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MAPEAMENTO NACIONAL DA PRODUçãO ... - Itaú Cultural

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160 “Feridas não vão cicatrizar”, sentencia Thom Yorke em Ok Computer,<br />

terceiro de cinco discos do Radiohead, cujas músicas perturbadas de<br />

letras sombrias arranham o real. 1 A banda é um dos muitos porta-vozes<br />

de um discurso difuso na produção artística contemporânea, que está<br />

ligado à melancolia, à perversão, ao estranho, e pode ser reconhecido<br />

nos filmes de David Lynch e Michael Haneke ou nos livros de Paul Auster<br />

e Ian McEwan. Também nas artes visuais, certa produção está voltada<br />

para a evocação do real, entendido como traumático. Todas essas vozes<br />

entoam o discurso do choque.<br />

mortuárias de sinistra beleza. Nessa série, os rostos das mulheres ressurgem<br />

envelhecidos, submersos, sufocados e cegos. A beleza em<br />

estado terminal é destituída de olhar, ou tem seus olhos voltados para<br />

o interior. Segundo Freud, no texto Das Unheimliche, 2 em que analisa<br />

o fenômeno do familiar reprimido que retorna, o medo de ferir ou<br />

perder os olhos é um dos mais recorrentes em crianças, conservado por<br />

muitos adultos, e funciona como um substituto do temor de ser castrado.<br />

O autocegamento do criminoso mítico Édipo, escreve Freud, era<br />

uma atenuação do castigo da castração. As figuras cegas de Mlászho<br />

fazem o terror do real brilhar.<br />

O termo “ferida” está na raiz etimológica da palavra “trauma”, que<br />

designa todo acontecimento na vida de um sujeito que, por uma incapacidade<br />

de assimilar e elaborar, não pode se inscrever no psiquismo.<br />

O real, definido por Lacan na década de 1960 em termos de trauma,<br />

se refere a essa sobra, àquilo que foge ao domínio das palavras e de<br />

qualquer outra forma de simbolização. O real não pode ser representado,<br />

ele pode apenas ser repetido, como nas obras de Andy Warhol, cujas<br />

repetições de marilyns e cadeiras elétricas, mais do que reproduzir efeitos<br />

traumáticos, os produzem.<br />

Trata-se da adoção preventiva da compulsão à repetição, ou seja, a<br />

utilização daquilo que choca como uma defesa contra esse choque,<br />

na análise de Hal Foster sobre o decano da arte pop. Caetano Dias,<br />

Ana Laet e Odires Mlászho trabalham sempre com séries em que<br />

procedimentos mecânicos se repetem gerando imagens pouco diferentes<br />

entre si. Nas obras de André Santangelo e Bruno de Carvalho,<br />

a repetição reside no eterno looping de seus vídeos. Ao eleger como<br />

assunto de suas obras elementos da ordem do perverso, do sinistro,<br />

do grotesco e até do abjeto, esses artistas não visam a uma catarse,<br />

de fato eles se inserem em um quadro de colapso da arte como<br />

sublimação.<br />

Caetano Dias é um perversor de imagens. Ele as contrabandeia de<br />

outra mídia, subverte sua função e corrompe sua forma com o borramento<br />

de contornos e contextos anteriormente nítidos. Dias é um<br />

desvirtuador da internet, transformando fantasias impalpáveis da rede<br />

em concretas plotagens ao alcance das mãos. Dias é um depravador<br />

de símbolos, fazendo de imagens pornográficas seus santinhos<br />

eletrônicos. Suas obras transtornam o olhar porque tentam flagrar a<br />

abjeção no ato, como faz o Piss Christ, de Andres Serrano. Claro que<br />

não conseguem, porque o real é impossível de representar.<br />

Na Antecâmara da Máscara, de Odires Mlászho, imagens de uma<br />

revista feminina da década de 1970 são transmutadas em máscaras<br />

Caetano Dias<br />

Todos os Santos de<br />

Todos os Dias, 2001<br />

fotografia digital<br />

125 x 201 cm<br />

Coleção do artista<br />

Foto: Divulgação/Arquivo do artista<br />

Odires Mlászho<br />

Antecâmara da Máscara<br />

VIII, 2001<br />

André Santangelo<br />

Sobre os Olhos e as<br />

Gotas, 2000/2002<br />

instalação - aquários,<br />

peixes, cristal, sal grosso,<br />

TV e vídeo<br />

dimensões variáveis<br />

Coleção do artista<br />

Foto: Divulgação/Arquivo do artista<br />

Bruno de Carvalho<br />

Vis-ita, 2001/2002<br />

videoinstalação<br />

dimensões variáveis<br />

Coleção do artista<br />

Foto: Divulgação/Paula Canella<br />

Ana Laet<br />

Você É o que Você<br />

Come, 2001/2002<br />

O trabalho de André Santangelo presentifica o unheimlich freudiano,<br />

porque seus singelos peixinhos coloridos em aquários são o objeto<br />

da infância alienado do passado. Aqui, esses peixes têm sua morte<br />

cronometrada a conta-gotas. Mas a morte nunca se realiza, porque<br />

quando os aquários estão quase vazios, eles são abastecidos com<br />

água novamente. Em paralelo, imagens urbanas repetitivas e familiares<br />

promovem um segundo alheamento. O real é descortinado pelo<br />

elemento estranho.<br />

No caso dos trabalhos de Ana Laet e Bruno de Carvalho, a evocação<br />

do real transfere-se do choque à violação porque colocam em cena o<br />

corpo e seus limites. “A estranha ambição deste tipo de abordagem é<br />

gozar do trauma do sujeito, com o aparente cálculo de que se o objeto<br />

perdido não pode ser reclamado, ao menos a ferida que ele deixou para<br />

trás pode ser esquadrinhada”, escreve Foster a respeito da estratégia<br />

da abjeção. O termo refere-se aos limites do corpo, à distinção espacial<br />

entre dentro e fora e à passagem temporal do corpo materno à lei<br />

paternal, na definição de Júlia Kristeva. O abjeto é algo cuja proximidade<br />

excessiva provoca pânico.<br />

Na videoinstalação Vis-ita, de Bruno de Carvalho, o espectador é convidado<br />

a engatinhar por um túnel de tecido preto até desembocar na<br />

tela que mostra uma endoscopia. À estranha proximidade de entranhas<br />

humanas, dada principalmente pela vivência física do trabalho, soma-se<br />

a captação do rosto do visitante e a sobreposição dessa imagem à do<br />

vídeo. Uma proximidade excessiva que pode produzir pânico.<br />

Você É o que Você Come, de Ana Laet, põe em display invólucros de<br />

carne humana para consumo de massa. As imagens de fragmentos de<br />

corpo são impressas em couro rústico em formato de capas de tinturaria,<br />

dispostas em cabides. O canibalismo sugerido é a atualização de um<br />

real grotesco. Segundo Foster, muitos artistas são impulsionados por<br />

uma ambição de que suas obras provoquem efeito e, ao mesmo tempo,<br />

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