Homem em casa vira Maria.pmd - Repositório Institucional da UFSC ...
Homem em casa vira Maria.pmd - Repositório Institucional da UFSC ...
Homem em casa vira Maria.pmd - Repositório Institucional da UFSC ...
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
estava liga<strong>da</strong> à norma social vigente de que pedir a alguém que fale sobre sua vi<strong>da</strong> pessoal é desagra-<br />
dável e falar sobre isso com outros é, pior ain<strong>da</strong>, mexericar.<br />
Entretanto, também me ocorre que, de alguma forma, a sensação de ilegitimi<strong>da</strong>de que me<br />
assalta quando me volto para investigação de questões pertinentes à vi<strong>da</strong> pessoal e íntima <strong>da</strong>s pesso-<br />
as, também pode ser tributa<strong>da</strong> a uma certa persistência <strong>em</strong> mim, apesar de todo treinamento e esfor-<br />
ço, de um resquício de sentimento de não-valorização do olhar f<strong>em</strong>inino sobre o mundo, ou melhor,<br />
de insegurança <strong>em</strong> relação à ele, com a qual tenho que lutar durante a execução de minhas tarefas.<br />
Como se, no íntimo, o interesse pelas subjetivi<strong>da</strong>des no seio <strong>da</strong>s ciências humanas, introduzido pelo<br />
olhar f<strong>em</strong>inista, não passasse mesmo de “coisa de mulher” e como tal, desvalorizado. É claro que é<br />
sentimento passageiro e fugaz, porém marca sua presença com desanimadora regulari<strong>da</strong>de, revelan-<br />
do os efeitos persistentes <strong>da</strong> coerção socializadora, apreendi<strong>da</strong> “do estômago para a cabeça” (Da<br />
Matta,1978: 30). Esses “incidentes” me fizeram compreender que, <strong>em</strong> uma cultura polariza<strong>da</strong>, na<br />
qual o polo masculino é valorizado, a articulação <strong>da</strong> relação dominante/dominado não é facilmente<br />
supera<strong>da</strong> pelo treinamento intelectual, podendo se manter subjacente ao próprio olhar f<strong>em</strong>inino.<br />
Bourdieu afirma que<br />
“...quando os dominados aplicam àquilo que os domina esqu<strong>em</strong>as que são produto <strong>da</strong><br />
dominação ou, <strong>em</strong> outros termos, quando seus pensamentos e suas percepções estão estruturados<br />
de conformi<strong>da</strong>de com as estruturas mesmas <strong>da</strong> relação <strong>da</strong> dominação que lhes é imposta, seus<br />
atos de conhecimento são, inevitavelmente, atos de reconhecimento, de submissão.” (Bourdieu,<br />
1999: 22 - grifos no original)<br />
Enfim, tornar-se mulher numa cultura onde o masculino é o polo dominante, pode significar<br />
ter que lutar contra a dominação tanto fora quanto dentro de si mesma.<br />
Afora estes (e outros) percalços, o campo desta pesquisa foi diametralmente oposto ao de<br />
minha pesquisa anterior (Machado, 1998), na qual tive grande dificul<strong>da</strong>de <strong>em</strong> colocar os informantes<br />
à vontade, ou de me sentir à vontade também, para conseguir que confiass<strong>em</strong> <strong>em</strong> mim o suficiente<br />
para contar<strong>em</strong> particulari<strong>da</strong>des sobre suas vi<strong>da</strong>s. Entretanto, as reações negativas e positivas de<br />
minha parte aos entrevistados e de parte deles <strong>em</strong> relação a mim, as tentativas de “sedução” por<br />
parte deles, o meu fracasso <strong>em</strong> “seduzir” outros participantes para a pesquisa, as gozações, as ofen-<br />
sas, a ansie<strong>da</strong>de, o medo, a raiva, as estratégias para escapar <strong>da</strong>s entrevistas por parte deles, as<br />
artimanhas para não deixar o entrevistado escapar, de minha parte, tudo foi material riquíssimo de<br />
análise, s<strong>em</strong> o qual a pesquisa não teria alcançado os resultados que alcançou.<br />
Desta vez, não tive que “caçar” informantes/informações. Eles/as é que me perseguiram.<br />
Quando digo “perseguição”, significa que qualquer local ou circunstância serviu de palco para depo-<br />
imentos espontâneos, mais ou menos <strong>em</strong>ocionados, dependendo do momento do interlocutor. Te-<br />
nho por pressuposto que <strong>da</strong><strong>da</strong>s as condições <strong>em</strong> que ocorreram, alguns desses depoimentos se carac-<br />
terizaram como “desabafos” estando, portanto, fort<strong>em</strong>ente influenciados pelo estado de espírito do<br />
23