NA SENDA DA IMAGEM A Representação ea Tecnologia na Arte
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Compor com as novas tecnologias<br />
No 80.º aniversário do <strong>na</strong>scimento de Luigi Nono<br />
(1924-1990)<br />
Mário Vieira de Carvalho<br />
Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical<br />
Faculdade de Ciências Sociais e Huma<strong>na</strong>s<br />
Universidade Nova de Lisboa<br />
Av. de Ber<strong>na</strong>, 26-C<br />
1069-061 Lisboa, Portugal<br />
Como já notei noutra ocasião, o princípio «A origem é a fi<strong>na</strong>lidade» (Ursprung ist das Ziel), que<br />
Benjamin tomou a Karl Kraus e serve de epígrafe à décima quarta das suas teses sobre Filosofia da<br />
História, parece inspirar muito directamente a obra No hay caminos, hay que cami<strong>na</strong>r, para sete grupos<br />
instrumentais, escrita por Luigi Nono em 1987.<br />
Saudade de uma espécie de som originário (Urklang)! – Eis, de facto, o que Nono parece visar, ao<br />
reduzir a gama das alturas à nota sol e às suas variantes micro-to<strong>na</strong>is, suspendendo assim o papel<br />
estruturante da variável das alturas ou pitch e o próprio conceito de sistema sonoro, tal como é entendido<br />
por uma tradição de pensamento musical que remonta à antiguidade. No mesmo sentido, Nono não usa<br />
nesta obra os recursos da live electronics, deixando exclusivamente a instrumentos acústicos a tarefa da<br />
pesquisa de um som novo, ou seja, originário. A redescoberta de relações elementares noutras variáveis<br />
(por exemplo, a relação entre tempo e dinâmica, nom<strong>ea</strong>damente nos compassos 75-80, 116-120, 133-<br />
139, 155-169) e a relevância estrutural da dinâmica e do timbre, extremamente diferenciados, absorvendo<br />
em certo sentido o papel das alturas e das durações, são igualmente testemunho da tentativa de recuperar<br />
o que poderíamos chamar a essência da música como som (Klang), isto é, ainda não cristalizada ou<br />
reificada — pelos discursos teóricos e pelas práticas tradicio<strong>na</strong>is — num sistema e nos respectivos<br />
caminhos, mas sim como invenção ple<strong>na</strong> de fantasia, como um caminhar que faz o caminho. A evocação<br />
do canto si<strong>na</strong>gogal, atribuída nos compassos 1-5 às cordas e aos sopros dos cori 3, 4, 5 e 6, significa, de<br />
resto, a recondução a uma tradição muito antiga, a que Nono constantemente se refere <strong>na</strong>s suas<br />
declarações desde os anos 60 (cf. Nono 1964: 185s.; 1966: 189s.; 1969s: 206) e que até já mesmo em<br />
1964 teria deixado vestígios nos micro-intervalos do soprano solista de La fabbrica illumi<strong>na</strong>ta 1 . O próprio<br />
Nono (1987: 53) contrapõe a mobilidade per microintervalli do canto si<strong>na</strong>gogal ao estatismo do canto<br />
cristão-gregoriano (com alturas firmes): um <strong>na</strong>scia de uma cultura da escuta (cultura dell’“ascolto”), o<br />
outro de uma cultura da crença (“credo”). Além disso, Nono (ibid.: 12) considera a noção de «conceito<br />
enquanto processo» constitutiva do pensamento hebraico: «O conceito não é fixado de uma vez por todas,<br />
mas sim di<strong>na</strong>mizado através das suas variantes <strong>na</strong>s diferentes épocas» 2 . O fim visado, «o caminhar» para<br />
o espaço livre, a liberdade, que o aproximam de Varèse e do pensamento hebraico (Schönberg,<br />
Rosenzweig, Buber, Benjamim... 3 ), seria assim também, <strong>na</strong> perspectiva musical, a redescoberta da<br />
origem, isto é, do próprio conceito de som (Klang) como processo em aberto — precisamente como <strong>na</strong><br />
obra 2º) No hay caminos, hay que cami<strong>na</strong>r...Andreij Tarkowskij.<br />
Som como processo em aberto pressupõe tanto a fantasia e a cultura dell’ascolto do compositor como a<br />
dos intérpretes. O modelo de comunicação musical aqui desenvolvido, que remete para os cori spezzati<br />
(divididos) da re<strong>na</strong>scentista Escola de São Marcos, assenta — porventura mais do que qualquer outra obra<br />
de Nono — <strong>na</strong> capacidade de cada intérprete escutar os outros e retroagir para eles. Nesse sentido, a<br />
1<br />
Stenzl (1991: 20s.) verificou no autógrafo da partitura este «trabalho com micro-intervalos» <strong>na</strong> voz solista.<br />
2<br />
Il concetto non viene dunque fissato u<strong>na</strong> volta per tutte, ma di<strong>na</strong>mizzato atraverso le sue varianti nelle varie<br />
epoche.<br />
3<br />
Cf. Nono (1987: 19). Acerca da convergência Nono-Varèse, ver Ivanka Stoianova (1993).<br />
1<br />
Copyright © ARTECH 2004 – 1º Workshop Luso-Galaico de <strong>Arte</strong>s Digitais 12 de Julho de 2004, FC - UL