inspiração Conversas nova-iorquinas Cida<strong>de</strong> cosmopolita, que atrai turistas, revela sutilezas por meio <strong>de</strong> coisas simples, como um passeio no parque ou os reflexos nos edifícios espelhados; tudo inspira Renata Florio 22 <strong>17</strong> <strong>de</strong> <strong>julho</strong> <strong>de</strong> 20<strong>17</strong> - jornal propmark
Fotos: Clovis Aidar/Divulgação Renata Florio é Global Group Creative Director da Ogilvy & Mather, com base no escritório <strong>de</strong> Nova York Renata FloRio – especial para o PRoPMaRK Ela nem se dava conta que estava falando tão alto, ora subia o tom da voz, que alcançava um agudo quase insuportável, ora gargalhava a ponto <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r o fôlego e provocar uma tosse <strong>de</strong> cachorro. O cachorro que acabava <strong>de</strong> passar tão pouco se importava com a tosse da mulher ou com a mulher; seguia com sua postura altiva, autoconfiança <strong>de</strong> raça pura, malandragem <strong>de</strong> vira-lata, jogando charme para a ca<strong>de</strong>linha que vinha no sentido contrário. O charme funcionou e os dois bichos ficaram se cheirando, causando constrangimento aos respectivos donos. A <strong>de</strong>la, uma moça que não tinha mais que 25 anos, o <strong>de</strong>le, um rapaz <strong>de</strong> uns 30, magricela e com cara <strong>de</strong> assustado. Depois <strong>de</strong> algumas voltas <strong>de</strong> coleira e várias outras cheiradinhas, os quatro se <strong>de</strong>spediram e, ao mesmo tempo, notaram as duas moças que se aproximavam. Seriam mo<strong>de</strong>los? A da direita com certeza, pensou a jovem dona da poodle, que agora se coçava intermitemente enquanto sua dona notava a saia longa, a blusa elegantemente <strong>de</strong>cotada, o cabelo preso em um nó no topo da cabeça e abrigava um belíssimo par <strong>de</strong> óculos escuros, tudo combinava tão bem naquela mulher. Mo<strong>de</strong>lo, com certeza. A moça da esquerda também po<strong>de</strong>ria ser uma mo<strong>de</strong>lo, mas não tinha a mesma classe. Usava um vestido branco, também longo, quase bonito. O rapaz, dono do cachorro pura-raça-vira- -lata pensava diferente. Achou a mulher da esquerda muito mais interessante que a mulher da direita. Quando ambas se <strong>de</strong>ram as mãos e se beijaram nos lábios ele seguiu seu caminho, assim como elas, assim como a moça do poodle, assim como a mulher ao telefone… bem, a mulher ao telefone não seguiu necessariamente o seu caminho, mas seguiu com a sua conversa. Continuava a falar, a dar risada e a tossir, sem se importar com o que passava ao redor. Nem o calor, o sol escaldante <strong>de</strong> 38 graus, fazia com que ela parasse <strong>de</strong> falar. Num <strong>de</strong>terminado momento, falou tão rápido que parecia que ia engasgar, mas tomou um gole <strong>de</strong> água <strong>de</strong> uma garrafinha <strong>de</strong> plástico meio amassada e continuou. A garrafinha, apoiada na ponta do banco, tombou e rolou pelo chão, mas ela, mais uma vez, não se <strong>de</strong>u conta do que passava à sua volta. Lá se foi a garrafa, rolando até um casal <strong>de</strong> meia ida<strong>de</strong> que passeava com uma mulher <strong>de</strong> uns 30 e poucos anos, turistas na certa. O homem parou o percurso da garrafa com o pé, a mulher e a outra moça, filha do casal talvez (?), seguiram a caminhada, <strong>de</strong>ixando o elegante senhor para trás. Talvez por ser muito educado, talvez por se sentir na obrigação <strong>de</strong> ser civilizado enquanto visitava uma cida<strong>de</strong> tão mo<strong>de</strong>rna, o homem resolveu pegar a garrafa do chão. Examinou a embalagem como quem procura uma etiqueta com as informações do dono, essas que colocamos nas malas <strong>de</strong> viagem para o caso <strong>de</strong> se extraviarem, sempre esperando que nunca se percam, porque se elas se per<strong>de</strong>rem poucas são as chances <strong>de</strong> conseguirmos resgatá-las; a não ser que isso ocorra na Suécia: lá, se a sua mala se per<strong>de</strong>r, ela aparece na sua casa (ou hotel) no dia seguinte, intacta e entregue por um rapaz muito bonito e educado, que toca a campainha às 9 horas da manhã, exatamente no horário que a companhia aérea avisou que iria entregar. Mas no caso da garrafa não havia nenhuma informação com dados para retorno com caso <strong>de</strong> extravio, portanto o cavalheiro olhou em volta para encontrar a lata <strong>de</strong> lixo mais próxima. O som do navio passando ao fundo fez com que ele se virasse para o rio, para observar o gigante que dava ré(!). Ele se perguntou se era possível um navio <strong>de</strong> turismo conseguir dar ré, mas aí se lembrou que o navio é manobrado por uma outra barca, e quem o conduz nessas horas é um profissional chamado <strong>de</strong> “prático”, aliás há que se ter muita prática para mover um edifício flutuante cheio <strong>de</strong> pessoas que planejaram e sonharam com essa viagem por dias a fio. Assim como ele sonhou e imaginou viajar com sua mulher e sua filha (que seguiram a caminhada sem notar que ele parara); conhecer a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nova York e visitar os museus; caminhar pelas ruas e parques e observar os barcos e este navio passando no Rio Hudson, tudo tão limpo, nem um lixo no parque, só a garrafa <strong>de</strong> plástico, que ele jogou na lata <strong>de</strong> lixo, ao lado <strong>de</strong> uma mulher que falava sozinha sentada num banco, falava alto, gargalhava tanto que engasgava e tossia uma tosse <strong>de</strong> cachorro. Falava sozinha, é verda<strong>de</strong>, mas quem se importa, ele pensou, qual o problema <strong>de</strong> sentar num banco <strong>de</strong> parque e falar sozinha por horas a fio? This is New York! Destino da garrafa Uma selva <strong>de</strong> pedra, como na foto principal à esquerda, é humanizada por boas conversas e experiências <strong>de</strong> gente que visitam Nova York. Cadê a pequena garrafa que estava aqui? Não vai encontrar. Já foi pro lixo. Atitu<strong>de</strong> sensorial assimilada sem pressão, natural. jornal propmark - <strong>17</strong> <strong>de</strong> <strong>julho</strong> <strong>de</strong> 20<strong>17</strong> 23