A hermenêutica do sujeito - OUSE SABER!
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158 A HERMENEUTICA DO SUJEITO<br />
relação com o outro, entenden<strong>do</strong>-o como media<strong>do</strong>r entre<br />
esta forma da salvação e o conteú<strong>do</strong> que se lhe há de fornecer.<br />
É sobre isto que hoje gostaria de me deter: o problema<br />
<strong>do</strong> outro enquanto media<strong>do</strong>r indispensável entre aquela forma<br />
que procurei analisar na última aula e o conteú<strong>do</strong> que<br />
preten<strong>do</strong> analisar na próxima. O outro ou outrem é indispensável<br />
na prática de si a fim de que a forma que define<br />
esta prática atinja efetivamente seu objeto, isto é, o eu, e seja<br />
porele efetivamente preenchida. Para que a prática de si alcance<br />
o eu por ela visa<strong>do</strong>, o outro é indispensável. Esta é a<br />
fórmula geral. E é o que precisamos agora analisar um pouco<br />
mais. A título de indicativo, tomemos a situação no seu<br />
conjunto, tal como se apresenta, quer no Alcibíades, quer de<br />
mo<strong>do</strong> mais geral, nos diálogos socrático-platônicos. Através<br />
<strong>do</strong>s diferentes personagens - positiva ou negativamente valoriza<strong>do</strong>s,<br />
pouco importa - que aparecem nestes diálogos,<br />
podemos facilmente reconhecer três tipos de mestria, três<br />
tipos de relação com o outro enquanto indispensável à formação<br />
<strong>do</strong> jovem. Primeiramente, a mestria de exemplo. O outro<br />
é um modelo de comportamento, modelo transmiti<strong>do</strong> e<br />
proposto ao mais jovem e indispensável à sua formação.<br />
Este exemplo pode ser transmiti<strong>do</strong> pela tradição: são os heróis,<br />
os grandes homens que se aprende a conhecer através<br />
das narrativas, das epopéias, etc. A mestria de exemplo é também<br />
assegurada pela presença <strong>do</strong>s prestigia<strong>do</strong>s ancestrais,<br />
<strong>do</strong>s gloriosos anciãos da cidade. Esta mestria de exemplo é<br />
ainda assegurada, de maneira mais próxima, pelos enamora<strong>do</strong>s<br />
que, em tomo <strong>do</strong> jovem rapaz, propõem-lhe - devem<br />
ou pelo menos deveriam propor-lhe - um modelo de comportamento.<br />
O segun<strong>do</strong> tipo é a mestria de competência, ou<br />
seja, a simples transmissão de conhecimentos, princípios, .<br />
aptidões, habilidades, etc. aos mais jovens. Finalmente, terceiro<br />
tipo de mestria: é a mestria socrática, sem dúvida, mestria<br />
<strong>do</strong> embaraço e da descoberta, exercida através <strong>do</strong> diálogo.<br />
O que se deve observar, creio, é que estas três mestrias<br />
se assentam todas sobre um jogo entre ignorância e memória.<br />
O problema, nesta mestria, está em como fazer para que<br />
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AULA DE 27 DE JANEIRO DE 1982 159<br />
o jovem saia de sua ignorância. Ele precisa ter sob os olhos<br />
exemplos que possa respeitar. Tem necessidade de adquirir<br />
as técnicas, as habilidades, os princípios, os conhecimentos<br />
que lhe permitirão viver como convém. Tem necessidade de<br />
saber - e é isto o que se produz no caso da mestria socrática<br />
- que não sabe e, ao mesmo tempo, que sabe mais <strong>do</strong> que<br />
não sabe. Estas mestrias são movidas pela ignorância e pela<br />
memória, na medida em que se trata, quer de memorizar<br />
um modelo, quer de memorizar e aprender uma habilidade<br />
ou familiarizar-se com ela, quer ainda de descobrir que o<br />
saber que nos falta é afinal simplesmente encontra<strong>do</strong> na própria<br />
memória e que, por conseqüência, se é verdade que não<br />
sabíamos que não sabíamos, é também verdade que não sabíamos<br />
que sabíamos. Pouco importam as diferenças entre<br />
estas três categorias de mestria. Deixemos de la<strong>do</strong> a especificidade,<br />
a Singularidade da mestria de tipo socrático e o<br />
papel principal que pode ter desempenha<strong>do</strong> em relação às<br />
outras duas. Creio que todas, a de Sócrates e as outras duas,<br />
têm ao menos isto em comum, a saber, que se trata sempre<br />
de uma questão de ignorância e de memória, sen<strong>do</strong> a memória,<br />
precisamente, o ql'e permite passar da ignorância à<br />
não-ignorância, da ignorância ao saber, desde que se entenda<br />
que a ignorância por si só não é capaz de sair dela mesma.<br />
A mestria socrática é interessante na medida em que o<br />
papel de Sócrates consiste em mostrar que a ignorância, de<br />
fato, ignora que sabe, portanto, que até certo ponto o saber<br />
pode vir a sair da própria ignorância. Todavia, o fato da existência<br />
de Sócrates e a necessidade <strong>do</strong> questionamento de<br />
Sócrates provam que, não obstante, este movimento não pode<br />
ser feito sem o outro.<br />
Na prática de si que preten<strong>do</strong> analisar, tal como aparece<br />
bem mais tarde, durante o perío<strong>do</strong> helenístico e romano,<br />
no começo <strong>do</strong> Império, a relação ao outro é tão necessária<br />
quanto na época clássica que acabo de evocar, mas, evidentemente,<br />
sob uma forma inteiramente diferente. A necessidade<br />
<strong>do</strong> outro funda-se, ainda e sempre, e até certo ponto,<br />
no fato da ignorância. Mas funda-se principalmente em ou-<br />
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