MAPEAMENTO NACIONAL DA PRODUçãO ... - Itaú Cultural
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144 O humor é a arte das superfícies e das dobras, das singularidades<br />
nômades e do ponto aleatório sempre deslocado, a arte da gênese<br />
estática, o saber-fazer do acontecimento puro ou a<br />
“quarta pessoa do singular”.<br />
Transformado em co-autor voluntário ou não do processo criativo proposto,<br />
ao tentar se comunicar sem conhecimento prévio do interlocutor ou<br />
a que se destina a conversa, se insere uma possibilidade lúdica que flerta<br />
com o acaso, com a surpresa e o nonsense: encontros e desencontros que<br />
podem estimular situações fictícias, originais, inusitadas e cômicas.<br />
Gilles Deleuze<br />
Sobre o humor, até que ponto podemos esperar que seus encantos permaneçam<br />
intatos, porquanto seus mecanismos e procedimentos sejam<br />
analisados Ao rirmos, é a relação com o objeto de nosso riso que se<br />
acha determinada: aceitação ou recusa, há o pressuposto de que uma<br />
comunicação se estabeleça.<br />
A ótica social e subjetiva do riso e do humor, estando sempre presente,<br />
não elude a questão sobre o que dá o toque risível aos trabalhos, e nos<br />
conduz incansavelmente sobre a consistência dos efeitos de humor das<br />
propostas aqui evocadas.<br />
Graziela Kunsch, por meio do latido em Nightshot 3, se pergunta sobre<br />
a possibilidade de novos códigos universais de comunicação. A inclusão<br />
fortuita de pessoas, registrada durante seu percurso pelas ruas de São<br />
Paulo, aponta para uma tendência em favor da concepção de uma obra<br />
que seja coletiva, visceral, estruturada a partir do confronto direto com<br />
o cotidiano e em total disponibilidade para lidar com a improvisação da<br />
artista e com o risco da reação das pessoas diante da incongruidade e do<br />
burlesco da situação.<br />
Há uma perda do caráter fetichista da obra como monumento, porém<br />
a apresentação dos vídeos em um espaço institucionalizado introduz<br />
uma separação que funciona como um aparato propício à nossa postura<br />
crítica. Isso impede que o público se identifique de maneira ilusionista,<br />
abrindo espaço para a inversão da perspectiva inicialmente dramática<br />
– busca desesperada de comunicação na solidão da metrópole –, em<br />
uma anestesia afetiva que funciona pela alternância e pelo contraste<br />
entre tensão e alívio, como um poderoso catalisador de efeito cômico.<br />
De maneira diferente, a obra Me Liga, concebida pela dupla Cinthia<br />
Marcelle e Marilá Dardot, se complementa e adquire totalmente o<br />
sentido por elas esperado quando um espectador, em dado momento,<br />
aceita interagir com o telefone público instalado no próprio espaço<br />
expositivo. O trabalho não se situa propriamente no espaço da galeria,<br />
mas utopicamente “entre” as polaridades daqueles que eventualmente<br />
instauram um diálogo.<br />
Graziela Kunsch<br />
Nightshot 3, 2000<br />
Cinthia Marcelle e<br />
Marilá Dardot<br />
Me Liga, 2000/2002<br />
Janaina Barros<br />
Conversa entre<br />
Galinhas, 2000/2002<br />
Leya Mira Brander<br />
Sem Título [série],<br />
1999/2001<br />
O riso adquire aqui sua dimensão social mais plena e defendida por<br />
Bergson: fenômeno contagioso, comunicativo por excelência, que pressupõe<br />
a existência de grupos sociais e seus entrelaçamentos. Aquele que<br />
ri necessita da cumplicidade do outro para associar-se a ele no riso e<br />
juntos rirem de si mesmos.<br />
Quando a situação proposta por Janaina Barros na audioinstalação<br />
Conversa entre Galinhas se concretiza para o espectador, ele se vê diante<br />
de um tipo bastante freqüente de gag cômica, de irresistível efeito burlesco,<br />
presente nas comédias desde os primórdios das artes cênicas e do<br />
cinema. Comicidade, de certa forma, prenunciada pelo título – apesar da<br />
ambigüidade que ele sugere –, associada à simplicidade desafiadora do<br />
aparato e da idéia posta em prática, além da evocação da visualidade de<br />
uma cena que ocorre apenas em nossa imaginação, tudo contribui para<br />
manter seu poder de deflagrar o riso franco e de nos surpreender.<br />
Ao evocar simultaneamente o cotidiano banal e prosaico de pessoas<br />
comuns e aliá-lo a fatores que contradizem essa idéia, o idioma<br />
estrangeiro, ela se insere no princípio estético de composição do<br />
burlesco transformado em princípio lúdico e perceptivelmente barroco:<br />
inverter os signos do universo evocado – significante e significado –,<br />
tecer uma armadilha ao nosso pensamento lógico, inserir um efeito de<br />
estranhamento e desproporção, provocando a sensação do ridículo e<br />
do inesperado.<br />
As pequenas gravuras em metal agenciadas como histórias em quadrinhos<br />
de Leya Mira Brander se apresentam como um diário: escrito na<br />
primeira pessoa e em forma de diálogo direto com um hipotético leitor,<br />
evoca uma miríade de sentimentos como ternura, intimidade, receios,<br />
romance, humor, que são poetificados em um tipo de desenho e/ou<br />
escrita que remete à incerteza e ao inacabado do rabisco, como se não<br />
se destinassem a ser partilhados. O caráter lúdico da constante recombinação<br />
das matrizes formando novas seqüências de imagens contrasta<br />
com o seu conteúdo de cunho sentimental e folhetinesco, criando um<br />
sutil efeito de distanciamento; evoca sua faculdade de usar um juízo<br />
crítico em relação aos seus sentimentos, como um tipo de resistência à<br />
ilusão, além apontar para os procedimentos de representação inerentes à<br />
linguagem da gravura. Isso mostra como o narrador – a artista – se situa<br />
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