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A hermenêutica do sujeito - OUSE SABER!

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544 A HERMENtUTICA DO SUJEITO<br />

<strong>do</strong> de si. [O que] se depreende da idéia de que a vida deve<br />

ser assumida como uma prova? Qual o senti<strong>do</strong> e o objetivo<br />

da vida com seu valor forma<strong>do</strong>r e discriminante, da vida inteira<br />

considerada como prova? Precisamente, formar o eu. Devemos<br />

viver a vida de maneira tal que a cada instante cuidemos<br />

de nós mesmos e que o que encontrarmos ao termo,<br />

por certo enigmático, da vida - velhice, instante da morte,<br />

imortalidade, quer imortalidade difundida no ser racional,<br />

quer imortalidade pessoal, pouco importa -, enfim, o que deve<br />

ser obti<strong>do</strong> por meio de toda a tékhne que se aplica à própria<br />

vida, é precisamente uma certa relação de si para consigo,<br />

relação que é o coroamento, a completude e a recompensa<br />

de uma vida vivida como prova. A tékhne tou bíou, a maneira<br />

de assumir os acontecimentos da vida devem inscrever-se<br />

em um cuida<strong>do</strong> de si que se tomou agora geral e absoluto.<br />

Não nos ocupamos conosco para viver melhor, para viver mais<br />

racionalmente, para governar os outros como convém; era<br />

esta, com efeito, a questão de Alcibíades. Deve-se viver de<br />

mo<strong>do</strong> que se tenha consigo a melhor relação possível. Diria,<br />

finalmente, numa palavra: vive-se "para si". Este "para" recebe,<br />

sem dúvida, um senti<strong>do</strong> totalmente diferente daquele que<br />

está presente na fórmula tradicional "viver para si". Como<br />

projeto fundamental da existência, vive-se com o suporte<br />

ontológico que deve justificar, fundar e comandar todas as<br />

técnicas de existência: a relação consigo. Entre o Deus racional<br />

que, na ordem <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, dispôs em tomo de mim to<strong>do</strong>s<br />

os elementos, toda a longa cadeia de perigos e infortúnios,<br />

e eu mesmo, que decifrarei estes infortúnios como provas<br />

e exercícios para meu aperfeiçoamento, entre este Deus<br />

e eu, sÓ se trata <strong>do</strong>ravante de mim mesmo. Parece que este é<br />

um acontecimento relativamente importante, penso eu, na<br />

história da subjetividade ocidental. Que dizer a respeito?<br />

Para começar, certamente, o movimento - a reversão,<br />

creio, tão importante, que fez trocarem de posição cuida<strong>do</strong><br />

de si e técnica de vida - que procurei demarcar a partir <strong>do</strong>s<br />

textos de filósofos, mas que, a meu ver, poderíamos encontrar<br />

também a partir de outros sinais. Não há tempo este<br />

""<br />

AULA DE 17 DE MARÇO DE 1982 545<br />

ano, mas gostaria, por exemplo, de lhes falar <strong>do</strong>s romances.<br />

O aparecimento <strong>do</strong> romance grego precisamente na época<br />

de que lhes falo (séculos I-lI) é bem interessante. O romance<br />

grego, como sabemos, constitui-se de longas narrativas<br />

de aventura que são também narrativas de viagens, de infortúnios,<br />

de atribulações, etc., pelo mun<strong>do</strong> mediterrâneo, e<br />

que em certo senti<strong>do</strong> inserem-se, alojam-se na forma geral<br />

definida pela Odisséia 1 '. Mas, enquanto na Odisséia (narrativa<br />

épica das atribulações de Ulisses), tratava-se já daquela<br />

grande partida de braço-de-ferro de que lhes falava há<br />

pouco - tratava-se de saber quem finalmente prevaleceria,<br />

o homem ou os deuses, ou antes alguns deuses em relação a<br />

outros, pois estava-se em um universo de luta e de disputa-,<br />

com o romance grego, ao contrário, ocorre expressamente o<br />

aparecimento <strong>do</strong> tema segun<strong>do</strong> o qual a vida deve ser uma<br />

prova, prova forma<strong>do</strong>ra, forma<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> eu. Quer sejam os<br />

Etíopes de Helio<strong>do</strong>ro, mais conheci<strong>do</strong>s como Teagênio e Caric/éia,<br />

as Efesíacas de Xenofonte de Éfeso 20 , ou as aventuras<br />

de Leucipeu e Clitofonte de Aquiles Táci0 2 1, todas estas narrativas<br />

são regidas pelo tema segun<strong>do</strong> o qual tu<strong>do</strong> o que<br />

pode acontecer ao homem, to<strong>do</strong>s os infortúnios que lhe possam<br />

advir (naufrágios, tremores de terra, incêndios, encontros<br />

com malfeitores, ameaças de morte, aprisionamento,<br />

escravidão), tu<strong>do</strong> o que, em ritmo acelera<strong>do</strong>, acontece a to<strong>do</strong>s<br />

estes personagens, tu<strong>do</strong> o que de fato, como na Odisséia,<br />

conduz finalmente para junto de si, manifesta a vida como<br />

sen<strong>do</strong> uma prova. E o que deve resultar desta prova? A reconciliação<br />

com os deuses? De mo<strong>do</strong> algum. Deve resultar<br />

a pureza, pureza <strong>do</strong> eu, <strong>do</strong> eu entendi<strong>do</strong> como aquele sobre<br />

o qual se exerce vigilância, guarda, proteção e <strong>do</strong>mínio. E é<br />

por isso que o fio condutor de to<strong>do</strong>s estes romances não é,<br />

como na Odisséia, o problema de saber se os deuses preva-<br />

1ecerão sobre o homem, ou se um deus prevalecerá sobre<br />

outro. A questão que percorre to<strong>do</strong>s estes romances é simplesmente<br />

a questão da virgindade 22 . Guardarão a virgindade<br />

a jovem e o rapaz que se comprometeram, quer perante Deus,<br />

quer um perante o outro, a conservar a pureza pessoal? To-<br />

,

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