um homem livre se este não tiver se libera<strong>do</strong><br />

de to<strong>do</strong>s os vícios, paixões, dependências, etc., em cujo interior<br />

estivesse preso 3l • Por conseguinte, não haven<strong>do</strong> diferença<br />

de status, pode-se dizer que to<strong>do</strong>s os indivíduos, em<br />

geral, são" capazes": capazes de ter a prática de si próprios,<br />

capazes de exercer esta prática. Não há desqualificação a<br />

priori de determina<strong>do</strong> indivíduo por motivo de nascimento<br />

ou de status. Por outro la<strong>do</strong> porém, se to<strong>do</strong>s, em princípio,<br />

são capazes de aceder à prática de si, também é fato que, no<br />

geral, poucos são efetivamente capazes de ocupar-se consigo.<br />

Falta de coragem, falta de força, falta de resistência - incapazes<br />

de aperceber-se da importância desta tarefa, incapazes<br />

de executá -la: este, com efeito, é o destino da maioria.<br />

O princípio de ocupar-se consigo (obrigação de epimélesthai<br />

heautou) poderá ser repeti<strong>do</strong> em toda parte e para to<strong>do</strong>s. A<br />

escuta, a inteligência, a efetivação desta prática, de to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>,<br />

será fraca. E é justamente porque a escuta é fraca e porque,<br />

seja como for, poucos saberão escutá-lo, que o princípio deve<br />

ser repeti<strong>do</strong> por toda parte. Temos, a este respeito, um texto<br />

de Epicteto muito interessante. Evocan<strong>do</strong> novamente o<br />

gnôthi seautón (o preceito délfico), diz ele: Olhai o que ocorre<br />

com este preceito délfico. Foi inscrito, marca<strong>do</strong>, grava<strong>do</strong><br />

em pedra, no centro <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> civiliza<strong>do</strong> (ele emprega a<br />

palavra oikouméne). Está no centro da oikouméne, isto é, deste<br />

mun<strong>do</strong> que lê e escreve, que fala grego, mun<strong>do</strong> cultiva<strong>do</strong><br />

que constitui a única comunidade humana aceitável. Foi es-<br />

ti<br />

AULA DE 20 DE JANEIRO DE 1982 147<br />

crito lá, no centro da oikouméne, e por isto to<strong>do</strong>s podem vê-lo.<br />

Mas o gnôthi seautón, instala<strong>do</strong> pelo deus no centro geográfico<br />

da comunidade humana aceitável, é contu<strong>do</strong> desconheci<strong>do</strong><br />

e incompreendi<strong>do</strong>. E passan<strong>do</strong> desta lei geral, deste princípio<br />

geral, ao exemplo de Sócrates: Olhai Sócrates. Quantos<br />

jovens Sócrates terá interpela<strong>do</strong> na rua para que, a despeito<br />

de tu<strong>do</strong>, alguns acabassem por escutá-lo e por ocupar-se<br />

consigo mesmos? Sócrates, pergunta Epicteto, conseguia<br />

persuadir to<strong>do</strong>s os que vinham até ele a ter cuida<strong>do</strong>s para<br />

consigo mesmos? Nem mesmo um em mil 32 . Pois bem, nesta<br />

afirmação de que o princípio é da<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s mas poucos<br />

são os que podem escutá-lo, vemos reaparecer a bem conhecida<br />

e tradicional forma da partilha, tão importante e<br />

decisiva em toda a cultura antiga, entre alguns e os outros,<br />

os primeiros e a massa, os melhores e a multidão (entre oi<br />

prôtoi e oi pollo;: os primeiros e, depois, os numerosos). Este<br />

eixo de partilha é que permitia, na cultura grega, helenística,<br />

romana, a repartição hierárquica entre os primeiros - privilegia<strong>do</strong>s,<br />

cujo privilégio não devia ser questiona<strong>do</strong>, ainda<br />

que se pudesse questionar a maneira como o exerciam - e,<br />

após eles, os outros. Reencontraremos agora a oposição entre<br />

alguns e os demais, mas a partilha não é mais hierárquica:<br />

é uma partilha operatória entre os que são capazes e os<br />

que não são capazes [de si]."Não é mais o status <strong>do</strong> indivíduo<br />

que define, de antemão e por nascimento, a diferença<br />

que o oporá à massa e aos outros. É a relação consigo, a modalidade<br />

e o tipo de relação consigo, a maneira como ele mesmo<br />

será efetivamente elabora<strong>do</strong> enquanto objeto de seus<br />

cuida<strong>do</strong>s: é aí que se fará a partilha entre alguns poucos e<br />

os mais numerosos. O apelo deve ser lança<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s porque<br />

somente alguns serão efetivamente capazes de ocupar-se<br />

consigo mesmos. Reconhecemos aí a grande forma da voz<br />

que a to<strong>do</strong>s se dirige e poucos ouvem, a grande forma <strong>do</strong><br />

apelo universal que só a poucos garante a salvação. Encontramos<br />

aquela forma cuja importância será tão grande em<br />

toda a nossa cultura. É preciso dizer que ela não foi inventada<br />

exatamente aí. De fato porém, em to<strong>do</strong>s estes grupos

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