MAPEAMENTO NACIONAL DA PRODUçãO ... - Itaú Cultural
MAPEAMENTO NACIONAL DA PRODUçãO ... - Itaú Cultural
MAPEAMENTO NACIONAL DA PRODUçãO ... - Itaú Cultural
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
116 A diversidade de estilos, técnicas, operações e temas, que caracteriza a<br />
produção contemporânea em artes visuais, faz da organização de mostras<br />
como vozes íntimas que se tornam públicas, acentuam uma crise conceitual<br />
na qual estão também envolvidos.<br />
coletivas um exercício de articulação de fragmentos simbólicos. É<br />
nelas que o que é usualmente disperso acolhe sentidos comuns, embora<br />
irremediavelmente provisórios. A despeito de sua coesão aparente<br />
nas salas expositivas, esses sentidos estão sempre prontos a se desfazer<br />
quando as exposições são concluídas e os trabalhos devolvidos a sua<br />
irredutível singularidade. Diante do universo amplo e variado formado<br />
pelos trabalhos dos 69 artistas contemplados pelo programa Rumos Itaú<br />
<strong>Cultural</strong> Artes Visuais 2001/2003, é papel do curador, que o recorta<br />
em mostras menores, identificar que traços – evidentes ou sugeridos<br />
somente – de cada um desses trabalhos estabelecem aproximações ou<br />
atritos com aquilo que particulariza os demais, de modo a agrupá-los<br />
temporariamente sem imposições externas de tema ou idéia.<br />
Deve-se atentar, contudo, para o fato de essa identificação só poder ser<br />
feita de uma forma relacional, na qual cada trabalho é posto diante de<br />
outros e com eles avaliado seu poder de atração simbólica. Como são<br />
todos possuidores de um feixe largo de significados possíveis, a ativação<br />
específica de cada um desses sentidos depende da presença próxima e<br />
contingente de mais trabalhos que partilhem com o outro humores e<br />
modos de se expressar. É a partir do entendimento de que uma exposição<br />
coletiva implica respeitar os sentidos comuns provisoriamente criados pela<br />
aproximação entre trabalhos diversos que se organiza a presente mostra,<br />
bem como as demais pertencentes a esse programa de mapeamento,<br />
fomento e difusão da nova arte contemporânea brasileira.<br />
Os trabalhos dos 18 artistas que compõem a exposição Entre o Mundo<br />
e o Sujeito não ilustram, portanto, um tema definido de modo arbitrário.<br />
Agrupados e postos em contato, são eles que ativam, ao contrário,<br />
uma questão que perpassa as várias instâncias da vida contemporânea,<br />
problematizando-a de maneiras diversas e sem propor síntese alguma.<br />
Enunciam, de pontos de vista que convergem em alguns momentos e<br />
em outros apenas se tocam, o estado presente da crise já longa em que<br />
submergiu a idéia de Sujeito moderno, ancorada numa concepção de<br />
seres humanos unificados e dotados de identidade fixa e autonomia<br />
plena. Em vez da afirmação da integridade do Sujeito, é o seu caráter<br />
fragmentado e difuso que os trabalhos aqui reunidos apontam; em vez<br />
de identidades estáveis, é a identificação com o que é efêmero e múltiplo<br />
que assinalam. Não há em quaisquer desses trabalhos, entretanto,<br />
a pretensão do comentário discursivo e culto; tampouco se pretendem<br />
engajados numa atitude crítica ou celebratória do estado de confusão<br />
de limites entre as coisas do mundo e o Sujeito do conhecimento, aquele<br />
que supostamente as pesa e pensa. Apenas espelham, mimetizam e,<br />
Cláudia Leão<br />
O Jardim dos Caminhos<br />
que Se Bifurcam, 2000<br />
O desmanche progressivo da noção de Sujeito íntegro, estável e autônomo<br />
é, em parte, resultado de uma série de rupturas nos discursos do conhecimento<br />
moderno. Da descoberta do inconsciente por Sigmund Freud<br />
à concepção estruturalista do mundo apoiada nos escritos de Karl Marx,<br />
da revolução lingüística de Ferdinand de Saussure à descrição do poder<br />
disciplinar feita por Michel Foucault, o último século e meio tem colocado<br />
em evidência a inexistência de uma identidade fixa, de uma essência<br />
humana, de uma fala estável, de um corpo liberto. Os movimentos que,<br />
desde a década de 1960, reivindicam, com veemência, os direitos civis<br />
das mulheres, dos negros e dos homossexuais têm igualmente contribuído<br />
para o descentramento conceitual do Sujeito moderno, tornando-o<br />
permeável ao campo da política das diferenças demarcado por diversos e<br />
ativos grupos sociais. Por fim, a intensificação do fluxo internacional de<br />
bens simbólicos a que se chama globalização tem comprimido o tempo<br />
e o espaço em que se desenrolam ação e pensamento, permitindo a permuta<br />
incessante de posições diferentes de mundo e provocando a desterritorialização<br />
permanente das identidades culturais em que se fundam e<br />
se afirmam os sistemas de representação de indivíduos e povos. 1<br />
Por sugerirem, de diferentes maneiras, a condição transitória e circunstancial<br />
do Sujeito na contemporaneidade – não mais estável, mas se refazendo<br />
a cada instante; não mais uno, mas dividido de modo irreparável –,<br />
os trabalhos que integram esta exposição terminam também por comentar<br />
a própria transitividade simbólica que os define e o esgarçamento das<br />
fronteiras que os faziam pertencer ao âmbito somente do estético. É esta,<br />
portanto, uma mostra reflexiva em que os trabalhos desenham, ainda<br />
quando não possuam tal pretensão, um mapa conciso das incertezas<br />
sobre o próprio espaço que a arte ocupa hoje no mundo.<br />
O lugar simbólico no qual se constroem muitos dos trabalhos reunidos<br />
nesta mostra é o corpo humano ou o de sua ausência explícita e ruidosa.<br />
É a partir dele que se articulam várias das formas encontradas para o<br />
enfrentamento – às vezes claro, às vezes só insinuado – de uma situação<br />
de perda ou de mistura de referências que eram separadas antes. Em<br />
alguns desses trabalhos, tal perplexidade se volta para a própria maneira<br />
com que a materialidade do corpo é representada, fazendo-o menos<br />
espesso e denso e tornando-o só superfície opaca. Nas fotografias de<br />
Cláudia Leão, por exemplo, imagens diáfanas de partes do corpo humano<br />
e de seus espaços supostos de vida são suspensas em conjuntos desde<br />
o teto, constituindo fragmentos visuais de uma narrativa que se forma<br />
somente no olho de quem as percorre e que se desmancha logo após.<br />
117